bordão dos bordões estampado nos melhores trapos e na pior alta costura: “a tradutora é uma traidora” – mesmo que na nossa língua machista [e racista, homofóbica, etc.] lemos-ouvimos no masculino. fonte segura do século XVI, malinche em pessoa me apareceu em sonho pra dizer: quando trump separou as crias da mamis e quis botar um muro separando o mundo da sua coroa megalomaníaca, culparam a minha tradução – tradutora, traidora.
e junto do bordão, o rabo do cometa vem enrabado com o arremate: “só leio no original”. risos.
fico pensando nas folhas e folhas sagradas traduzidas por João Almeida Ferreira e que viraram puro pango de angola enquanto se cantava fogo na babilônia ou na bahia. nos yoga sutras de patanjali que minhas costas inverteram e que a galera goodvibes reproduz em yogamats de 200 paus trocados a cada dois meses porque o suor é tão corrosivo quanto os risos autênticos dos sem-dentes; porque o suor é tão carnal quanto betty davis [sim betty a preta e não bette a branca]; o suor é tão quente quanto os calangos comestíveis de fortaleza fugindo de quem tem fome.
eu penso em muita coisa, só não consigo pensar muitas línguas, embora consiga beijar muitas línguas.
eu penso em muita terra arrasada, só não consigo pensar a partir de suas línguas mortas, embora consiga pensar em pilhas de gentes mortas desde todos os genocídios desde que o mundo é mundo.
eu penso os amontoados de inquiliners lutando pelo direito à moradia e à cidade em berlim, só não consigo pensar em como organizam a porra toda se penso que tão fazendo-falando tudo em alemão.
eu não falo alemão. não ouço, não leio, não entendo bulhufas, necas, nadinha. só sei o que é liech bi liech e com certeza tô escrevendo errado [não vou ali conferir na janela ao lado: há uma beleza nisso, o erro, o fracasso, o punhal da traição que é tão somente questão de sobrevivência], mas amar eu sei amar direito, amo com os peitos e com o corpo inteiro, até com as unhas, e até com os pêlos, mesmo quando tô depilada.
e ainda que eu falasse a língua dos anjos alemães sim ainda assim eu leria na língua tupiniquinim “anjos não têm sexo”. talvez em alemão estivesse escrito algo como anjes não têm sexo [“je vois des anges!” diria manuel dando bandeira]; talvez em alemão estivesse escrito algo como anjes são não binários [ou bipolares ou bizarros ou bilionários, sugere a janela vizinha]. que história pra boi conservador dormir! entre a oração e a ereção ora são, ora não são [o que não sabe o original, sabe a tradução, e viceverso].
todas as línguas são tão boas ❤ duas línguas dão mais prazer que uma. e três mais que duas. e sempre cabe mais, só não cabe tempo pra aprender amar essa babel sem fim.
traduzir é uma delícia. ler textos traduzidos – poemas, é uma delícia. colocar uma ali peladinha ao lado da outra, mesmo conhecidas – desconhecidas: novas poemas, delícias.
mas: eu nunca falei alemão, e esse é um dado muito importante. a maioria das pessoas nessa terra onde queimam florestas e cortam línguas e matam gente pobre e preta e interditam corpos nunca falaram e nunca vão falar alemão. então só podemos amar e amar muito a cama feita tão delicadamente por Valeska Brinkmann. e como estou inlove com essas poemas. e como podemos entender muito exatamente em brasileiro como é estar cansada Lioba Happel, e seu ódio e medo e amor, e entender muito mesmo, ó e como, quando escreve sobre um presidente montimerda; e minha nossa, até posso vê-la, olhar Lioba, assim meio que com Valeska na nossa frente como se fosse um halo transmissor, um dispositivo de linguagem, e fico olhando muito pros olhos de Lioba [adoro seu nome Lioba], que são olhos de Valeska também, te olho tanto esta poema que ela se funde noutra, criando asas querida, criando ossos queridas, porque é poesia enfim, e poesia é feita de muito mais que palavras, idiomas. é minha língua nas tuas.
nina rizzi
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Lioba Happel nasceu em Aschaffenburg, 1957, norte da Baviera. É autora de poemas e textos em prosa. Estudou Serviço Social em Bamberg, depois Estudos Alemães e Hispânicos; concluídos em 1986 com um mestrado na Freie Universität de Berlim.
