essa língua tão áspera: heriberto yépez, por nina rizzi

H?

o ensinamento
fundamental
da
poema
é que
é
um
processo
da gente se ligar
que tá’contecendo
u’a coisa que
temporariamente
chamamos
poema.

Mas não é uma poema.
É u’a coisa supina, tremenda,
istorica.

H?

A poema é registrada na página.
Mas aconteceu noutro canto.

¿H?

La enseñanza
fundamental
del

poema
es que

es

un

proceso

de darnos cuenta
que está sucediendo
algo que
llamamos
poema.

Pero no es un poema.

Es algo superior, tremendo,
istórico.

¿H?

El poema se registra en la página.
Pero sucedió en otra parte.

*
Ypez_Heriberto_04_19_2006

Heriberto Yépez (Tijuana, 1974), é tradutor e escreve romances, ensaios, poesia e se dedica a temas ligados à cultura fronteiriça México-EUA. É professor na Universidad Autonóma da Baja California. Foi agraciado com diversos prêmios e entre seus diversos livros estão as novelas Al otro lado (2008), El matasellos e A.B.U.R.T.O (2004, 2005), os de crítica Ensayos para un Desconcierto y Alguna Crítica-Ficción (2001), Luna Creciente. Contrapoéicas norteamericanas del s. XX (2002), o de crônicas Tijuanologías (2006), e os de poemas El órgano de la risa (2008), Contrapoemas (2009), e El libro de lo post-poético (2012). Alguns de seus ensaios apareceram traduzidos na revista Sibila, pelos editores, sem menção a um/a tradutor/a específica. Faz conferências regularmente sobre seus temas de estudo e sobre sua obra como, por exemplo, nas Universidade da Califórnia, Berkeley, Harvard e no Museu de Arte Moderna de Nova York, e colabora em revistas de ambos os lados da fronteira México-EUA, além de escrever ensaios críticos regularmente em sua página pessoal Co_Laboratório _de_Crítica.

Conheci a obra de Yépez no facebook por volta dos anos 2010, quando alguém (acho que Fabiano Calixto), compartilhou alguma história sobre cachorros que não são abandonados e junto vinha uma frase de Yépez e eu fiquei BAMMM. Na época eu estava lendo Hubert Fichte, Jerome Rothenberg, meu beat preferido Gary Snider e tudo que podia encontrar de cantos indígenas da américa antes de ser américa do brasil antes de ser brasil e aquilo que se convencionou chamar etnopoesia, e aí aquela frasezinha arranhando no facebook fez um estrondo na minha cachola. Sai procurando tudo que podia achar do mano Yépez na internet e encontrei inclusive o e-mail dele que foi bem bacana em me enviar vários de seus livros.

Os estrondos não cessaram com aquela pedra-de-toque. Num dos ensaios que mais me impactaram “Rereading María Sabina”, Yépez escreve como Octavio Paz leu a poesia de Sabina como “àquela voz que vem do nada, inspirada, de um inconsciente não-mediado, uma alteridade a-histórica, sem contexto”, e que orientou Álvaro Estrada, seu tradutor, a suprimir termos e palavras que “não pareciam condizentes com a personalidade de Sabina” – que Paz não conheceu! –, mencionando apenas seu valor antropológico e humano, e não poético…

Fiquei pensando muito, e ainda penso, nessa mente colonizada que não quer ser colonizada, nos professores do meu curso de história que diziam “pense sob a perspectiva dos vencidos”, mas todos os textos disponíveis e sugeridos eram escritos desde uma perspectiva dos vencedores e afinal desde que nascemos toda a história vinha sendo contada desde essa perspectiva… e pensando nessa história do cânone, mesmo o cânone que gosto (diferente dos alencares que pego e me pegam tanto no pé), como é o caso de Paz com suas “águila o sol” e “piedra del sol”, só pra ficar na poesia…

