Um centro anda na margem: Alberto da Costa e Silva (1931—)

Alberto da Costa e Silva - Autores - Bazar do Tempo

Este é um ano de números redondos para a poesia brasileira: até o momento, já fizeram 90 anos Augusto de Campos (1931—) e 80 Leonardo Fróes (1941—), ambos poetas de fevereiro, com um percurso e uma recepção muito diversos, porém hoje fundamentais para os leitores atentos de poesia contemporânea, mesmo que ambos continuem sem uma obra reunida em catálogo contínuo. Logo chega o momento em que Alberto da Costa e Silva também completará seus noventa anos no dia 12 de maio. No entanto, se o seu nome é conhecido por quase qualquer pessoa interessada em cultura e história brasileira, sua trajetória de poeta permanece sendo periférica, sem grandes recepções da crítica acadêmica ou da própria poesia mais jovem.

Aqui quero, modestamente, tentar duas contribuições modestas para homenagear o poeta vivo. Por um lado, elencar algumas causas possíveis para que sua poesia ainda seja pouco lida; por outro, apresentar uma breve antologia de seleta personalíssima minha, assim ampliando um pouco o que temos dele na rede.

Vamos às possíveis causas da pouca leitura e impacto de uma poesia forte como a dele:

  1. Vejamos o que nos diz a Wikipédia “Alberto Vasconcellos da Costa e Silva GCC • GCSE • GCIH (São Paulo, 12 de maio de 1931) é um diplomata, poeta, ensaísta, memorialista e historiador brasileiro, membro da Academia Brasileira de Letras e atual orador do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Foi distinguido com o Prémio Camões de 2014.” [Negritos meus]. Daqui percebemos que Costa e Silva é descrito como cinco coisas ao mesmo tempo (diplomata, poeta, ensaísta, memorialista e historiador), que já recebeu as maiores honras possíveis no mundo formal: membro da ABL, orador do IHGB e premiado com o Camões. Se isso pode parecer contraditório com a falta de leitura como poeta, eu afirmo aqui o contrário: para além da nossa ânsia de escolas literárias (que comentarei abaixo), nós geralmente não lidamos com autores que são realmente bons em mais de uma área; assim, como ele é um nome incontornável como erudito, sobretudo como historiador, a sua poesia fica de lado, como se fosse mero anexo. Casos similares acontecem; para ficarmos com apenas um exemplo, lembro Chico Buarque (1944—, também prêmio Camões) como romancista e dramaturgo, práticas que permanecem como anexos da sua faceta central de cancioneiro.
  2. Alberto da Costa e Silva é membro da Academia Brasileira de Letras. Novamente, parece que estamos diante de um paradoxo, mas é muito pelo contrário. A relação geral do desenvolvimento da literatura brasileira, em prosa, teatro e verso, ao longo do século XX e XXI, mostra uma verdadeira antipodia entre a ABL e o reconhecimento mais vasto. E isso tem lá seus motivos muito claros, já que a Academia acolheu nomes no mínimo estranhos tais como o cirurgião plástico Ivo Pitanguy (1926—2016) e o ex-presidente José Sarney (1930—). Claro que a ABL já acolheu nomes muito mais instigantes, tais como Guimarães Rosa (1908—1967) e Ferreira Gullar (1930—2016), porém ela segue sendo um espaço bastante avesso às demandas do presente, como atesta a recusa da cadeira vaga a Conceição Evaristo (1946—). Guimarães Rosa não teve tempo de ver o que aconteceria com seu nome imortal em vida — morreu antes. Mas Ferreira Gullar talvez represente bem uma certa guinada conservadora em sua carreira ao também se imortalizar nos banquinhos da ABL. Em outras palavras, a ABL tem seu quê de IML, embora afirme imortalidade. Alberto da Costa e Silva paga o preço por almejar o centro e aceitar o conservadorismo inerente.
  3. Citarei títulos de poemas quase ao léu: “Elegia serena”, “O parque”, “Vesperal”, “Soneto”, “soneto a Vera”, “A janela”, “Poema de aniversário”, “A bilha”, “Um artesão”, “Sonetos rurais”, “Uma tarde em Caracas”, “Assobio”, “Outro adeus”, “Imitação de Botticelli”, “O meninvo a cavalo”, “A um filho que faz dezoito anos”, “O café na copa”, “Poemas de avô”, “Murmúrio”, “Amor aos sessenta”, “Testamento”. O que vemos aqui é uma série de tópicas e escolhas de títulos que remetem, quase sistematicamente, a modelos românticos ou do primeiro modernismo brasileiro: tudo gira em torno de afetos, de reminiscências infantis, de espaços rurais, ou da vida privada e cotidiana. Nesse aspecto vai contra quase tudo que se prezou na poesia brasileira das últimas décadas, crescentemente urbana, aspirante a cosmopolita, em constante flerte com a cultura de massas e a velocidade da vida cada vez mais tecnicizada e, nos últimos anos, digitalizada. De certo modo, as tópicas de Costa e Silva parecem mais próximas de movimentos como o Armorial, que em certo sentido perdeu quase todas as suas batalhas, apesar de ter promovido alguns grandes nomes (lembre-se que mesmo a poesia de um Ariano Suassuna está praticamente esquecida).