Trabalhou como escritora freelance em Berlim. Ainda hoje desenvolve um trabalho autônomo como tradutora de inglês e francês, revisora e profesora de alemão, em Berlim e Lausanne (Suíça), e paralelamente também trabalha com pacientes com distúrbios de demência.
Happel teve longas estadias na Inglaterra, Irlanda, Itália e Espanha. Alguns de seus poemas foram musicados e apresentados em saraus e feiras literárias pela Alemanha.
Foi agraciada com vários prêmios e bolsas, entre os quais o Friedrich-Hölderlin-Förderpreis em 1989 e a residência artística da Villa Maximo (Roma) em 1994. Em 2020 ganhou o prêmio de Poesia da Faculdade Alice Salomon, em Berlim (entregue em janeiro de 2021) e será professora convidada no ano letivo de 2021 nessa mesma instituição.
*
Li pela primeira vez a poesia de Lioba Happel na revista literária Poetin, de Leipzig. Logo me senti atraída ela sua escrita imprevisível, instável, cujas imagens contam de outro tempo e lugar, de alguma forma familiares, mesmo não sendo.
Foi por essa escrita conter uma ambiguidade séria, proximidade e distância; ser ao mesmo tempo dilacerante e cética, que desejei me aprofundar mais em sua poesia.
A partir do seu trabalho como assistente social, especificamente com pacientes em situação de demência, faz suas reflexões sobre a doença transmutarem em imagens de linguagem. Segundo ela declara numa entrevista: “A demência, para mim, se tornou uma espécie de poesia que se apresenta na dureza, na dificuldade: variando lugar e palavra. ”
Happel recentemente afirmou que o interesse em estudar serviço social foi além da curiosidade: a compreensão da noção de alteridade, o desejo de ajudar. E fazer poesia pode também ajudar? – é ela mesma quem levanta a questão.
A poesia de Happel é a expressão de diferentes idiossincrasias. Procurei manter, na minha tradução, a estrutura e a ambiguidade das palavras. Às vezes dei preferência às imagens à sonoridade. Durante o trabalho surgiram inúmeras dúvidas das mais simples como que gênero usar, até mais complexas como palavras inventadas e imagens figurativas em alemão que eu não conhecia. Interessante no processo é que tive a oportunidade de tirar dúvidas com a própria Lioba, a quem agradeço imensamente.
Traduzir é algo que me dá um estranho prazer, é uma ginástica mental, que me permite explorar diversos dicionários – até de um amigo engenheiro -, experimentar palavras, sons, além de inspirar minha própria escrita.
Com essa pequena amostra tenho o prazer de apresentar o trabalho de uma valorosa poeta alemã contemporânea ainda inédita na língua portuguesa.
Os três primeiros poemas são mais recentes, de 2017, e os três últimos de 2009 e pertencem ao livro Puls 100 Gedichte – Edition Pudelundpinscher, 2017, Suiça. (www.pudelundpinscher.ch)
Valeska Brinkmann
*
Pulso
Quando você está cansada não lhe ocorre
como se chama o veneno que você bebeu ao invés da própria vida
e se a palavra veneno devia aparecer mais uma vez em um poema
como é beber o Rio do
Esquecimento e se o sibilo no seu lábio
vem de querer escrever poesia ou do tremer
Quando está cansada você segue o caminho que quer
segue para dentro da mata espessa onde raposas estão sentadas prontas
para cuspir as iscas da raiva prontas
para se afastar majestosamente ou
com rostos velados pela espuma
acossar você esperar por você até
quando você se cansar
raquíticas e famintas com seus
olhos de raio-x à noite