E fui gostando muito de me bater com o Yépez nisso que a gente anda pensando mesmo separadão pelas fronteiras e juntes nesse tempo de enamoramento e colisão, de pixo e de “poesia-botox”, como diz Felipe Fabre sobre a omissão do ruído nos textos poéticos – ruído como referência direta à luta de classes, racismo, homofobia, machismo, populismo e tudo que não corresponda a visão aristocrática da poesia mexicana oficial (que embora esteja falando se poesia mexicana está falando de poesia brasileira, hm?). Essa “poesia-botox” é a adoção de estrangeirismos e seus estilos, sobretudos estadunidenses, de autores nascidos a partir dos anos 1950 e que começam a ser publicados nos anos 1990 e que pretendem ou dizem que estão fazendo uma renovação na poesia, quando na verdade estão metendo rasteira na gente com esses ares de novidade caduco total e de pernas abertas pros yankees: um neoconservadorismo e sua consequente poesia neoconservadora. Os dois também se batem nas ideias, isso de algum modo é o post-poético de Yépez e trisca bunito no manifesto Por uma poética antes do paleolítico e depois da propaganda, que traduzi pra esta seção.

O texto está no livro de mesmo título, publicado em 2000 e que compreende poemas, algumas traduções e os aforismos-manifesto que escolhi pra apresentar aqui, que é também onde está a frase-bomba que me levou até seu autor: “A dança, a poesia e a memória, tudo que nos foi ensinado pelas criaturas não-humanas. Os primeiros xamãs da linguagem são os animais selvagens.” BAMM!

Tenho uma crença profunda de que a poesia é uma teoria. O que Patativa do Assaré escreveu sobre o sertão nordestino é mais teorético que os estudos sobre sua obra – e só ele poderia escrever com tanta propriedade sobre o que escreveu e me comover à nina –; o que Mano Brown e Eduardo Taddeo escreveram sobre as quebradas é mais teorético que os estudos sobre suas obras – e só eles poderiam escrever com tanta propriedade sobre o que escreveram e me comover à nina –; O que as manas pixam nos muros; os que as monas escrevem no twitter; o que tantas pessoas me escrevem em mensagens particulares; vídeos que vejo de gente que não conheço; os jardins da mãe de Alice Walker e as esfirras da minha mãe; as mãos de nossas ancestrais nas paredes da Serra da Capivara e as pegadas e pegadas e pegadas de “poesia involuntária”: tudo isso é poesia e é uma teoria e faz um rasgo na história, no cânone, na paisagem e na porra toda e – com um alcance lúdico que a teorética não tem.

Esse manifesto também me lembra disso. Cada uma dessas pedras-de-toque. Me lembra ainda de me voltar sempre a ela: a poema.

