Mariana Basílio (Bauru – São Paulo, 198). Prosadora, poeta, ensaísta e tradutora. Mestre em Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Autora dos livros de poesia Nepente (2015), Sombras & Luzes (2016), e Tríptico Vital (Patuá, 2018. Prêmio ProAC 2017, Finalista Residência Literária Sesc 2018, Finalista Prêmio Guarulhos 2019). Colabora em portais e revistas nacionais e internacionais, tendo traduzido nomes como May Swenson, Alejandra Pizarnik, Edna St. Vincent Millay, Sylvia Plath e William Carlos Williams. É também autora das plaquetes de poemas, As Três Mal-Amadas (Kizumba Edições, 2018), e As Mãos que Ressoam o Absurdo (edição artesanal, 2019). Com patrocínio do prêmio ProAC 2019, do Governo de São Paulo, publicará em 2020 seu quarto livro de poesia, Mácula (Patuá). Mantém o site http://www.marianabasilio.com.br.
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O poema apresentado, nomeado como um pequeno ensaio poético amoroso, foi escrito em junho de 2019 quando eu enfrentava o final da minha primeira gestação, do filho Ulisses. A partir da experiência imagética do curta-metragem As Mãos Negativas (1979), de Marguerite Duras, resolvi pensar o amor de uma forma híbrida, histórica, e passível de genéricas sensações. As duas realidades, filme e filho, sobrepostas em minhas mãos inchadas pelo sangue quase duplicado no organismo, me fizeram tecer esses versos até agora inéditos, que passam então a poema publicado por aqui – onde sou sempre carinhosamente acolhida por outra inspiração dos dias, Nina Rizzi. Gracias a quem me lê nesse instante.
“Toda uma geração passou por mim como por sombras.”
Anna Akhmátova
1
Só o mistério faz viver e morrer.
Humanos, nas superfícies terrenas.
Acima das cordilheiras, eles são
os que chegam, mas não me encontram.
Os que aguardo, mas se despedem.
As coisas discretas, adoráveis, sensíveis:
as mãos negativas, azuis, impressas,
esparramam-se nas cavernas madalenianas –
as mãos sobre as paredes, intactas,
redescobertas em um crescente borrão.
Ser o tempo, de frente ao oceano,
acima do granito, com os olhos abertos
sustentando o nu da minha desolação.
De frente ao oceano, onde as outras
mãos ultrapassam o cerne do oxigênio.
Uma mulher, só, no interior da caverna,
há trinta mil anos anseia por mapas,
por uma única rota, uma cama inútil –
em que não fariam de si um culto, mas um
assombro, desacelerando promessas irrevogáveis.
Talvez haja nela um eu, dentro do eu, gritando:
Eu te amo.
– Amo a possibilidade de que me ouçam.
Eu te amo.
Ela olha para o abismo do próprio estômago.
As lascas dos dedos pelo vão da janela.
Os miolos da memória, sempre impossíveis.
Trinta mil anos mais tarde, grito:
Eu te amo.
– Amo o que não se evade nos registros da escuridão.
A refração da manhã, olho sobre os ombros.
A planta do vaso salta o movimento, silêncio.
Prima da morte, e da morte vencedora, grito.
O pranto devorando o breu do meu sangue –
um peso líquido golpeia o mesmo instante –
porque encostei minha face na face da noite,
mas ainda era muito tarde. O pranto.
O amor, em carne, as mãos trêmulas pela
frieza condensada do mármore, saudavam
orações aos que se permitiam amar.
Devoto do nada, por mapas e por correntes,
rastejava para fora dos meus olhos inertes.
Lágrimas ainda nos seguiam, submersas:
Eu te amo.
Ela gritava – para que a vida não padecesse antes
do fim, e por fora da morte, dissecando a lonjura
milenar dos que o viviam como nós.
Eu te amo.
Como os traços peregrinos das nuvens,
o vazio dos homens e das mulheres
derramado nas folhagens dos vãos do vento.
Mas ergo as pálpebras, e tudo volta a renascer.
2
Até acontecer a possibilidade de amar o todo,
aquele formado dentro do próprio amor,
de onde me despeço da vagueza cotidiana.
Há uma aura condensada na umidade.
Assim, ela ainda grita:
Eu te amo.
Indefinidos traços restabelecem o presente:
a leveza do insustentável, a pronúncia do toque –
eu amo os padecidos sobre o escoro da vida.
Uma mulher de sombras, as mãos azuis
descascadas na pedra – sina de
todo primeiro erro – nós.
Ser rarefeito, desejar, tecer.
As maneiras distintas, atentas, perfeitas –
por mapas, um respiro, primeiro e último,
há trinta mil anos. Você. Que me lê.
Eu te amo.
Como um borrão, eu, alguém.
A urdidura da palavra reinventada.
3
Visão das ruas desconhecidas, por dentro de
um lentíssimo automóvel: desperto às 5h.
Mais azul. Sem fim.
– A imensidão das coisas dá em mim uma força
inesperada, como as mãos com que grito. Você.
A face incompreendida de mim.
No centro do granito, deitada. Você.
Ser o tempo, de frente ao oceano. Sobreviver.
Descendo do medo, eu gritava pelo obscuro das ruas
que avançava, e alcançava a mesma caverna primária.
Cesarée: tudo se choca. Interior, como em Guernica.
Um farol dentro das veias é que me guiava.
O grito, no fundo dos sacos de lixo e dos
mesmos passantes, unidos ao amanhecer.
O automóvel resistindo à curva, ainda.
Eu te chamo, querendo mais das respostas.
Tarde demais. Há trinta mil anos.
Eu te amo.
Fundando o mundo dos desvios e das tecnologias,
e das árvores que não se desmembram. Você.
Eu, dentro do eu, o oceano ainda – o volume
das linhas dos mapas e das palmas – “La Paix” –
os automóveis ultrapassam o sinal verde.
Eu, ela, insisto em resistência e extensão.
Uma identidade, de amor sobreposto –
as lâmpadas iluminando a passagem, pois o
dia se estende, mas terminará, por cima das
florestas que nos elucidam, nas esquinas
nomeadas humanas, de amor inverso. Você.
Eu te amo.
Com incensos de anis-estrelado, respiro melhor
no vento soprado pelo velho continente, que,
pelo fogo, naufraga no mesmo borrão. Tudo.
Na ausência constante da essência e da
coragem das coisas inexatas. Ainda que.
Eu te amo.
Eu teria dito. Há trinta mil anos, eu te clamo.
E sou aquela que eu quero amar, de frente ao
mar: um espectro branco de estátua altiva.
Eu te amo.
Um caminhão vermelho desvia do automóvel.
Quase.
As mãos azuis, extensões das feridas imóveis,
inevitáveis, parecem se despedir das córneas.
4
Há trinta mil anos eu penso em um novo tipo de
renascimento, pela fuga retilínea do sol.
*
A mulher, o ser humano, nem aquém, nem além do tempo. A construção atemporal da vida, da civilidade, uma genealogia afetiva, poética do sempre. Gostei muito!
a poesia é vida, vida vivida e vida imaginada. E nestas palavras tudo se faz reak, a realidade que nos faz viver