  4. Quero também dizer que sua poesia não sugere temas tradicionais apenas, mas também faz um uso das formas tradicionais, como o soneto, que é talvez o modelo mais recorrente em toda a sua produção, junto com um certo verso livre que remonta a Drummond. Seria o caso, necessaríssimo, de revisarmos o uso da fôrma em sua poesia, porque ali encontramos uma série de torções sutis que revelam um artesão fino da língua, como Maria Lúcia Alvim. Nossa aversão ao tradicional revela mais sobre nós mesmos e nossa ânsia de modernização do que sobre nossa capacidade de abertura aos modos vários de existirmos num mesmo país.
  5. A poesia de Alberto da Costa e Silva pode ser muitas coisas, mas certamente não é armorial. Como não foi propriamente modernista, nem concreta, nem marginal. Como Heleno Godoy (1946—), Hilda Hilst (1930—2004) e Maria Lúcia Alvim (1932—2021), ele talvez tenha mais pontos em comum com a Geração de 45 (Godoy também com a Poesia Práxis), porém também escapa dali tanto no tempo (tinha apenas 14 anos em 1945) quanto nos desdobramentos, por exemplo, pela dedicação quase obcecada com o espaço concreto que constrói suas paisagens internas, ou pela sintaxe truncantes. Não cabendo em escolas, tal como Alvim, Hilst e Godoy, também ficou de fora da história literária tal como estamos acostumados a contar: sendo já historiador renomado, membro da disfuncional ABL e de difícil categorização em linhas duras, foi para a lista dos poetas menores.
  6. Alberto da Costa e Silva é um poeta bissexto. Publicou apenas 8 livros em quase 70 anos: O parque e outros poemas, 1953; O tecelão, 1962; Alberto da Costa e Silva carda, fia, doba e tece, 1962; Livro de linhagem, 1966; As linhas da mão, 1978 (Prêmio Luísa Cláudio de Souza, do Pen Club do Brasil); A roupa no estendal, o muro, os pombos, 1981; Consoada, 1993; Ao lado de Vera, 1997 (Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro); que estão basicamente coletados de modo um tanto livre em Poemas reunidos, de onde extraio a antologia. Assim sendo, a sua obra é de fato bastante curta, não chegando nem a 200 páginas contínuas, apesar dos seus quase 90 anos. Nesse aspecto, lembra muito a concisão de Augusto de Campos, embora estejamos falando de dois poetas quase opostos em tudo. Junto a produção curta, Costa e Silva parece ter cuidado pouco da vida literária, talvez porque já tinha a vida diplomática e historiadora e familiar para sustentar. Escreveu poemas, sim, e alguns mais certeiros do que os melhores poetas contemporâneos seus; porém fora do círculo literário, esteve no centro permanecendo à margem.
  7. “O prazer do difícil”, uma tópica tirada de Yeats, virou quase adágio obrigatório no Brasil, assim como o mote “poesia é risco”; no entanto, na prática, o que vemos é uma verdadeira preguiça intelectual de encarar poetas que pensam de modo difícil. É o que vimos acontecer com obras como Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima, que, apesar de reconhecida, segue sendo pouco lida e estudada, mesmo com seus mais de 70 anos: o fato é que a virtuose linguística, o arrojamento imagético, a experiência surrealista (e no caso de Lima também seu pendor católico) fizeram com que a obra seja reconhecida e deixada num limbo a um só tempo. Talvez o caso mais singular de quem conseguiu escapar disso seja Guimarães Rosa, mas ainda assim eu lembraria que Tutameia, o projeto mais radical de concisão, cortes abruptos e experimentação sem concessões, é também dos menos lidos. Dou apenas um exemplo na abertura do poema “Bilha”, de Costa e Silva. O que fazemos com essa profusão de imagem em sintaxe truncada, que demora oito versos para dar um primeiro respiro?