Quando você está cansada não importa se lhe convidam
para comer no meio delas o frango ou se
atacam trituram seus ossos fazem a ceia
Quando você está cansada você para de lamber o sal dos
polegares e lágrimas estão tão distantes como
rios de verdade em um poema sobre rios que também não se molha
Quando você está cansada você não pergunta a sério
por que um poema sobre rosas não tem perfume
por que ele não entranha espinhos nos seus dedos
por que não uma manhã desbotada de dedos ou
nobreza inglesa amarelada ou cor de sangue tinto
de Kissinger não respingam do poema
Quando você está cansada você imagina
que a poesia poderia muito bem existir sem você
com ou sem um poema seu
ou ter perdido a razão
Quando você está cansada não sabe mais mesmo
se ela ou você ou o próprio mundo com o
sem um poema seu existe
mesmo que você adormeça
mesmo quando você se for
Puls
Wenn du müde bist fällt dir nicht ein
wie das Gift heißt das du statt deines Lebens getrunken hast
und ob das Wort Gift noch einmal in einem Gedicht
genannt werden darf wie es ist den Fluss des
Vergessens zu trinken und ob das Zirpen an deiner Lippe
vom Wunsch zu dichten kommt oder vom Zittern
Wenn du müde bist gehst du den Weg den du gehen willst
hinein in das Dicklicht in dem Füchse sitzen bereit
die Köder der Tollwut auszuspeien bereit
auf und davon zu stolzieren oder
mit schaumumflorten Gesichtern
wenn du müde bist es auf dich
abgesehen zu haben auf dich zu warten
ausgemergelt und hungrig mit ihren
Röntgenaugen bei Nacht
Wenn du müde bist ist es gleich ob sie dich einladen
das Huhn in ihrer Mitte zu fressen oder ob sie dich
anfallen deine Knochen zerknacken das Mahl halten
Wenn du müde bist leckst du nicht mehr das Salz von deinen
Daumenballen und Tränen sind so weit fort wie wirkliche
Flüsse in einem Gedicht über Flüsse das auch nicht nass wird
Wenn du müde bist fragst du dich allen Ernstes
warum ein Gedicht über Rosen nicht duftet
warum es dir nicht Dornen in die Finger krallt
warum nicht falber fingriger Morgen oder
gelber englischer Adel oder dunkelblutige
Kissinger Farbe aus dem Gedicht tropfen
Wenn du müde bist bildest du dir ein
die Poesie könne getrost auch ohne dich
mit oder ohne ein Gedicht von dir
oder nicht ganz bei Trost sein
Wenn du müde bist weißt du überhaupt nicht mehr
ob sie oder du oder die Welt selbst mit oder
ohne ein Gedicht von dir ist
selbst wenn du einschläfst
selbst wenn du fort bist
*
Um pequeno movimento no sono e eu já sabia
que estava sendo odiada
Não soltei as amarras dos pesadelos
nem bradei gritos raiventos de guerra
Nenhuma bandeira quis ser hasteada
nenhum desespero descer nas canoas por entre talos
Nos canaviais espreita aquele que me ama, aquele que me odeia
Ódio, ódio – está gostando coraçãozinho?
Nisso alguém estica a língua pra você
e você não sabe se está morrendo
de medo ou amando
assim ofuscada você leva a mão sobre os olhos –
como se estivesse à procura da verdade
se é amor, e não ódio, amor que mata
Amor, volte para os arbustos
deixe os galhos tragarem você
esconda-se na vegetação rasteira
amor desfaleça, amor apodreça, desfaleça…
Eine kleine Bewegung im Schlaf und ich wusste
dass ich gehasst werde
Keine Alpträume ließ ich vom Stapel laufen
auch keine kleinen zornigen Kriegsrufe
Keine Flaggen wollten gehisst werden
keine Verzweiflung sich in Kähnen zwischen die Halme werfen
Im Schilf lauert der, der mich liebt, der mich hasst
Hass, Hass – wie schmeckt dir das Herzchen?
