
consideremos a natureza múltipla do corte
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consideremos a natureza múltipla do corte: se corto um corpo o faço como quando corto o verso de um poema? ambos os gestos apontam para o fim, acenam para a morte. a escrita, contudo, mesmo quando se abisma, traz seu impulso de vida. a tensão advinda do corte do verso, modulando o fluxo de duas forças que compartilham o mesmo fio — a série semântica e a série semiótica — nos lembra Agamben[1], é o que caracteriza o poema por excelência. a ocorrência do enjambement é a sua diferenciação, é o que potencializa a sua existência: trata-se de um corte de vida, que provoca as intensidades que são o som e o sentido.
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o terremoto nos remete à paisagem da cisão. o terremoto replicando: a réplica, a escuta, a correspondência. a ternura, quer dizer, a tremura chega arrastando tudo: é onde as coisas se confundem e pensamos a tremura no campo dos afetos e a ternura no campo das forças da natureza. o terremoto desfaz fronteiras: as palavras desencontram seus lugares, se expandem, assim como o mar avança sobre o país, assim como o país vai virando mar. a lógica interna do poema se desfaz, os diálogos e os pensamentos se tornam imprecisos, tomados também pelo terremoto:
se as réplicas consistem
em tremedeiras, e se uma língua é desenhada
fora das linhas,
como conciliar o inconciliável?, pergunto[2]
ele responde sem remeter à pergunta, ele não responde, ele fala sobre wasabi e radioatividade e o seu brilho remetendo à luz quando incide sobre a superfície do mar e de novo o corte, a tremura. então surge a dificuldade com o impalpável, com aquilo que não podemos tocar: o afeto, o terremoto e, tantas vezes, o outro — aquele ao qual tanto desejamos nos dirigir. a esperança é que um dia se possa superar a necessidade da correspondência — será possível?
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respostas não chegam como um anzol que se prende na boca de um peixe elas demoram até que a vontade provém coragem de lançar palavras que nunca são só palavras mas uma profusão de contenção e falta na falta de outros meios para alcançá-lo onde você está quando lhe envio lavas de um vulcão recém-desperto? onde devo despejar um tonel de mentiras? em que parte do corpo calcifica-se uma imagem?
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do lado esquerdo, o poema é escrito sob um fio; do lado direito, o poema é escrito sobre outro fio: o fio que corta e traça a correspondência. as palavras como pontas soltas prontas para serem capturadas. o poema dá a deixa, a troca é explícita: a água-viva se apropriando da superfície das coisas. a água-viva se propondo à indiferenciação ou à síntese da correspondência — de longe parece que se confunde com o mar, com a areia ou com a mão de quem a segura — mas quem está confuso é quem vê. ela está sendo apenas o que é. o corte do verso impõe uma decisão de leitura.[3]
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A única coisa que me interessa no momento é a lenta cumplicidade da correspondência.[4]
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quantas vezes devo ler um texto para ter certeza de que estamos perto? me disseram: esse conto trata-se do destino de um perseguido. há o labirinto dos nomes, há o labirinto do tempo e dos acontecimentos. há, também, o potencial aniquilador ou proliferador das escolhas.
Em todas as ficções, cada vez que um homem se defronta com diversas alternativas, opta por uma e elimina as outras; na do quase inextricável Ts’ui Pen, opta – simultaneamente – por todas. Cria, assim, diversos futuros, diversos tempos, que também proliferam e se bifurcam.[5]
somos convidados a imaginar uma obra em contínua abertura, cuja lógica se orienta por acatar as diversas possibilidades e desdobramentos de cada lance apresentado. ainda que nos deparemos, dentro desse tipo de procedimento, com um desafio — já que as narrativas, no geral, pretendem se estruturar através de uma certa causalidade dos fatos narrados — conseguimos pensar nas ramificações do labirinto como a imagem definidora da ficção, da narrativa, em contraste com a imagem que vínhamos estabelecendo do poema como o espaço do corte, da cisão, da versura. a finitude do verso se oporia, então, a uma ideia de infinito da prosa.
quando Agamben nos traz a questão do fim do poema, ali onde o último verso estanca a dinâmica do enjambement, e aborda o trânsito do poema para a prosa, pode ser mesmo uma espécie de resposta ao problema abismal colocado linhas acima: o poema terminaria onde a prosa começa. a pergunta, então, “E o que resta do poema depois de sua ruína?” se responderia no infinito de possibilidades da prosa, da narrativa labiríntica.
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o poema viveria, ainda diz Agamben, não de uma perfeita consonância entre som e sentido mas sim de sua íntima discórdia[6]. pensar o poema assim é pensá-lo em uma conflituosa relação consigo mesmo, com os elementos que o compõem e com tamanho embaraço se estendendo ao outro ao qual o texto se destina. que conversa se pode produzir a partir de uma discórdia fundamental? é importante que o leitor entenda que não deve se inserir em posição conciliatória. o leitor deve receber o conflito, não deve resolver nada – suas agruras sustentando a sua própria existência. essa recepção, por sua vez, não se trata de um exercício de passividade. eu posso queimar aquilo que recebo, posso rasurar as palavras ou os versos de um poema, posso maldizê-lo, posso escrever uma réplica para maldizê-lo ou para fazer perdurar o prazer da leitura.