nina rizzi
yepez2
POR UMA POÉTICA ANTES DO PALEOLÍTICO E DEPOIS DA PROPAGANDA

  1. A noção de “Literatura está completamente caduca. “Literatura” (letras, escritura), é um campo tão reduzido (mas o Cânone Ocidental tem se divertido bastante nessa lamaceira), que alienou a linguagem humana e a criação, nos separando das formas primitivas do Dizer: a oralidade, a pictografia, todas as variações da linguagem sem palavras e o dizer CORPORAL (performance, dança, teatro essencial, ritual), etc.
  2. A noção de “Literatura” deve ser abolida e em seu lugar deve ser retomado o conceito do Dizer. (Deixemos o estudo e a transmissão da Literatura às Universidades e Institutos de Cultura Paraestatal). Adentrar em todas as formas do Dizer, desde a poesia rupestre até à holografia, desde a etnopoética até a cibercultura.
  3. A poesia e todo o dizer provém (e se mantém) dentro da Natureza, não da Cultura. A linguagem tem origem animal e vegetal. A animalidade e a vegetalidade são a força no interior do Dizer. A origem da linguagem não está apenas nas palavras, mas também na carne do veado e nos fungos alucinógenos.
  4. O circuito da fala é um dos muitos ciclos naturais.
  5. O Dizer tem sido verbocêntrico há muito tempo. Provavelmente o terceiro milênio terá que evoluir as formas da linguagem separadas da palavra, anteriores à palavra.
  6. A gravidade da crise da linguagem exige que não só sejamos profundamente contemporâneos das épocas anteriores, mas também (talvez pela primeira vez na história humana), pessoas muito posteriores à nossa época (tão atrasadas espiritualmente, tão retrógradas axiologicamente). Reter a poesia pretérita e fazer já (mais que preconizar), a poética posterior ao nosso mundo.
  7. O que não é visionário é suicida.
  8. A metade do trabalho poético que fazemos deve ser feito no terreno da especulação. A especulação ilimitada até às (re)definições da poesia é mais importante, neste momento, que escrever poemas irreflexivos.
  9. Fazer poesia irracional desde as covas da consciência é pensar com superioridade à filosofia grega clássica.
  10. Cada autor, cada mulher e cada homem ou o que for, devem formular uma poética pessoal. Uma obra que não esteja sustentada em uma ou várias poéticas não é mais que uma emulsão de saliva.
  11. Transtornemo-nos uns aos outros.
  12. Provavelmente ainda deveríamos expurgar as arcas do passado poético humano, pois tudo aponta para o fato de que perdemos o futuro do Dizer faz muitos séculos. Talvez nos convenha conservar por um tempo uma poética do retrocesso, uma retropoética que nos leve de volta ao porvir e dilua a atual crise da linguagem.
  13. A linguagem atual não é seiva que brota, mas ácido que desfigura tudo que envolve.
  14. A crise da linguagem é uma das fases da clarificação da linguagem. A crise da linguagem precede a linguagem. A linguagem ainda não foi criada; até hoje vivemos no projeto da invenção da linguagem, nos ensaios gerais da gênese da linguagem. Todas as obras poéticas até o presente têm sido unicamente testes rumo ao verdadeiro Dizer.
  15. Somente a poesia dos povos faz parte das audições rumo à busca dos primeiros falantes, escreventes e cantantes da linguagem. Todo o resto de nossas falastrices e literaturas são meros pigarros catarrentos, tosses, bocejos de personagens exteriores às audições rumo à busca dos primeiros falantes, escreventes e cantantes da linguagem.
  16. O modelo aconselhável para o terceiro milênio, não é a “literatura” das grandes civilizações (o acervo greco-latino e depois europeu, nem mesmo a literatura hindu ou chinesa), mas o Dizer das pequenas comunidades. Nas aldeias nômades do mundo, nas tradições indígenas sobreviventes estão os elos perdidos do projeto do Dizer.
  17. Na Grande Audição é necessário escutar o Dizer de todos os Povos.
  18. Na origem da humanidade existia “o multiculturalismo”. No futuro, nas sociedades do terceiro milênio não faremos senão recuperar as crises e virtudes de nossos antepassados mais remotos.
  19. Todas as obras do passado devem ser traduzidas. Todos os clássicos devem ser reinterpretados, os nomes esquecidos devem ser restituídos, todos os idiomas devem ser reescritos. A metade da obra poética necessária para impedir a morte da linguagem é de índole crítica.
  20. Se uma geração não refaz todo o passado (retraduz, reinterpreta, reescreve, etc.), os tempos obscuros retornam. Basta uma geração passiva para assombrar todos os séculos de práxis poética.