    Assim o barro, em tuas mãos pequenas,
    e machucadas, ergue um voo, povo:
    é um ai de terra, sem nenhum tormento,
    um ai de rir e flora, de macio coito
    de porcos, quase asa de garça, quase
    paina de jatobá, esta moringa aberta
    ao frescor que há no sol, charque, avoante,
    forma de prenha mulher, quartinha, pote.

    Sem qualquer pretensão de análise ou hermenêutica, reparem nos cortes e na proliferação de imagens, como promovem a multiplicação de pontos de vista na sinestesia entre ver, tocar e conceber o barro a ser moldado; como o decassílabo é tensionado por rimas toantes ou verdadeiramente tortas (povo/coito, pequenas/tormento, quase/avoante, aberta/pote); como o corpo inteiro se abre às sensações numa construção milimétrica que, paradoxalmente, parece aberta ao acaso e ao desvios desejantes.
  8. Oriundo de uma aristocracia local, reconhecido com títulos de nobreza em Portugal, membro da ABL, diplomata de carreira, escritor premiado, historiador reconhecido, poeta do campo e da família, com inúmeros poemas dispersos pela internet em jornais de revista, Alberto da Costa e Silva está no centro do centro do centro, está, por isso mesmo, posto à margem, pouco lido pelos poetas mais jovens, com pouca repercussão de leituras e estudos nas frentes mais impactantes dos nossos contemporâneos. Sua poesia, no entanto, é tensa, densa, viva, pede que a tentemos ler na profusão complexa de vozes fortes que constituem nosso estoque poético vivo. Se o deixarmos preso ao centro, sem uma devida leitura crítica, a perda é toda nossa.

* * *

Rito de iniciação

§  meu pai dizia as mangas que enverdeçam
    para que o sal lhes dê um novo gosto
    cortava o sol em fatias o sumo o rosto
    sujava de luar de mate ou pouca
    luz que fundeia na sombra da jaqueira

    chegava à carne do fruto à rude juba
    que arma em fera a pele do caroço

§  à margem do curral mergulho aberto
    do tamarindo meu pai dizia fazes
    o desgosto compões cada segredo
    a criciúma os ninhos nos alpendres
    o adeus com flores os ombros dos mendigos
    a sustentar a curva porta os cegos
    a cavalo e os porcos nos açougues

§  o azul é rouco e teu meu pai dizia
    este silêncio de viração furtada
    outras monções com cheiro de goiaba

§  sabor só soturno soterrado
    dá a manga o trotar o alaúde
    meu pai dizia o sol é sal e o solo
    nada cultiva em nós nem a descalça
    morte rastro leve na farinha.

§

O Menino a Cavalo

1

Na lua do selim, as mãos. As rédeas
a sofrear a passagem do momento
em que, por pasto e barro, tenho à frente
o monjolo do tempo.
                                        Olho o presente
de novo, agora, o corpo traspassado
pelo peso das coisas que me tornam
no dolorido espaço em que renascem.

Nada se muda ao céu desta paisagem.
Gado, menino, cactos, folhagem
nem mais são ontem, nem o fui, nem sou
o que hoje sinto e amo, guardo e choro.

Jamais me achei depois. Foi minha ausência
o que salta no estribo, monta e parte.

E o potro pisa a marca de seus cascos.

2

Vamos de rédeas soltas nos cavalos mansinhos.
Atrás de nós, sacodem as cangalhas ofuscados jumentos
pela limpa brancura do sol sobre as folhas barrentas.
E, no ar, existem restos de azul
(suave como o ventre dos peixes)
e a essência das hastes
das palmeiras e das árvores,
em linhas de verde-claro afinadas pela luz.

Trazemos água de um rio
que corre, rente, abaixo
da areia fofa e úmida,
                                               e que aflora
mal cavamos com a mão
a lã que o disfarça.

Ali estivemos, a senti-lo fluir,
com o rosto junto à terra,
a receber, de um lado, um frescor de moringa,
o seu cheiro de sombra e vime de gaiola,
e do outro,
                        o ardor do sol,
olhar de pássaro cativo,
mãos sobre a lenha que se vai rachar, ou sobre a corda
com que se puxa o bezerro para a curta distância
que o separa do ubre, que lhe amarra a infância
ao engano da vaca
                                         — da rês que o lambe,
                                         como se fosse a vida.