Por que escreve e rasga a fogo
o que te dei e arrisca
meu nome na roleta?[7]
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a posição de receptividade se trataria, portanto, de um exercício de escuta ao que no texto fala, um tipo de atenção que se volta mesmo ao som mais ruidoso, incômodo ou estranho.
Jean-Luc Nancy afirma que aquele que escreve não deixa de ser aquele que fala, mesmo que não haja som em sua voz. aquele que lê, portanto, não deixa de ser aquele que escuta. a voz nos dá a dimensão do reconhecimento, existindo como uma precessão da fala, começando aí onde começa o entrincheiramento de um ser singular[8]. A escuta se ligaria, assim, à apreensão de um sentido possível, e consequentemente não imediatamente acessível.[9]
I dwell in Possibility –[10]
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em relação à voz que podemos reconhecer dentro de um texto e a quem ou a que ela poderia ser atribuída, Nancy nos diz que aquela ou aquele que canta, durante o tempo do seu canto, não é um sujeito. na contramão de uma ideia de singularidade, o espaço do texto se constitui como o espaço de exercício de escritura e reescritura, onde o que soa ressoa o que já foi dito – onde se casam e se contestam escritas variadas. nisso consiste a correspondência – quando escrevo me correspondo com tantos que falam por mim, falam junto daquilo que digo!
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Barthes diz: o nascimento do leitor tem de pagar-se com a morte do Autor[11]. a escrita como um ato, um tipo de performance, o exercício do estabelecimento de algo no mundo, uma intervenção no real que se opera pelo poder da linguagem de presentificar-se, não importando quem está a manuseá-la. o autor à mercê da linguagem, não o inverso. percebemos essa ordem de relação quando ainda lemos Barthes dizer sobre dar um autor a um texto como sendo este um gesto de fechamento/ enclausuramento da escrita. de fato, entre muitos leitores, a partir do momento em que o autor está dado, o texto está lido – tudo, então, se recebe através da paisagem de quem escreveu.
tão equivocado também pode ser pensar o texto e a linguagem como entidades apartadas, como organismos absolutos cujo funcionamento independeria, fundamentalmente, daqueles que sobre ambos intercedem – escritor e leitor.
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tão difícil é saber se aproximar de um texto. antes de sabermos, contudo, o contato acontece – antes de pensarmos sobre a verdade do modo como lemos, reagimos, interpretamos.a leitura deve se tratar de um gesto em constante expansão e abertura ao que um texto oferece. estaria aí, portanto, a raiz da correspondência
gesto corajoso, entregue ao corte numa busca de vida.
estabelecer, sustentar e desviar o olhar de um texto não se difere, assim, do momento em que decidimos encarar alguém, olhá-lo nos olhos para depois seguirmos com a certeza de que algo em ambos foi modificado.
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Fernanda Morse nasceu em Niterói e hoje vive em São Paulo. Estuda Letras Português/Inglês na USP. Pesquisou a poesia de Ana Cristina Cesar, passou um tempo na Université Paris-Sorbonne – Paris IV e está em vias de terminar a tradução de uma antologia de poemas da Diane Di Prima. Publicou duas plaquetes: a primeira em 2014, pela Coleção Kraft, da editora Cozinha Experimental e a segunda em 2015, intitulada impossíveis, pelo selo Cactus.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. Ideia da prosa. Trad. João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.
__________________ O fim do poema. Trad. Sérgio Alcides. Cacto (São Paulo), n. 1, 2002.
BARTHES, Roland. A morte do autor. In: O rumor da língua. 1 ed. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004. pp. 57-64.
BORGES, Jorge Luis. “O jardim de veredas que se bifurcam”. In: Ficções. Trad. Davi Arrigucci Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2007
CÉSAR, Ana Cristina. Poética. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
DICKINSON, Emily. The Poems of Emily Dickinson Ed. R. W. Franklin. Harvard University Press: Cambridge, MA, 1999
FOUCAULT, Michel. “O que é um autor?” In: Michel Foucault. Estética: Literatura e pintura, música e cinema. Trad. I. A. D. Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitaria, 2006, pp.264-298.
GARCIA, Marília. “Terremoto” In: Câmera lenta. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p.63-64.
MARQUES, Ana Martins e SISCAR, Marcos. Duas janelas. São Paulo: Luna Parque, 2016
NANCY, Jean-Luc. À escuta. Tradução: Fernanda Bernardo. Belo Horizonte: Chão da. Feira, 2014
________________Vox Clamans in Deserto. Caderno de Leituras n. 13. Chão da Feira: 2015. http://chaodafeira.com/wp-content/uploads/2015/06/cad13.pdf
[1] Agamben em O fim do poema (1996).
[2] Marília Garcia no poema “Terremoto”, do livro Câmera Lenta (2017). Pp. 63-64
[3] Sobre o livro Duas Janelas (2016) de Ana Martins Marques e Marcos Siscar.
[4] Ana Cristina Cesar em Luvas de Pelica (1980).
[5] Jorge Luis Borges em O jardim de veredas que se bifurcam (1941).
[6] Agamben em Ideia da Prosa (1985).
[7] Trecho dos Inéditos e Dispersos (1985) de Ana Cristina Cesar.
[8] Jean-Luc Nancy em Vox Clamans in Deserto (1991)
[9] Jean-Luc Nancy em À escuta (2002).
[10] Poema “I dwell in Possibility” (466) de Emily Dickinson https://www.poetryfoundation.org/poems/52197/i-dwell-in-possibility-466
[11] Barthes em A Morte do Autor (1967).
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