  21. Basta só uma conversa estúpida, só um texto frouxo para matar a socos o trabalho de nossos ancestrais.
  22. Todas as convenções devem ser destruídas. O grande trabalho negativo (Tzara) é algo a se fazer permanentemente, as novas obras são sempre destruidoras. Quando se acredita que destruir é uma modinha (uma “vanguarda”), renovar se torna um “fenômeno passageiro” e está preparado o terreno para a volta da estagnação e o assassinato.
  23. Quando se escuta que já passou o tempo dos revolucionários, ainda mais necessária se torna a resistência contra a morte da linguagem.
  24. Se ouvimos atentamente a expressão “já passou o tempo da rebeldia, dos rebeldes”, podemos notar que seu som é idêntico ao metálico e assustador som da faca do açougueiro sendo afiada.
  25. O propósito da poética não é o embelezamento verbal ou o aperfeiçoamento dos artifícios literários ou a correta continuação dos estilos, mas a defesa da natureza, a transfiguração da realidade imediata, a sobrevivência material e a evolução espiritual de todo o mundo que nos rodeia.
  26. A força invencível contra as convenções é o Jogo. Quando se percebe no panorama poético que o Dizer deixa de ser lúdico, na verdade já deixou de ser faz muito tempo. Tudo o que não é jogo é “putrefato” (García Lorca).
  27. A pulsação humana é uma das modulações originárias do grande ritmo universal, como o mantra. A pulsação animal é o mantra primordial.
  28. As noções “formalistas” de métrica, rima e tropo devem ser definitivamente substituídas pelas de alento, pulsação e percepção.
  29. Toda vez que falharem as técnicas para criar uma poema ou descontaminar a “tradição” é preciso pedir auxílio à voz. A voz é um tratamento inestimável contra as doenças e crises da linguagem. A voz é o batismo e o exorcismo das palavras novas ou encapetadas.
  30. Todas as obras são fragmentos de uma grande partitura universal, de um processo ritmado do qual todos os seres são tempos e entonações. A boa obra poética é aquela que se insere, captura e pontua uma parte dessa partitura.
  31. O Grande Ritmo Universal está inteiro em cada um de seus fragmentos, um tamborilar sincero tanto como uma poema profunda refletem (ainda que seja por poucos segundos), toda a completa sinfonia do Grande Ritmo Universal.
  32. O ranger da folhagem ou o sincronizado rompimento das peles dos crocodilos contem num segundo toda a linguagem.
  33. O chuá da água, os sons das palavras são parte do Grande Ritmo Universal. Mas também, estranhamente, as machadadas nas aldeias assassinadas e as buzinas paranoicas das cidades.
  34. O Grande Ritmo Universal pode ser escutado e transcrito num baile, numa conversa, etc., tanto quanto numa poema.
  35. As grandes obras são aquelas que capturam um trecho desse Grande Ritmo Universal, que não deixam de tocar.
  36. Uma palavra é um ato enérgico drástico.
  37. Uma poema escrita deve ser um objeto visual para meditar.
  38. Nas mãos estão escondidas e através delas podem ser liberados alguns dos segredos superiores da linguagem.
  39. Para um escritore, as mãos são mais importantes que a “consciência”.
  40. Eu não distingo minhas mãos de meus pensamentos.
  41. Unidade do meio externo (teclado, caneta), as mãos, a voz e o pensamento. Se não há dissolução destas separações/ nomes, não há poesia.
  42. Levando em conta que não há “Ser”, mas Alteridade, o outro, a criação e a revelação de outre é o objetivo central da Linguagem.
  43. Entre todo mundo (Lautréamont), escrever a Sutra da Alteridade.
  44. Amor e Humor-Orgasmo e Sarcasmo são os únicos deuses em cujos altares vale a pena ofertar e se dar em sacrifício.
  45. O espírito da antipoesia não pode se perder. Caso se perca, os tempos obscuros retornam.
  46. A solenidade é um dos sinais do fim da humanidade.
  47. Cabe à poética inventar outra forma de amor que substitua este amor “romântico” que infestou nosso mundo e nossos corpos. A Poética é Erótica.
  48. A arte “intermídia” indica imediatamente sua analogia com as formas “artísticas” primitivas. A “nova” arte que se faz hoje nas telas dos computadores (e telefones, tablets), também foram feitas nas paredes das cavernas. Não se pode negar nenhum meio, nem existe intromissão da tecnologia nas artes, porque as artes sempre requereram novos meios. Sem sombra de dúvidas as “novas” técnicas nos aproximam cada vez mais dos meios e técnicas da poesia.
  49. Em algum tempo a escritura também foi um meio estranho para o dizer profundo.
