
Proêmios são grosso modo um resumo supercompacto dos grandes épicos antigos. A diferença é que, em vez de virem acompanhados de elogios geneticamente selecionados de resenhas de jornais de grande circulação, como na capa de trás dos livros, e em vez de entregarem a obra praticamente toda para o leitor, como nos trailers de cinema, o proêmio dava o sabor da técnica e do traquejo do poeta, quase como se dissesse: coisa boa vem aí.
São mais, portanto, do que um atalho útil. Eles concentram uma energia poética muito poderosa, poderosa a ponto de em muitos casos besuntar com o máximo de sentido a primeiríssima palavra. Veja o proêmio da Ilíada. Se você pegar a que abre o poema, μῆνις, e a analisar direitinho, não sem espanto estará fazendo como o professor Leonard Muellner, que escreveu um livro inteiro só sobre ela (você pode ler gratuitamente aqui). Seu sentido básico é que fala de uma raiva que vai muito além da zanga corriqueira. Segundo diz o Muellner no primeiro capítulo, μῆνις “é uma penalidade que visa garantir e manter a integridade da ordem do mundo; sempre que é invocada, a hierarquia do cosmos está ameaçada”. Não espanta, sendo assim, que o bom e velho Odorico Mendes tenha virado a língua portuguesa de cabeça pra baixo na tentativa de achar a palavra ideal na nossa língua:
Menin, por onde principia o poema, é ira tenaz, ira não passageira; o nosso termo desacompanhado não o verte cabalmente. Rancor é ódio encoberto, que não vai bem com a franqueza de Aquiles. Cólera é ira súbita com amarelidão no rosto; não indica a permanência da paixão do herói. Ressentimento, além de poder ser oculto, não exprime a constante irritação. Despeito, que em certo modo se lhe aproxima, tendo contraído uma acepção mais usual, carece da energia do grego. Furor, ou fúria, por impetuoso não é durável. Raiva é mais dos outros animais e pareceria dizer que estava como um cão danado. Sanha, segundo Fr. Francisco de S. Luiz, é ira que se mostra nos gestos e nas contorções do rosto. Assim, posto que em dados casos qualquer destes vocábulos se possa aplicar a Aquiles, não o pode ser à paixão que nutriu longamente e às claras, Foi-me pois necessário ajuntar o objetivo tenaz.
Não creiam porém que as principais línguas da Europa (não falo da alemã, da qual nada pesco) possuem um termo que salve a dificuldade: o correaux dos franceses é por ventura o que mais se lhe chega; mas como dele não se tem servido os seus tradutores, temo que lhe falte alguma coisa imprecetível a um estrangeiro. — O mais notável é que nisto falha o mesmo latim: Virgílio, devendo enunciar a idéia, criou o seu “memorem Junonis ob iram“; de sorte que a pobreza da sua língua neste ponto o fez inventar uma expressão admirável, como o são a maior parte das que se encontram neste mestre incomparável do estilo.
Vários outros detalhes podem ser pincelados. Basta perambular pela antologia perguntando-se o porquê desta ou daquela construção. Veja, por exemplo, nas traduções do Frederico Lourenço e do Rafael Brunhara, o uso de um longo parêntesis. Qual o motivo? É que há uma relação sintática melindrosa entre o quinto verso e os seguintes: muitos leem ἐξ οὗ partindo de ἐτελείετο βουλή, mas há uma leitura, que não sei mensurar ao certo o quão recente seria, segundo a qual o referente é ἄειδε lá em cima.
Outro detalhe pra lá de intrigante, comentado por um Gregory Nagy muito à vontade e com o braço envolto numa tipoia (aos 19:50 deste vídeo), é sobre o uso do demonstrativo αὐτοὺς no verso quatro. Muitos tradutores, como você vai ver logo abaixo, traduzem para “corpos” a ideia, quando, na verdade, o sentido é ainda mais estarrecedor: não é bem os corpos que ficam insepultos, mas eles próprios. Pare e pense um pouco nisso. Não é da divisão cristã entre corpo e alma que falamos. Pra gente, o corpo ficar insepulto é o menor dos males desde que a alma esteja salva; pros gregos, meu amigo, é outra história: o pasto de abutres e cães será você mesmo.
Por fim, uma curiosidade: o comentarista grego Aristoxeno, no livro 1 de sua Praxidamanteia, cita que para alguns, o proêmio tinha uma forma diferente:
ἔσπετε νῦν μοι μοῦσαι, Ὀλύμπια δώματ᾽ ἔχουσαι
ὅππως δὴ μῆνίς τε χόλος θ᾽ ἕλε Πηλεΐωνα
Λητοῦς τ᾽ ἀγλαὸν υἱόν•
Algo como:
Cantem-me agora, Musas que moram no Olimpo,
o como cólera e insânia abatem o Pelida
e de Latona o filho excelso [isto é, Apolo].
Agradeço ao Rafael Brunhara e ao Leonardo Antunes pela ajuda com a postagem, indicando traduções às quais eu até então não tinha acesso.