Não pensamos na vida. Nem sabemos
que a conduzimos conosco,
nas mansas alimárias e nas pipas com água,
nas palhas que protegem os dorsos dos burricos,
nos dentes longos dos cavalos,
no olhar que, à distância,
vai recompondo bois, azulões, o nariz a escorrer de uma menina descalça,
a cortante conversa entre a sombra e o sol,
entre a cova e o deserto,
e que se vai fazendo,
também em nós,
no íntimo das formas,
o breve desenho infinitamente repetido,
que vemos nos corredores que descem,
no Vale dos Reis,
para a sala cerrada como um poço extinto,
como um estômago,
como o centro de um abacate sem semente,
onde se abre a noite de um céu com todas as estrelas,
um céu fechado, um céu
mais verdadeiro do que este
que vemos desde o nascimento,
porque feito com a mão humana, triste e solitária,
no verdadeiro escuro,
como que talvez convivamos
na morte — o céu de nossas pálpebras.

E alguém canta.
E vamos!
E alguém lança
bagos de carrapateira contra a anca do cavalo
que segue à sua frente.
E um outro recorda o ano que vem, com a mesma cena,
e nos convida a armar as arapucas:
                                                    Vamos pegar canários!
E há acenos de mãos a segurar rebenques,
talos de carnaúba e pedaços de corda.
E fingidos aboios. E risos. Inesperados galopes.
(Trazemos água de um rio que corre, rente, abaixo
da areia fofa e úmida.)

Vão alegres de luz, meninos a cavalo,
que nem notam a beleza sonolenta do barro e dos jumentos.
E alguém canta. E todos riem.
E alguém aponta, ao longe, o verdor de um açude.

Mas eu,
que já sabia chorar para dentro e que sentia
roçar na minha pele, incessante o sofrimento,
a estranha orfandade de estar vivo
e de ir a cavalo trazer água,
voltando
de algo que findara e que se fora em viagem,
como os passarinhos que vi morrer,
como as reses destripadas,
como as palavras que falamos cada vez mais baixo
e que se transformam
neste silêncio das mãos que apertamos
sobre os nossos joelhos,
eu

eu ali continuo,
de rédeas soltas, no cavalo mansinho,
a olhar para mim.

3

A mão de meu pai sobre o papel desenha,
quase num só traço, o menino a cavalo.

Sai de sua mão a mão com que lhe aceno,
e vai sobre o papel o menino a cavalo.

Choro sobre o colo do triste, e órfão e cego,
para tudo o que atado estava à vida, vivo,

mas sem sonho e sem carne, a falar-me sem nexo
sobre um céu e um sol de que foi desterrado,

mas que punha ao redor do menino a cavalo.

O rosto longo e só, rasgado pelas rugas,
o olhar a rever o que perpétuo tinha,

e que nunca me disse, em seu pensar cortado
do dia em que vivia (no seu convívio raro

com a cadeira de braços, o pijama, os seus pássaros,
a cinza e a rotina de estar morto, acordado),

no papel ele unia a mão que desenhava
à mão com que acenava ao menino a cavalo,

neste adeus em que estou, desde então, ao seu lado,
o menino que volta, a chorar a cavalo.

§

Soneto

Cerâmica e tear: as mãos trabalham
e constroem o amor num fim de tarde,
como jarro de rústico gargalo
ou fino pano arcaico. Sobre o barro

põem desenhos mais jovens de suaves
moças dançando e restos de paisagens
da infância e da montanha: perfis núbios
sobre o vermelho poente desse jarro.

E a substância mais tímida do sonho,
nas mãos do artesão, faz de seu pranto
e cismas, riso e ardor, tecido raro

em que se borda uma novilha, bela
como o beijo em setembro, em que se fez
o amor com outro fio e um outro barro.

§

Apreensão

Quando provamos um furto, acre ou doce,
é nosso o seu sabor, é nosso este segredo
que cada cousa oculta e nos recusa a posse
e sob a polpa densa e a muralha da carne
se abriga, defeso.

Ah, arrimar-se à tarde e saber este gosto
vindo, tão perfeito, da fonte dos mistérios
e descobrir em nós a essência que somos
em meio à evasão a que nos força o rumo.