  50. Está tudo bem acreditar que não há novo sob o sol… mas só se acreditamos que o sol nos ilumina de manhã é outro ao amanhecer.
  51. A fala é o amanhecer da poesia. Não deixe que a noite caia sem que tenha procurado alguma forma de que a poesia se faça escutar na escuridão. Vamos até a escuridão.
  52. Uma poesia que desuse (cancele) esse Eu lírico que todos praticamos.
  53. Para fazer poesia, não se precisa de um “Eu”, mas de um “Outre”.
  54. O projeto total da linguagem envolve a reconstrução da identidade individual. Implica a evolução para outra forma de identidade superior à do Eu.
  55. O Eu é uma sílaba suja que implica a negação de toda linguagem.
  56. O Dizer não pertence nem é protagonizado por uma única “Grande Tradição”. Existe uma pluralidade inumerável de tradições. Entre elas, às vezes existem intersecções, unificações ou desvanecimentos, mas quase todas, na realidade, são “linhas” paralelas que correm sem jamais se tocar.
  57. É preciso se colocar na Contra-Tradição, na ConTradição, na Contradicção. Na Contradicção da Contra-Tradição.
  58. Converter todas as tradições, as “linhas” das muitas tradições do Dizer, numa teia ou num tecido é o objetivo de quem faz poesia. Quem faz poesia deve se servir da trama de toda a história poética, do fio que atravessa todos os fios.
  59. A poesia de toda época tem inimigos. Esses inimigos quase sempre são poetas do presente ou do passado imediato.
  60. A tradição é idêntica à sua transformação; não existe rupturas na tradição, não existe continuidade da tradição, a transformação é permanente/ impermanente. Os únicos atributos seguros da tradição são que é irreal e desconhecida. A única tradição existente é a incessante transfiguração das tradições.
  61. O terceiro milênio deve se inserir totalmente na “dialética alucinante” da “tradição do deconhecido” (Lezama Lima). A única tradição “fixa” e “universal” é a busca, urdidura e renovação das tradições.
  62. É preciso voltar à poesia narrativa: histórica e de pequena-épica, Contar é tão importante quanto cantar. A história é propriedade natural da poesia.
  63. Se a lírica não é fisiológica não é autêntica, mas sucata sentimental.
  64. As funções elementais do dizer são sonhar e curar. Quando as palavras deixam de curar, quando a poesia perde sua função medicinal e não cura mais quem a faz e quem a recebe, já não é poesia, mas falsificação.
  65. A poesia como técnica para recuperar o sagrado (Rothenberg); a poética é o resgate, formulação e renovação das técnicas para criar, convocar ou manipular o sagrado.
  66. O sagrado é a linguagem pura, o Dizer puro. A poesia como técnica do sagrado é, finalmente, a coleção de técnicas para manejar a própria poesia. A poética é a técnica do sagrado.
  67. A poesia inventa a linguagem; a linguagem sustenta a poesia.
  68. O dizer é visionário. Nem sequer vale a pena falar de poesia que não é visionária. Aquele indivíduo que não crê ao fazer poesia se converte num vidente, está nos fazendo perder o nosso tempo e o dele.
  69. A poesia é um meio para entrar no corpo e na consciência, na dissolução de sua dicotomia.
  70. A poesia é o fundamento e o fim de todas as dualidades.
  71. As pessoas que encontram defeitos na linguagem para dizer as realidades ulteriores, vivem nesta falácia: assumir que a linguagem só transmite e faz bem seu trabalho se é lógica, nítida; esquecendo que a contradição e o paradoxo não são sinais de insuficiência da linguagem, mas de sua lógica.
  72. A impotência da linguagem é um fenômeno social, não um fenômeno próprio da linguagem (que é pura natureza).
  73. Quando a linguagem expressa contradições e paradoxos fala nos códigos primitivos do Dizer, quem não os entende, esqueceu esses códigos.
  74. Safo, “flor e canto nahuatl, cerimoniais tribais, etc., as origens da poesia também estão na dança. Poesia que não incite movimento corporal é fajuta.
  75. A dança, a poesia e a memória, tudo que nos foi ensinado pelas criaturas não-humanas. Os primeiros xamãs da linguagens são os animais selvagens.
  76. A poesia é a prova externa da existência de um mundo interior.
  77. A linguagem é o batente na porta do real.
  78. A porta do real se abre e nos mostra absolutamente a imaginação.
  79. O grande ritmo universal, o grande ritmo universal, o grande ritmo universal.
  80. A poesia emociona não porque “escutamos bem”, mas porque temos pele que se eriça.
  81. A busca de uma poética para todas as poéticas depende em grande parte, do efetivo retorno ao pensar metafísico.