* * *
μῆνιν ἄειδε θεὰ Πηληϊάδεω Ἀχιλῆος
οὐλομένην, ἣ μυρί᾽ Ἀχαιοῖς ἄλγε᾽ ἔθηκε,
πολλὰς δ᾽ ἰφθίμους ψυχὰς Ἄϊδι προΐαψεν
ἡρώων, αὐτοὺς δὲ ἑλώρια τεῦχε κύνεσσιν
οἰωνοῖσί τε πᾶσι, Διὸς δ᾽ ἐτελείετο βουλή,
ἐξ οὗ δὴ τὰ πρῶτα διαστήτην ἐρίσαντε
Ἀτρεΐδης τε ἄναξ ἀνδρῶν καὶ δῖος Ἀχιλλεύς.
§
texto crítico edição crítica de M. L. West. Teubner, 2006, p. 3-4
§
chave sintática por Vicente Maisp.
em: Manual introdutório ao grego antigo, edUFPE, 2008, p. 301
§
trad. Marquesa de Alorna [1750-1839]
A colera d’Achilles, causa horrivel
Dos desastres da Guerra inumeraveis,
Canta, Musa divina! e quão temivel
Essa colera foi: que lamentaveis
Destroços fez n’aquelles que invencivel
Amor da gloria tinham: que notaveis
Chefes mandou, com furia, ao reino escuro,
De um golpe inopinado e prematuro.
Dize como insepultos sobre as arêa,
Dos cães e dos abutres devorados,
Ficam, em quanto a raiva não refreia
Achilles, nem Atrides irritados.
Jove assi decretou na immensa idéa,
Assim sem compaixão quizeram os Fados.
Declara, ó Musa! em que hora tão tremenda
Rompe esta luta; e qual Numen offenda.
§
trad. José Maria da Costa e Silva [1810]
A chólera funesta ó Deoza canta
Do Péleo Achylles doloroza aos Gregos;
Que ao Inferno baixar de Heróes valentes
Mil Espiritos fez, e dèo seos corpos
A cães, e aves em pasto: assim de Jove
Se cumprio o Decreto des qu’ em odio
Inimizára súbita contenda
Attrides d’Homens Rey, e o divo Achylles.
§
trad. Elpino Duriense [1812]
Ó Deosa, do Peleio Achilles canta
A fatal ira, que infinitas mágoas
Aos Achivos causou; e muitas almas
Valentes de Heroes antes do tempo
Mandou ao Orco; e os corpos insepultos
Aos cães e às aves todas deo por pasto,
(Assim de Jove o arbítrio se cumpria!)
Depoisque desavindos se apartárão
Atrídes Rei do povo, e o divo Achilles.
§
trad. Odorico Mendes [1874]
Canta-me, ó deusa, do Peleio Achilles
A ira tenaz, que, lutuosa aos Gregos,
Verdes no Orco lançou mil fortes almas,
Corpos de heroes a cães e abutres pasto:
Lei foi de Jove, em rixa ao discordarem
O de homens chefe e o Myrmidon divino.
§
trad. Carlos Alberto Nunes [1945]
Canta-me a cólera — ó deusa — funesta de Aquiles Pelida,
Causa que foi de os Aquivos sofrerem trabalhos sem conta
E de baixarem para o Hades as almas de heróis numerosos
E esclarecidos, ficando eles próprios aos cães atirados
E como pasto das aves. Cumpriu-se de Zeus o desígnio
Desde o princípio em que os dois, em discórdia, ficaram cindidos,
O de Atreu filho, senhor de guerreiros, e Aquiles divino.
§
trad. Donaldo Schüller [1969]
Canta, ó Deusa, a fúria devastadora do Pelida Aquiles, a qual trouxe muitas aflições aos aqueus, enviou ao reino dos mortos almas ilustres de muitos heróis e fez dos seus corpos pasto de cães e de toda sorte de aves. Mas cumpria-se a vontade de Zeus. Começa no momento em que o Atrida, chefe supremo dos exércitos, e o divino Aquiles, por causa de uma desavença, se separaram.
§
trad. Haroldo de Campos [1994]
A ira, Deusa, celebra do Peleio Aquiles,
o irado desvario, que aos Aqueus tantas penas
trouxe, e incontáveis almas arrojou no Hades
de valentes, de heróis, espólio para os cães,
pasto de aves rapaces: fez-se a lei de Zeus;
desde que por primeiro a discórdia apartou
o Atreide, chefe de homens, e o divino Aquiles.
§
trad. Frederico Lourenço [2005]
Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles, o Pelida
(mortífera!, que tantas dores trouxe aos Aqueus
e tantas almas valentes de heróis lançou no Hades,
ficando seus corpos como presa para cães e aves
de rapina, enquanto se cumpria a vontade de Zeus),
desde o momento em que primeiro se desentenderam
o Atrida, soberano dos homens, e o divino Aquiles.
§
trad. Erick France Meira de Souza [2006]
Deusa, canta tu o furor malparado de Aquiles Pelida, furor que pôs inúmeros sofrimentos aos Aqueus, precipitou para os domínios de Hades muitas almas vigorosas de heróis e fê-los presas a cães e a aves quaisquer.