E se concreta o nosso ser em contemplá-lo,
agora livre do seu fugaz invólucro,
não mais um fruto, mais convívio e morte,
não mais ausência, agora pura entrega
como a água bebida em tosco cântaro.

§

Passeio, ao crepúsculo

Do que sobra de mim, vazado o dia
dos seus frutos e formas repetidas
este acordar par os luares, isto:

ir, em silêncio, e solitário, e vento,
a me querer menor, mudo ou ausente,
grama que ao barro já se une, rente
ao limite do céu
                            — pois, este sendo
inatingível sol de onde estou eu,
parto em silêncio, a procurar em mim
tudo o que o sonho não repele e vê,

para que, no respiro do meu tempo,
possam gesto e olhar roçar o centro
piedoso de tudo, a dor de dentro.

§

Poema de aniversário

Foge o homem para o centro do deus que o persegue
e risca na própria pele a beleza da morte,
o provado desenho de uma infância, estas formas
que a minúcia do olhar recompõe na cegueira.

Já não sente os cavalos, nem recorda o que cerca
a sozinha indolência que revê no destino
de estar, rosto na relva, eterno e antigo, vindo
do sol sobre as clareiras para a limpa tristeza.

Segue os céus que repartem, entre o certo e o difuso,
o sonhar exilado do que breve lhe fica,
do que traz sobre os ombros, como achas, a vida,
só instante e distância, pobre húmus sem uso.

E joga o ser chorado e o que foi (recolhido
na sobra do menino que lhe fala ao ouvido)
sobre o colo e o abandono do deus que flui, calado,
entre muros de cinza, solidão e cansaço.

§

De Pé na varanda recordando

De pé na varanda recordando
o menino a tosquiar o pêlo do carneiro
flautas de um azul sobre a terra dos telhados
enquanto parto adeus! aceno do cavalo

logo as lavadeiras cantam a branda espuma
e o focinho estremece do animal detido
pelas rédeas na mão do menino no açude
tranquilo é o sol e o sonho é invertido

e se alguém nasceu por fugir do silêncio
nem por isso as palmeiras se cansaram
de sua sombra de cravo tocado pelos dedos
e louça da manhã disposta sobre a mesa

adeus! que já desabam as folhas mamoeiros
se partem à beira d’água enquanto indago e escuto
a minha voz o canto de um inferno vencido
pelo odor das mangas e o prostrado menino

que soluça tombado sobre o magro joelho
de um outro (velho) fácil é apear-se a cilha
se aperta depressa e dóceis são os dias
que a palavra recria como flores de cacto

mas vivê-los? vivê-los nem as bilhas
com sua clara frescura nos devolvem
esta alegria de sonhá-los altos
e não a areia pobre que nos deram

e se pelo natal devoramos castanhas
de que inverno nascem que dias adormecem
em sua polpa branca é a camisa que veste
o corpo solitário a beber o seu vinho

espanco o animal o pranto suja o rosto
salto o tear das flores até à vista! meus
são os verões por viver e os campos de dores
o sol não se disfarça nos olhos dos coelhos.

§

Vigília

Quando as lágrimas vêm, em vão fugimos
do que em nós faz o amor, em vão tecemos
vestes para cobrir o corpo nu,
que se nutre do pranto, humilde e humano.
Fazemos nosso leito. A mesa pomos.
O rosto se derrama em nossas mãos.
Queremos repartir a fome e o sono.
Vivemos nossa espera, enquanto, mudos,
fluímos para o encontro e retornamos
à infância, mansa páscoa, frágil vime.
Não mais somos nós mesmos; somos mais
do que nós mesmos ou alguém mais puro,
um sonho de não ser, ah, sendo e amando.

§

Flumen, fluminis

Ouçamos o fluir deste curso de rio
entre velhos muros imóveis de fadiga
não apenas meras lajes limitadas e cinzentas
mas pedras tristes e calmas
entre as quais escorre o límpido silêncio
da água que flui sobre a nudez
pura da morte

em nenhuma outra fonte, o cansaço
de ser manhã quando a noite se debruça
sobre nós, sofreremos
pois tão estranhos seremos ao murmúrio
de suas águas veladas
à música que nada anuncia a não ser primaveras
como agora, sôfregos, nos reclinamos
sobre o líquido móvel deste rio que leva
para o mar distante e irrevelado
estas formas maduras e tranqüilas
este sopro perfeito
daquilo que foi apenas o fugidio e precário pó.

