Um dia escrevi um poema. É a primeira vez que falo nisso: chamava-se ‘Beduíno regenerado pela Lua’. Que significava esse tema estranho? Como se eu já soubesse que a poesia salva o homem. Fui censurado pela minha família, porque os meus versos não tinham rima nem métrica. Eu estava com oito anos e aquele foi o meu primeiro contato com o academismo.
(LINS, Osman. Evangelho na Taba. São Paulo: Summus, 1979, p168.)
Ao ouvir/falar o nome Osman Lins (1924-1978), a maior parte dos seus, ainda poucos, leitores lembrarão quase que de imediato do vertiginoso romance Avalovara, publicado em 1973. Um romance cuja estrutura narrativa foi construída sobre as volutas de uma espiral desenhada sobre um palíndromo mágico (SATOR, AREPO, TENET, OPERA, ROTAS). Como se fosse um oulipiano o escritor nascido Vitória do Santo Antão-PE, cria arquitetonicamente um livro cujos capítulos crescem em progressão aritmética a cada volta de espiral sobre as letras do palíndromo, espécie de linha para lhe guiar em seu próprio labirinto; este labirinto nos é dado pela tradução possível do palíndromo que apresenta “o lavrador mantém o arado sobre o sulco”. Daqui vem a associação aquilo que Michel Butor e Giorgio Agamben lembram ao fala da escrita boutrofédica (quando o boi faz a volta no campo arado); gosto de lembrar a ideia de versura, contida em Ideia da prosa do Giorgio Agamben para pensar a dimensão da poesia na escritura osmaniana. Gosto de pensar Avalovara como um grande poema (Antônio Cândido escreve a respeito no prefácio do livro) e essas volutas como mecanismos de grandes enjambements nas dobras dos capítulos. Outras brechas para pensar a força da poesia em seus livros são as epígrafes de alguns dos trabalhos. Em seu primeiro romance, O visitante (1955) a epígrafe é retirada da “Primeira Carta de Paulo aos Coríntios; em Nove, novena (1966) uma epígrafe de O engenheiro de João Cabral de Melo Neto. Em seu livro de ensaios Guerra sem testemunhas, ao discutir a situação do escritor e do mercado, Osman Lins recupera o poeta Deolindo Tavares (1918-1942) não apenas nas epígrafes do livro, mas na criação de um interlocutor fictício chamado WM, que assume em alguns momentos a própria narrativa dos ensaios. WM são as letras do nome de Willy Mompou, personagem de uma série de poemas de Deolindo Tavares reunidos postumamente por Fausto Cunha em 1945. Sem alongar a conversa salto para o último livro publicado por Osman Lins, A rainha dos cárceres da Grécia (1976). Neste livro Osman Lins traz para o Recife a poeta normanda Marie de France e a transforma em Maria de França, trabalhadora, um tanto perturbada e perdida noutro labirinto, o labirinto da Previdência Social na tentativa de aposentadoria. Quero aqui e com essas rápidas referências (um tanto redutoras), chamar a atenção para o leitor de poesia Osman Lins.
Ao longo da pesquisa que realizei nos arquivos da Fundação Joaquim Nabuco em Recife entre 2015 e 2018 e que resultou na edição crítica organizada junto com Ana Luiza Andrade e Rafael Dias, Imprevistos de Arribação-textos de Osman Lins nos jornais recifenses (Papaterra 2019), foi possível encontrar, entre os 110 textos até então inéditos em livro, o Osman Lins leitor de poesia através de inúmeros artigos sobre poetas como Ascenso Ferreira, Mauro Mota, Zilá Mamede, Carlos Pena Filho entre outros. Se nos romances encontramos com poetas do cânone, nos jornais estão os exercícios de leitura dos poetas nordestinos o que diz muito aos seus leitores habituais e apresentam o Genius loci presente nos seus livros; estão também diversos poemas nunca reunidos em livro antes de Imprevistos de arribação.
O poema aqui publicado “Visões do Movietone” parece uma reverberação da busca pela poesia daquele menino de oito anos censurado pela família. Este poema, lido em retrospecto, ilumina como a luz do projetor, o romancista cuja formação passa pelo movimento teatral estudantil pernambucano, mas também pelo cinema. Osman Lins escreve sobre cinema em textos publicados em Marinheiro de primeira viagem e Evangelho na Taba, livros de ensaios/entrevistas. Além disso, escreve e roteiriza nos anos 70 as narrativas A ilha no espaço, Quem era Shirley Temple? e Marcha Fúnebre para a série Casos Especiais da Rede Globo.
“Visões do Movietone” foi publicado em 02 de outubro de 1955, mas o poema é datado de 1954, ou seja, antes mesmo da publicação de seu primeiro romance. Os movietones eram pequenos programas jornalísticos, também chamados de Newsreels criados por Charles Pathé e produzidos pela Fox films entre 1910 e os anos 70. Os movietones eram apresentados nas sessões de cinema antes do filme em cartaz. Estes programas atravessaram o período do cinema mudo e chegaram aos filmes sonorizados e com imagens em cores.
