Louise Furtado (1997) é poeta e mestranda em teoria literária pela UFF, em Niterói, RJ. Nasceu em Guarapuava no interior do Paraná, morou em Curitiba, morou no Rio de Janeiro, atualmente mora em Niterói e amanhã não se sabe. Estes 4 poemas fazem parte de um projeto em andamento intitulado “taxidermias”. Gosta quando a ponte Rio-Niterói fica interditada porque um cachorro resolveu atravessar e de escrever quando está com sono.
* * *
memória
se um dia Maria abrisse
alguma fresta na porta do quarto
e a visão não tropeçasse
em animais vinte e seis
espalhados e empalhados
talvez não pensasse todo dia
enquanto almoça em ser
empalada e empalhada
para servir de crucifixo
na cabeceira de alguma cama
§
labareda
o ano é
não se sabe mais
o tempo é
não se sabe mais
a vida é
nunca soube
soube pela camisa
de papai da Maria Luiza
que ateou fogo nas mãozinhas dela
dentro da própria casa
agarrada às irmãs
da mesma terra
de cabeça dura e mal criada
com garras desgarradas
e talvez Maria Luiza agora…
a primeira filha
não se sabe mais
um flâneur de escombros
viu tudo
só não viu
papai fechar a porta
e andar na rua
com as mãozinhas dela estampadas
de cinzas
§
há sombras sem luz
no canto de prédios
guardados pelo tempo
numa caixa de brinquedos
há tantos joelhos com pus
sem mãos pra falar: venha cá
quando foi a última vez que você viu
um Vaga-lume piscando
vi um Cão morto latindo
tendo talvez convulsões
do outro lado da rua
que não é minha
eu dei meia volta
I’m back
eu não sei mais falar inglês
será que alguém precisa disso
falar inglês
um Cão morto latindo precisa
vai ver ele podia falar
help
será que pode carregar na cauda
esse mundo inchado
de água São Lourenço
que tem gosto de gás
que vêm de São Paulo
às sete da tarde
será que pode responder e-mail
falando sobre o tempo
ou sempre tem que
lamber as botas de alguém
falar sobre o tempo em inglês
um e-mail do tempo:
help
abraços,
Tempo.
alguém diz dias depois
as sombras do prédio
fazem sombras no outro prédio ali
mas se acabar a luz na cidade
talvez botafogo grite
PORRA
mas quando voltar todos gritam
AÊ
uníssono
que não vai chegar em jacarepaguá
mas alguém pode estar lá
gritando socorro
como o Cão morto latindo em inglês
ou o tempo
mas se uma criança abre
a caixa de brinquedos do mundo
e vê o Cão vivo
talvez nasça um pedacinho
de luz no prédio
de alguém indo ao banheiro
quatro horas da manhã
o vaga-lume
que já não via há tanto tempo.
§
boceta antropofágica
Maria tem a boceta repleta
das Onças do Rosa
e mata alguns homens assim
lentamente
seus corpos apodrecem
naquele mesmo quarto
e deixa morar Baratas pelos seus membros
é uma pena que eles nunca descubram
o poder disso
Uau! Talento, muito talento… Poesia de qualidade injetada na veia. Uau! Mil vezes UAU!