Da streckt dir eine die Zunge heraus
und du kannst nicht spüren, ob du zu Tode
erschrocken bist oder liebst
so geblendet hebst du die Hand über die Augen –
wie man halt Ausschau hält nach der Wahrheit
ob es Liebe ist, nicht Hass, Liebe, die tötet
Liebe, zieh dich ins Gebüsch zurück
lass die Zweige über dir zusammenschlagen
verbirg dich im Unterholz
Liebe verfalle, verfaule Liebe, verfalle…
*
o presidente é um
assistente de ligação.
casado consigo mesmo, fica óbvio
ele é querido deus. um seria, um será, um foi
sou sempre eu. um letargo, um não se mexe
um livro ilustrado, motim, gravata
embuste chanfrado, atômico, um botão
um cotoco de fezes arremessado pro alto, uma cabeça
um carniceiro, sonho na fossa
o reverso de servo do senhor, animal sem instância
peixe sem rede, um calafrio é
brutalmente gélido, abrasivo, visto à luz
ele finge não ter qualquer significância, diz
pessoa não há, a quem ele sirva
der präsident ist ein
verbindungsassistent.
vermählt mit sich, wird deutlich
ist er lieber gott. ein würde, werde, war
bin immer ich. ein schläfer, ein beweg dich nicht
ein bilderbuch, krawall, krawatte
schräg gebürstet, atomar, ein knopf
ein hochgeworfenes stück kot, ein kopf
ein schlächter, traum im schacht
verdrehter knecht des herrn, tier ohne not
fisch ohne netz, ein schüttelfrost ist
brüllend eisig, heiß, bei licht besehn
tut er bedeutungslos, sagt
wem er dient, den gibt es nicht
*
agora anoiteceu
agora vejo você
você mantém os olhos fechados
no fundo de um poço
você mantém os olhos fechados
como se caísse em mim
devo ter tido um sonho ruim
em que você nada era além de um sonho
quando você abrir os olhos
já estarei acabada
agora anoiteceu
agora olho para você
jetzt ist es nacht geworden
jetzt sehe ich dich
du hältst die augen geschlossen
am grund eines brunnens
du hältst die augen geschlossen
als seist du in mich gefallen
ich habe wohl schwer geträumt
dass du nichts als ein Traum seist
wenn du die augen öffnest
wird es mit mir vorbei sein
jetzt ist es nacht geworden
jetzt sehe ich dich an
*
chamado matinal veranil do céu
ministros do ouro estão a caminho, penso eu
estremeço as asas uma vez mais
me lembro dos tempos sonantes porque
de repente, o vento volta a soprar
como desassossegos sobre zonas noturnas
sommermorgenruf des himmels
goldminister sind unterwegs glaube ich
schüttel die flügel noch einmal
erinnere mich an schallzeiten weil
plötzlich der wind wieder kommt
wie einiges haderndes über die nachtzonen
*
Meu pai foi ao cipreste com tanta certeza
Num piscar de olhos um gato senta na árvore
O gato é esperto e quer conversar com ele
Meu pai para e olha para o chão em silêncio
Indiferentes ficam lá para sempre
É bom que o gato seguiu meu pai
Ele não consegue entender a conversa
Eu no entanto não tenho mais permissão para abraçá-lo
Agora ele escuta a lua eu abro minha boca
Um som flui do limite do pensamento conjunto
Através de seus ossos até o solo arraigado
O som se torna a palavra que nos manteve sempre controlados
Meu pai foi ao cipreste com tanta certeza
Agora ele partiu
Agarro o gato
Pare de chamar por ele
Mein Vater ist so sicher zur Zypresse gegangen
Im Handumdrehn sitzt eine Katze im Baum
Die Katze ist klug sie will mit ihm sprechen
Mein Vater bleibt stehen und blickt schweigend zu Boden
Sie sind gleichgültig dort sie bleiben für immer
Es ist gut dass die Katze meinem Vater gefolgt ist
Er kann nicht verstehen was ihr Reden bedeutet
Ich aber darf ihn nicht mehr umarmen
Er horcht jetzt auf den Mond ich öffne den Mund
Ein Laut fließt vom Rand des gemeisamen Denkens
Durch seine Knochen bis tief in den Boden
Der Laut wird zum Wort da uns immer in Schach hielt
Mein Vater ist so sicher zur Zypresse gegangen
Jetzt ist er fort
Ich greif mir die Katze
Hör auf ihn zu rufen
*
Valeska Brinkmann, 1972, nasceu em Santos. Estudou Rádio e TV em São Paulo (Faap). Trabalha na emissora pública de Berlim, onde vive há 18 anos. Escreve poemas e contos.
*