O poema é apresentado em dez cenas com se fosse ele próprio o roteiro para os Newsreels, escrito por um roteirista atento. Osman Lins desde a primeira parte intitulada “Epígrafe” se mostra atento aos problemas da indústria cultural e ao poder das imagens em movimento ao dizer que as lentes de cristal serão responsáveis pelas narrativas. Olhar arguto do romancista abre os olhos dos leitores espectadores para os planos apresentados nas cenas do poema, marcando o período da comunicação em massa.
A título de curiosidade, os jogos olímpicos imediatamente anteriores a publicação do poema foram os realizados em 1952 em Helsinque, ocasião em que o Brasil ganhou medalha de ouro no salto em distância com o atleta Adhemar Ferreira da Silva que saltou 16,22 metros. Arrisco dizer que um dos poemas da segunda parte pode ser uma apresentação deste acontecimento. Se assim for, arrisco ainda a dizer que essas visões se configuram poemas de circunstância.
Nota: Outros poemas de Osman Lins estão reunidos em Imprevistos de arribação- textos de Osman Lins nos jornais recifenses. Org. Ana Luiza Andrade, Cristiano Moreira e Rafael Dias. Navegantes: Papaterra: 2019, 2 volumes)
Visões do Movietone
Epígrafe
Viajantes de cristal,
as lentes nos contarão suas visões.
E logo,
tal um vendedor ansioso,
estende a nossos olhos
seu mostruário de imagens
colhido nas retinas transparentes.
Queremos de misérias e alegrias.
Aqui estamos.
§
Os caminhantes ociosos
Na estrada lívida,
multidões caminhavam.
Um violoncelo invisível lembra um cachorro cego,
vagando, à procura de um anjo.
Não o encontrará.
A multidão caminha, estonteada,
e para eles não existem más estradas.
São as solteironas dos caminhos:
não podem mais escolher.
e realizam entre nós aquelas núpcias tristes
Vão e vão
Itinerantes,
nada levam em suas mãos
— até as suas almas deixaram,
na urgência de partir,
em suas terras natais.
Nada levam, nada fazem,
senão vir, silenciosos,
pelos lívidos caminhos.
Nada fazem, os ociosos.
§
Conferência à Beira Mar
Quatro figurões descem do avião
e são conduzidos em automóveis hermeticamente fechados para negociar a paz.
Trazem os bolsos cheios de preocupações e um menino morto no coração parado.
Vão de negro e lúgubres:
os respectivos consulados não concederam passaportes aos seus sorrisos.
— e um clandestino,
foi confiscado pela Guarda Aduaneira
e vendido em leilão a um agente de seguros.
As lâmpadas fotográficas reluzem à sua passagem,
como relâmpagos sem voz
(Oh! Como são breves
e mais inconstantes que os refletores antiaéreos!)
Os figurões se encontram
e três deles erguem os braços
quando o representante norte-americano lhes apresenta a estrela de xerife.
Mas estão junto ao mar,
à sombra de um para-sol cujos gomos são feitos com retalhos de bandeiras
e o xerife joga às ondas seu distintivo astral
que se transforma em estrela do mar
— quem sabe se futura Estrela Dalva?
Cada um fala uma língua e o intérprete é mudo.
Mas de manso,
inofensivo réptil,
crescente luz,
canção que se aproxima,
o mar avança, cresce, envolve-os.
E as quatro cabeças sob a barraca de praia
lembram a Rosa dos Ventos e os quatro pontos cardiais.
E a paz?
Afogou-se.
§
As Bestas Messiânicas
Domingo de sinos presumíveis
e explorações mirins nos arrabaldes do sonho.
Crianças tornam aos portões do Paraíso Perdido
e agora outra vez reconquistado.
Jardim Zoológico —
selva gentil, deserto ameno, polos temperados
A larga piscina é um mar ameninado.
Latitudes se encontram como as varetas de um leque,
como, num bar, marinheiros que não se entendem,
cada um contando a sua lembrança e a sua canção.
As focas zombadoras brilham como nuvens de aurora
e, para as gazelas,
a planície perdida deve ter um gosto pungente
. . . . . . . . . . . [e irrecuperável de infância morta.
Os coelhos, mesmo vivos, já parecem vítimas.
Os elefantes são pausas.
Esplende forte, sacra,
a majestade dos tigres e leões,
e na tranquilidade de uns e outros há um displicente
como se as grades fossem mitos.
São todos sós, são todos exilados.
E das jaulas, do mar ameninado,
de seus exílios, de suas nostalgias,
gritam as bestas,
apostólicas,
sem que ninguém as ouça:
“Deixai vir a mim as criancinhas
e com elas o seu deslumbramento.”
§
A Experiência Ardente
Pássaro sem cântico.
esquife desabitado,
que apreensões de vivos
não ligam a terra,
o avião sem piloto
segue.
Logo mais o atingirão,
matarão o que está morto.
Cálculos matemáticos sopesam as possibilidades da morte,
com precisão infinitesimal
como se buscassem o peso de uma pétala.