  82. A poesia é a posse de uma parte de todos os poderes que possuíam os seres primordiais.
  83. Leio uns epigramas da Antologia Grega. Creio compreender a simplicidade essencial da poesia. Um hora depois leio poemas de Artaud e creio compreender a complexidade essencial da poesia. Essas duas conclusões me parecem tão impecáveis como abertamente opostas, o que me faz compreender absolutamente que a poesia só nos proporciona compreensões que são contradições.
  84. O dizer é Dizer somente em seu contexto cerimonial. Tudo o mais se chama literatura.
  85. A poesia “moderna” foi uma poesia sobre a cidade. A irrupção de uma poesia não da cidade, mas na cidade, não sobre a cidade, mas SOBRE a cidade (= Poética Contextual). Em suas origens (Grécia, China, etc.), a poesia ocupava os espaços públicos das cidades (epigramas = inscrições). Tão importante como o regresso à oralidade, é a saída da poesia da página para os lixões das ruas, os muros, as pixações. Nas pixações de Tijuana têm mais poesia viva que nos livros de Harold Bloom.
  86. Não existem formas ou espaços poéticos superiores a outros. No entanto, em certas épocas, algumas são mais necessárias que outras. Hoje, por exemplo, vivemos num tempo em que será indispensável voltar aos espaços além da página. Mas no fundo, todas as épocas precisam de todas as formas poéticas.
  87. Em qualquer momento do projeto do Dizer em que se deixe de praticar uma única de todas as infinitas formas do Dizer, significa que não está se praticando o Dizer.
  88. Nenhuma poesia que se nomeie. Poesia que aja.
  89. A poesia é parte fundamental de wu-wei (a não-ação, o ato espontâneo, o ato que é natural: resistir contra o assassinato é natural, não se deve confundir a não-ação com a inatividade).
  90. Se não me faço entender, se não sou coerente, a poesia não é, pois a poesia é enxame de contradições. A contradição é a prova do bom resultado da exploração mental. Tudo o que não é contraditório é fictício e nocivo.
  91. Na realidade, toda a realidade é imaginária. Todo o imaginário é real. O ser humano se caracteriza por seu uso especializado de imaginação. A poética depende do cultivo e ampliamento da imaginação.
  92. A meta é também conseguir nos comunicar com os animais e conhecer suas imaginações.
  93. A poema deve ser manejada como um organismo, não como uma máquina.
  94. A escrita da mais mundana poemínima requer investigações tresloucadas e exaustivas sobre todos os temas imagináveis.
  95. O inimaginável é a meta. Os lugares comuns que apodrecem nosso pensamento vêm da nossa sabedoria. É preferível aniquilar nossa sabedoria do que prejudicar, além de uma geração, o mesmo conhecimento de mundo.
  96. Dizer, pensar e agir devem ser o mesmo.
  97. A poesia precede a linguagem. A linguagem precede as palavras.
  98. As palavras são, apenas, a manifestação sensível (visível-audível) da linguagem.
  99. Faço minhas algumas crenças de outras pessoas, porque nem sequer considero como minhas as revelações que carrego.
  100. No interior da mente individual está todo mundo.
  101. Conhecer o mundo através da consciência, legal; conhecer o mundo através do corpo, melhor.
  102. A “literatura” só se redime em seu contexto e uso “extraliterário”. Poetas precisam ser, por força, extraliterários.
  103. O experimental se opõe ao preestabelecido. A poesia não deve deixar de experimental.
  104. O melhor literato é o literato morto. O melhor literato morto, é o que foi prolífico e profundo.
  105. A poesia é o registro do devir da Presença.
  106. A poesia humana é a prova irrefutável de que a Presença também habita este planeta.
  107. Fazer poesia voluntária e explicitamente é unicamente uma das muitas variadas formas de fazer poesia.
  108. Escrever poesia voluntariamente, saudável; falar poesia involuntariamente nas práticas, escrituras e cantos de outras pessoas: melhor.
  109. É preciso registrar toda poesia involuntária que se faz no mundo.
  110. Tudo é um. Um, muitas, Muitas, outres.
  111. A linguagem é onipotente. Não existe nada que não possa ser expressado por alguma das formas de linguagem. Não existe nada que não possa ser dito pela linguagem. A tradição religiosa e filosófica (do budismo tradicional ao positivismo lógico), que nega a capacidade da linguagem para expressar as ‘realidades supremas’ são doutrinas continentes e decadentes.
  112. Não existe nada mais danoso que a mística (= doutrina da impossibilidade da linguagem).
