uma casa para conter o caos
dez anos de poesia brasileira
[2008 – 2018]
seleção, textos & notas
Gustavo Silveira Ribeiro
Continuamos aqui a série de pequenos comentários sobre os livros da década, segundo o crítico Gustavo Silveira Ribeiro.

Vinagre: uma antologia de poetas neobarracos
2013 – Os vândalos
Fabiano Calixto & Pedro Tostes (org.)
[Garanhuns – 1972
Rio de Janeiro – 1981]
Proposta, organizada e publicado em curtíssimo espaço de tempo, nas últimas semanas de Junho de 2013, no centro dos acontecimentos políticos que sacudiram vigorosamente o país, Vinagre: uma antologia de poetas neobarracos (editada apenas como livro eletrônico), feita por Fabiano Calixto e Pedro Tostes, ainda é, passados já mais de seis anos, a expressão artística mais imediata e ao mesmo tempo mais significativa daquele contexto, surgindo como uma sua consequência direta, uma espécie de instantâneo tomado no calor da hora, pleno de espontaneidade e desorganização, nascido sem planejamento prévio, de modo algo semelhante às manifestações massivas que inundaram as cidades brasileiras. Atuando como um elaborado arquivo dos afetos e das tensões, das violências, das imagens e dos desejos daqueles dias de fúria e expectativa, os poemas reunidos em Vinagre, sob essa perspectiva, vêm se somar – guardadas, é verdade, as muitas e importantes distinções existentes – aos milhares de vídeos e fotos pessoais feitos durante os protestos, cada um deles, em pequenos fragmentos, apropriando-se de um acontecimento que, pela sua natureza movente e coletiva, intempestiva e paradoxal, permanece até hoje um enigma, um evento não-reconstituível em sua totalidade, posto como desafio ao pensamento político tradicional. Mesmo que a direita do espectro ideológico tenha, vistas as coisas do belvedere privilegiado – e catastrófico – deste ano de 2019 (posterior, portanto, às práticas corrompidas e partidarizadas da Operação Lava-Jato, à destituição do mandato de Dilma Rousseff, ao debacle do sistema político brasileiro e à eleição, enfim, do candidato autoritário e proto-fascista Jair Bolsonaro) tenha se apoderado da narrativa principal dos protestos de 2013 e das suas consequências político-eleitorais imediatas, a origem das explosões populares e de suas pautas mais consequentes e duradouras se situa à esquerda, no campo das aspirações democráticas e da realização plena da justiça social. Tudo isso é relevante para a compreensão do papel que cumpre Vinagre na cena poética brasileira porque o livro como que consolida e expande a orientação política que se esboçava, há já alguns anos, em parte significativa da poesia escrita no Brasil. Se livros como os de Marcelo Ariel (Tratado dos anjos afogados [2008]), Pádua Fernandes (Cinco lugares da fúria [2008] e Alberto Pucheu (Mais cotidiano que o cotidiano [2013], por exemplo, apontavam, cada um a sua maneira e a partir de pressupostos muito diversos, para a violência histórica das relações sociais no país, sem que fosse possível, numa escala mais ampla, dar contorno e sentido à sucessão de poemas que, dispersivamente, insistiam em voltar às mesmas imagens e às mesmas questões. Vinagre vai reunir muitos outros poetas, conhecidos e desconhecidos, veteranos e estreantes, bons e maus artistas, que irão explicitar, no conjunto informe que é a antologia, a tendência que antes podia ser apenas vista de relance. O desejo de participar dos protestos, de fazer a poesia se posicionar entre os discursos públicos em luta naquele momento pode ser percebido pela extensão do projeto: em curtíssimo tempo, depois de um chamado divulgado nas redes sociais, mais de 150 poetas enviam contribuições para Vinagre, num gesto que não deve ser interpretado como simplesmente voluntarista ou casuístico. O grande número de autores e a quantidade relativa de bons poemas que se juntaram na antologia (dentre os quais é preciso destacar os de Adriano Scandolara, Diego Vinhas, Julia de Carvalho Hansen e Maiara Gouveia) indicam a latência de um elemento realista na poesia brasileira do presente, e o desejo vivo, até então talvez recalcado, de intervir no presente, responder poeticamente, com todas os problemas que isso tem, aos pequenos e grandes acontecimentos do tempo. Parte da explicação para esse fenômeno está na dinâmica da internet, que reconfigurou os ritmos de leitura, a disponibilidade de textos acessíveis, a velocidade de publicação e mesmo os modos de consumo da poesia. O melhor e o pior de Vinagre tem a ver, quem sabe?, com esses novos agenciamentos que as comunidades virtuais das redes foram formando, e que alteraram sensivelmente a cena poética brasileira. Uma parte da energia crítica e dos excessos militantes que se apresentaram na antologia ainda se fazem visíveis no que se publica agora no país, contribuindo para o grande número de poemas políticos que todos os dias surgem. Nem todos, no entanto, guardam a mesma força expressiva, a mesma capacidade de estranhar a forma e colocar em xeque o próprio sentido da ação política que alguns dos melhores poemas de Vinagre traziam.
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