Seguros como um deus,
as equações preparam o tiro
e os diagramas fixam o desenrolar da emboscada.
E o tiro embarca
vai ao encontro do pássaro sem cântico.
Fulgem os céus,
choram as asas partidas,
imobiliza-se a hélice com um tremor de criança baleada.
E flor de chamas,
tomba em silencio o morto assassinado.,
com lentidão de túnica vazia.
§
A Moda Sempre Vária
Com um ar de bonecas mecânicas
modelos parisienses condescendem em ostentar as últimas criações da Primavera.
Aos olhos de colegiais, costureiras de subúrbio,
. . . . . . . [mães de família deficitárias e criaturas neutras para quem
. . . . . . . [a moda encalhou no último figurino comprado a já esgarço,
desfilam vestidos que mais parecem ironias.
E ninguém olha os manequins.
Todos contemplam os vestidos,
do mesmo modo que um menino,
há muitos anos,
contemplava as nuvens,
sempre alheias, sempre várias,
além das torres da igreja,
onde os vitrais sorriam nas missas do domingo
e onde as meninas, em maio, eram arcanjos de fitas no cabelo.
§
II – Flagrantes Esportivos
— Os voos sobre a neve —
O lenço polido e frio.
É uma cauda de noiva,
o longo lençol de neve.
As asas guardam em si as possibilidade de voo.
Mas as asas do homem não têm plumas,
não participam de alturas:
são instrumentos de abraços
e suas únicas relações com a distância são os gestos de adeus.
Descendo, velos, na branca esteira de neve,
Um homem colhe no corpo um impulso que o lançara no ar.
(assim é possível colher,
numa rápida visão da namorada,
a subsequente alegria)
E o homem desprende-se do solo,
braços abertos,
lança à face das montanhas sua transitória e audaciosa revolta.
Fenece o impulso, o voo se interrompe;
esvai-se a alegria,
o homem desce.
§
A Cesta Enganosa
Num gesto de prestidigitador que solta um pombo,
um jogador endereça a bola ao companheiro , que corre.
Entre sua mão e o solo, a esfera traça
. . . . . . . . . . . . . [o desenho de um sismógrafo,
— tal como Virgínia, vestido de cambraia,
naquelas tardes antigas,
com sua ternura infantil a sua bola azul.
Entre os dez homens aflitos
há uma serie de equívocos.
Todos correm, a bola passa
de mão em mão. Afinal,
afinal, serenamente, como se buscava um ninho,
como corpo fatigado que se aninhasse na rede,
flor num jarro transparente ou anular num anel,
a bola acerta com a cesta.
Mas, oh! A cesta está furada
e permanece vazia
como anel sem anular.
§
A Devolução do Tempo
O trampolim é um braço estendido
com a iminência de um milagre na extremidade da mão.
Calma,
como a assinalar o princípio da canção que
[o seu próprio corpo contará no ar.
a moça estende os braços.
Há um silencio místico:
Estamos em face do sobrenatural.
A água da piscina estremece,
tem frêmitos de folhagem.
Os calcanhares se erguem
— e este sinal tem qualquer coisa de fronte que se inclina para um beijo.
Numa decisão de suicida,
o corpo iluminado se projeta,
é linha e fuso,
e seta disparada.
Veloz,
estrela libertada que finge itinerário de pássaro,
a flama vertical desaparece.
(Quem me trará de volta a saltadora?)
Torne o sol tornem os relógios,
torne o meu encantamento.
como estrela dissipada,
que refizesse o caminho
da própria rebelião,
a saltadora ressurge.
Afla, leve, a flor das águas,
e pousa no trampolim:
a sombra de um passarinho
que pousasse em minha mão,
não seria leve assim.
Cristiano Moreira é poeta, professor e tipógrafo. Nascido em Itajaí, em 1973, criado em Navegantes. Estreou na poesia com Rebojo (Bernúncia:2005), seguido de O calafate míope (Papaterra:2009), Infância do Pife (Dengo-dengo Cartoneiro: 2011), As cinco mulheres pagãs com imagens de Fernando Karl (Papaterra: 2013 – Ed. 30 exemplares), Dengo-Dengo- Infanto juvenil ilustrado por Yannet Brigiller (Papaterra: 2016), Dente de cachorro (Nave:2018) e Imagens da Madeira (Papel do mato: 2019) é seu livro de poesia mais recente. Traduziu com Miguel Rodriguez o volume de narrativas Apartados (Papaterra /La Cebra:2011), do escritor chileno Rodrigo Naranjo. Doutor em literatura brasileira (UFSC) com pesquisa sobre o escritor Osman Lins. um dos organizadores e editor de Imprevistos de arribação – textos de Osman Lins nos jornais recifenses (Papaterra: 2019). Sócio da Quinta da Gávea hospedaria e quintal criativo onde está sediado o Ponto de Cultura Biblioteca Rural e a Oficina Tipográfica Papel do Mato em Rodeio/SC, onde vive atualmente.