  113. A sobrevivência da poesia no terceiro milênio depende diretamente de sua efetiva hibridação com todas as artes, atividades e técnicas.
  114. É preciso procurar fazer menos coisas na poesia e fazer mais coisas com a poesia.
  115. Não é preciso passar a vida aperfeiçoando a poesia, mas usando a poesia para a continuação da imperfeita existência.
  116. Cada vez que alguém escreve deve intensificar o tema tratado. O superficial não é linguagem, é interferência.
  117. Xs Poetas protagonistas de uma comunidade devem ser as pessoas mais jovens, quando isso não acontece, os tempos sombrios retornam.
  118. Seria bom recrutar ladrões de túmulos e escavadores profissionais, pois quase todas as palavras estão mortas.
  119. Fazer respiração boca-a-boca com as palavras, ou seja, dizer a poesia em voz alta.
  120. Poetas, obviamente, devem ser seres extraordinários pelo que pensam e fazem. Só se é poeta extraordinário se o que diz provoca que outros seres pensem, façam e digam coisas extraordinárias.
  121. Uma poema deve conter apenas imagens que afetem a mente.
  122. As virtudes de uma grande poema sempre são outras, que só aquelas derivadas da novidade de suas imagens.
  123. A poesia deve deixar de ser sublimação para se tornar vivência.
  124. Quase todas as metáforas criadas e as imagens “poéticas” são meras combinações hábeis ou inusuais de vocábulos. Tudo isso é lixo se não está ancorado numa alteração análoga da mente de quem escreve e de quem lê.
  125. Numa poética ideal, o “desdobramento” ocuparia o lugar central.
  126. Tudo o que foi dito e é dito, em muitos lugares e épocas, eu reformulo, pois cheguei à convicção que novamente minha sociedade incita que esses princípios sejam abandonados ou marginalizados, incluindo aí “poetas”. Por isso repito estas definições sobre o que é a poesia.
  127. A absoluta sinceridade dessas anotações não provém de leituras ou do domínio que possa ter dessas leituras, mas do feito de que para mim também são revelações do insondável.
  128. Não existe o indizível.
  129. Poetas têm a obrigação de dizer (mostrar) tudo aquilo que os místicos e filósofos disseram que não pode ser extraído do silêncio.
  130. O silencio é uma das sutilezas da linguagem.
  131. A linguagem está em todas as partes.
  132. Cada vez eu escuto a palavra “cultura”, dou um grito que prova que pertenço à classe dos animais.
  133. A natureza é um livro.
  134. A união do oculto e do visível se produz na voz.
  135. Só valem a pena as transformações radicais, as renovações pessoais; a morte da poesia também se manifesta nos retoques ou no blefe publicitário das falsas vanguardas.
  136. Embora o conceito de vanguarda não seja muito feliz, o fenômeno da revolução no Dizer deve ser incansável.
  137. Entre a rigidez e a desordem, o caos é a melhor alternativa.
  138. Poeta que não é crítico é hipócrita ou ressentido.
  139. A vanguarda: “Make It New” [Faça (de) Novo], não “Make It News” [Faça Notícias]
  140. O trabalho para a invenção e perseverança do Dizer também é um negócio socioeconômico. A Política é o braço mundano da Poética.
  141. A Poética sempre deve ser mundana.
  142. A defesa do Dizer implica um combate que se identifica, historicamente, com a luta internacional do anarquismo em todas suas correntes (a filosofia do individuo como Totalidade), desde Yang Chu até Bakunin.
  143. A conversão de todos os indivíduos em poetas.
  144. A poesia é um nome oco se não está ancorada em atos amorosos ou atos políticos.
  145. Poetas alcançam seu objetivo não quando lhes sucedem pessoas que leem o que escreveu, mas pessoas que agem.
  146. A poética precede a religião. Se religião é re-vinculação (religare, Feurbach), a poética é a condição do dito retorno feliz à comunhão original. A linguagem é o único caminho para o divino. O divino é a totalidade da Linguagem. O Dizer completo.
  147. Uma vez que se acredita na “insuficiência” da linguagem, se cai na crença de uma divindade cuja comunicação transcende à linguagem. Esta é uma das armadilhas dos inimigos do Dizer.
  148. Enquanto alguns de seus oficiantes (desde a aurora africana ou latino-americana, até as nações ocupadas pelas potências militares) sofrem em seus corpos ou espíritos de perseguição ou extermínio, haverá interferências na plural claridade da linguagem universal.
  149. O processo contrário ao aprofundamento do Dizer é denominado pela mídia e pela política de “Globalização” (Monocultura mundial, mono-aculturação).
  150. Os Lemas são verdadeiros apenas se são utopias que levam à prática.
