Ellen Maria M Vasconcellos nasceu em Santos e mora em Brasília. É doutoranda em literatura hispano-americana na USP, editora de didáticos em inglês e espanhol, e tradutora (e-galáxia, Moinhos, MASP, Cult etc.). Também é autora dos livros de poemas Chacharitas e gambuzinos (2015, edição bilíngue) e Gravidade (2018), ambos publicados pela editora Patuá. Contato: https://ellenmartins.wixsite.com/home
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Que escapam
Todo dia normal
eu fico a morder cotovelos
a passar pomada nas orelhas
a fingir que não vejo
a rezar para que isso passe
Nos outros dias
eu bebo muito
e falo mal dela
espremo espinhas no nariz
enquanto espero que isso passe
como se não soubéssemos
como se em silêncio
não implorássemos
para que os sentidos se inundem
e se escapem
como se arrancassem o abrigo
de um morto.
*
Ao combate
face ao silêncio
pulsa
levando a personagem ao encontro
das armas
tesouros
– passo
inimigos
à sala escura
nada disso tem ou faz
tanto sentido
quanto ao resto da história,
parece
um passado em falso
no que já é
quase o fim
do jogo
essa é uma fase sem
nenhum tipo de som
o que faz com que seja
tudo mais
dificultoso
o sabre dilacera
orientado
dois toques apenas
e volta ao cavalo
este de certo
devia ser
o último
espreita
outras salas
nada
mas o vazio previsa
a descoberta
caminha
com olhos nas costas
se vira e
um jogo de câmeras
– muito bem desenhado –
mostra o motivo
famílias inteiras
pausa
respira,
larga um pouco o controle
fuma um cigarro
um gole d’água
aqui é onde paramos
e decidimos
ir com tudo
para o chefão.
*
Esfoliar
jogar o que precisa ralo abaixo
permanecer um pouco mais
com ela debaixo das unhas
mas antes
sentir o chamado
estar em frente à mesa
enfrentando um texto
o que quer que seja
cutucando as espinhas
os folículos esgarçados
a superfície invadida e exausta
chegado o momento
do preparo da pasta
algo cremoso e frio
algo quente e granulado
com fruta e propriedades
que costumam ser consumo
do lado de dentro
lava-se o rosto
se olha nos olhos do espelho
e se encara sem parar
pra pensar na mediocridade da cena
da fracassada exigência de livrar-se
lambuza-se com vera vontade
deixando apenas os buracos da cara de fora
respira-se menos e espera
com um tolo anseio de reparo
volta-se ao texto
já sabendo que não poderá voltar integralmente a ele
não funciona a atenção plena
quando se planeja escrever e fazer
uma limpeza de pele
ao rever-se no espelho
esfrega-se a face com os dedos
uma lenta e violenta leitura em braile
e os grãos esfolam o que parecia
ou realmente era encravado
fecha-se os olhos
respira-se ainda menos
agora sim
certificar-se que dessa vez foi
ralo abaixo
e o espólio debaixo das unhas
sempre o desejo de tomar água
o reflexo interno do arremate
sensação similar a lavar o banheiro
e querer se banhar em seguida
respira-se finalmente fundo
com a firmeza do corpo
de manter o copo ante a gravidade
da cozinha direto à mesa
e, vida nova em folha,
volta-se ao texto
repetir semanalmente
ou cada vez que lembra dela
torna-se um hábito oblíquo
de pensar no que resta.
*