§
trad. Antonio Medina Rodrigues [2007]
De Aquiles o Pelida, ó deusa, canta a cólera
Que a Aqueus fatal torceu com ais sem conta, e ao Hades
Atro almas de heróis bravos jogou, mas seus corpos
De pasto a cães ofereceu e abutres todos.
Pois coisa tal Zeus bem havia deliberado,
Desde o início, quando em rixa se enfrentaram
O Atrida, líder de varões, e o divo Aquiles.
§
trad. Rafael Brunhara [2008]
Deusa, canta cólera de Aquiles Pelíade,
ruinosa, (que trouxe aos aqueus miríade de mágoas,
e cedo arrojou no Hades muitas valentes almas de heróis
a eles próprios fez espólios para cães,
e aves rapaces todas – Cumpriu-se o desígnio de Zeus),
desde que primeiro apartaram-se em rixa
Atrida soberano de homens e divino Aquiles.
§
trad. literal de Vicente Masip [2008]
Canta, ó deusa, a ira de Aquiles Pelida,
perniciosa, que causou inúmeras dores aos aqueus
e enviou muitas almas valentes para o inferno
de heróis, tornou-os presas de cães
e de todas as aves de rapina, e era feita a vontade de Deus,
desde que de fato por primeira vez se separaram, tendo brigado,
o Atrida, rei dos homens, e Aquiles (da linhagem) de Zeus.
§
trad. Leonardo Antunes [2014; 1ª versão]
A cólera canta-me, deusa, de Aquiles Pelida,
Funesta, que milhões de dores aos aquivos trouxe
E muitas almas enviou para o Hades de valentes,
De heróis, que foram feitos como espólio para os cães,
Banquete dos abutres. Fez-se a vontade de Zeus
Do ponto em que primeiro se apartaram, discordantes,
O Atrida, lorde dentre os homens, e o divino Aquiles.
§
trad. Guilherme Gontijo Flores [2016]
Raiva — canta, Deusa — aquela de Aquiles Pelida,
desvairada, que males milhares levara aos argivos,
quando várias almas valentes lançava para o Hades
destes heróis, espalhando seus espólios em pasto
para cães e pássaros — Zeus completou seu desejo;
donde pode vir a primeira discórdia firmada
entre o Atrida senhor dos homens e Aquiles divino.
§
trad. minha [2018; 1ª versão]
Fúria canta-me, Deusa, do Aquiles Pelida,
o furor que incutiu dor inúmera aos gregos
e fez a alma de heróis despenhar para o Hades
e eles próprios virarem pasto a cães e abutres,
assim de Zeus celeste fazendo-se o intento;
desde quando primeira desavença aparta
o Atrida rei dos homens e o divino Aquiles.
§
trad. minha [2018; 2ª versão]
Cólera canta-me, Deusa, a de Aquiles Pelida,
cólera insana que lástimas trouxe aos argivos
e almas de heróis arremessa sem conta até o Hades,
pasto de abutres e cães a eles próprios tornando,
desta maneira cumprindo-se os planos de Zeus;
desde o momento em que rixa primeira separa
rei de guerreiros, o Atrida, e Aquiles divino.
§
trad. Christian Werner [2018]
A cólera canta, deusa, a do Pelida Aquiles,
nefasta, que aos aqueus impôs milhares de aflições,
remessou ao Hades muitas almas vigorosas
de heróis e fez deles mesmos presas de cães
e banquete de aves – completava-se o desígnio de Zeus –,
sim, desde que, primeiro, brigaram e romperam
o Atrida, senhor de varões, e o divino Aquiles.
§
trad. Leonardo Antunes [2018; 2ª versão]
Canta-me a cólera, deusa, fúria de Aquiles Pelida,
ira fatal, que impôs aos acaios dores imensas,
tantas almas valentes fez descender para o Hades,
almas de heróis cujos corpos aos cães entregou como espólio
e como pasto das aves. O plano de Zeus se cumpria
desde quando os dois se apartaram com ódio um do outro,
o nascido de Atreu, soberano, e Aquiles divino.
§
trad. Leonardo Antunes [2018; 3ª versão]
Ira de Aquiles, filho de Peleu,
deusa, concede que eu celebre em canto,
ira fatal que aos acaios impôs
uma miríade de sofrimentos;
muitas almas de força e valentia
fez descender para a casa de Hades;
almas de heróis cujos corpos sem vida
relegou como espólio para os cães
e de banquete às aves de rapina.
Assim cumpria-se o plano de Zeus
desde o primeiro momento em que os dois
por força da discórdia se apartaram,
o Atrida, soberano de varões,
e o filho de Peleu, divino Aquiles.
§
trad. Trajano Vieira [2020]
A fúria, deusa, canta, do pelida Aquiles,
fúria funesta responsável por inúmeras
dores aos dânaos, arrojando magnas ânimas
de heróis ao Hades, pasto de matilha e aves.
O plano do Cronida se cumpria, desde
o momento em que a lide afasta o atrida, líder
do exército, de Aquiles.