  151. As utopias são mais úteis que receitas.
  152. Não existem entidades, mas processos. O Dizer é o registro das mutações.
  153. Antes de ter acepções, as palavras têm vibrações.
  154. Produzir um novo estado corporal (do qual a mente faz parte) é a finalidade da arte vibratória da poesia.
  155. Transformar a arte sim, mas apenas porque é uma etapa necessária para transformar depois, todo o corpo.
  156. Poeta é um indivíduo que sabe produzir e manejar as vibrações que mostram o fluxo universal, o caráter não-dividido do universo e a interconexão de todos os seres.
  157. É preciso destruir a macrotecnologia e se livrar da ciência. Elas duas são responsáveis pelo assassinato da terra e pela ilusão da divisão entre sujeito e objeto. É responsabilidade da poesia destruir essa ilusão e destruir a macrotecnologia e a ciência (que atentam contra a sacralidade de todos os seres).
  158. A consciência terrestre sobre o Grande Processo Cósmico logo será interrompida pelo fungo nuclear. O fungo nuclear deve ser substituído pelo fungo alucinógeno.
  159. Este não é um manifesto pessoal, mas uma recompilação de projetos que acreditado ter detectado nas últimas fases do projeto do Dizer. Tudo o que disse, não fui eu quem disse, mas é dito; o eu é apenas uma voz; na voz o eu se transfigura no outre. Não fui eu quem disse mas outre.
  160. Uma palavra não é uma parte da linguagem; mas uma demonstração da linguagem.
  161. Os vocábulos são apenas a aparição sensível (evidente) das palavras.
  162. A maior parte da poesia está oculta e fora dos vocábulos.
  163. A existência humana deve ser uma tarefa consciente na busca da linguagem.
  164. A força feminina é o princípio criador do universo; sem um retorno e recriação às diversas filosofias do princípio feminino, não há futuro para a poesia. Nem para o mundo. O futuro é uterino.
  165. Existe uma maneira de falar que transforma a mente de quem fala e de quem escuta. Existe uma maneira de falar que transforma os interlocutores em deuses, corujas, búfalos, sepentes, galhos. Existe uma maneira de escrever… existe uma maneira de ler…
  166. Todo o sobrenatural tem sua origem no corpo.
  167. O estilo é para culturas cuja linguagem não tem poder de antemão e para simulá-lo se auxiliam de efeitos e persuasões sintáticas.
  168. A novidade é a pré-história da consciência.
  169. A poesia é inseparável de todas as ações, desde uma cagada até uma celebração.
  170. O discurso sobre a poesia se refere a elementos circundantes à poesia, certo; mas também é certo que a poesia se refere ao que está “fora” dela. A poética não se “ocupa” da “poesia”. Muito menos a poesia.
  171. Renunciar à poesia ou superentendê-la (lugar comum da nossa tradição), é confundir o inexplicável com o impensável.
  172. Do fato de que todas as inquietudes da existência foram abordadas pela poesia, se depreende a conjectura de que a poesia é a única atividade total, a única necessária, a única atividade que temos que nos dedicar com toda paixão e inteligência de que somos capazes. A poesia é a única atividade suficiente.
  173. Uma poema deve ser o despertar de uma zona desconhecida do cérebro.
  174. Poetizar não é a arte de juntar palavras, mas uma técnica para interconectar os neurônios através dos sons.
  175. O que fazem poetas no mundo?: fazem o mundo.
    __________

    O arquivo em espanhol que tenho é digitalizado a partir de uma cópia em imagem, portanto não espelhei com a tradução como de costume, já que o original é relativamente longo; o texto pode ser baixado gratuitamente aqui: https://www.academia.edu/17755701/_Por_una_poética_antes_del_paleol%C3%ADtico_y_después_de_la_propaganda_2000_)

    ***

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2 comentários sobre “essa língua tão áspera: heriberto yépez, por nina rizzi

  1. se é possível se (ex) citar lendo um texto, aqui ocorreu.
    Conectou na profunda da alma, na vislumbrancia da sensação de vida que é essa tal poesia, tão buscada, tão errada, tão errante, nos sacolejos da alma. Essa co(u)(i)sa interna e pulsante, para além, muito além dos conceitos frágeis das instituições e dos dicionários. A (O) poesia é vida própria para além das letras, total na carne, na linguagem estapafúrdia das contradi(c)ções, assimétrica por assim dizer, mesmo para os mais retilíneos dos poetas, aqui me coloco torto, obliquo, instavel, por assim dizer, profano.

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