§

Elegia

Sofrer esta infância, esta morte, este início.
As cousas não param. Elas fluem, inquietas,
como velhos rios soluçantes. As flores
que apenas sonhamos em frutos se tornaram.
Sazonar, eis o destino. Porém, não esquecer
a promessa de flores nas sementes dos frutos,
o rosto de teu pai na face do teu filho,
as ondas que voltam sobre as mesmas praias,
noivas desconhecidas a cada novo encontro.
As cousas fluem, não param. As folhas nascem,
as folhas tombam longe, em longínquos jardins.
Em silêncio, vives a infância de teus olhos
e, morto, és tão puro que te tornas menino.

§

A Despedida da Morte

Falo de mim porque bem sei que a vida
lava o meu rosto com o suor dos outros,
que também sou, pois sou tudo o que posto

ao meu redor se cala, e é pedra, ou, água,
cicia apenas: — O teu tempo é a trava
que te impede de ter a calma clara

do chão de lajes que o sol recobre,
este esperar por tudo que não corre,
nem pára e nem se apressa, e é só estado,

e nem sequer murmura: — O que te trazem
é o riso e o lamento, o ser amado
e o roçar cada dia a tua morte,

que não repõe em ti o, sem passado,
ficar no teu escuro, pois herdaste
e legas um sussurro, um som de passos,

uma sombra, um olhar sobre a paisagem,
memória, cálcio, húmus, eis que mundo
nada rejeita, sendo pobre e triste

no esplendor que nos dá. A madrugada.

§

Triste vida corporal

Se houvesse o eterno instante e a ave
ficasse em cada bater d’asas para sempre,
se cada som de flauta, sussurro de samambaia,
mover, sopro e sombra das menores cousas
não fossem a intuição da morte,
salsa que se parte… Os grilos devorados
não fossem, no riso da relva, a mesma certeza
de que é leve a nossa carne e triste a nossa vida
corporal, faríamos do sonho e do amor
não apenas esta renda serena de espera,
mas um sol sobre dunas e limpo mar, imóvel,
alto, completo, eterno,
e não o pranto humano.

§

A bilha

Assim o barro, em tuas mãos pequenas
e machucadas, ergue um vôo, povo:
é um ai de terra, sem nenhum tormento,
um ai de rir e flora, de macio coito
de porcos, quase asa de garça, quase
paina de jatobá, esta moringa aberta
ao frescor que há no sol, charque, avoante,
forma de prenha mulher, quartinha, pote.

Inverso estio moldas em terra e água,
cor de palha e de mel, meu povo, sem distâncias
de serras com que sonhas junto ao cacto,
mas que entorna a noite de seu bojo.

Se o colas ao rosto, vêm as brisas
dos regatos e à boca chegam barro
e ondas de um rio que são choros de parto,
breve esperar, sentido amor, memória
da meninice em tuas mãos que moldam
casa, banco, alguidar, bilros, cancela,
anjos toscos, na fome de teu corpo.

§

Soneto

Quando o sonho se acolhe em nosso corpo,
e o céu navega para nós, alçadas
as nuvens, e as cousas que pensamos
serem caladas, por avaras, falam,

e a flor mais suja sobre a cerca podre
se constela em jardim, e a noite cede,
pendurado morcego, à luz que cresce
das palavras que espero e aqui escrevo,

e quando o tempo não discorre e pára
o apertar do garrote, a roda e as armas
com que a vida a si mesma se guerreia,

tudo é completo, embora frágil, breve
e simples como a vela que se acende
e ilumina, no escuro, o encoberto.

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3 comentários sobre “Um centro anda na margem: Alberto da Costa e Silva (1931—)

  1. Tenho-o entre meus poetas diletos, junto ao Carlos Nejar e alguns outros. Tive o prazer de visitá-lo, ter alguns de seus livros autografados. Ele que sugeriu que eu passasse a usar o Von Sydow

  2. Tenho a impressão que Alberto da Costa e Silva padece de uma maldição da historiografia literária brasileira: estar próximo demais, no tempo e nos temas, da famigerada Geração de 45. Parece que as diatribes das neovanguardas contra os membros dessa geração desobrigou historiadores e leitores de se debruçar sobre os poetas dessa quadra (a Hilda Hilst parece que foi a única que, ainda que tardiamente, se viu livre dessa maldição).

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