Abecedário #3

Querer, por Érica Zíngano

querer é KERER

qd recebi o convite, p/ participar desta publicação (agora online!), q tb nos faz pensar em termos de dicionário/verbete, eu tinha recém retomado a análise, no modo telefone-pandemia, e tinha começado a ler bate-se n’1a criança, do freud. ein kind wird geschlagen, 1a criança é batida, 1a criança apanha. eu sentia q precisava incorporar outros indícios, repensar certas cenas infantis. eu sei q fazer análise ñ pressupõe a leitura de nada, são coisas independentes, mas tb penso q, de 1a forma ou de outra, as leituras sobre psicanálise e as falas q são feitas durante as sessões podem acabar se cruzando, qd se pretende entender algumas coisas a partir de outros pontos de vista. cada método com seu mistério. cada pessoa com seu universo. __________qd recebi o convite, pensei na hora no qorpo-santo, por causa da letra q. eu ñ conheço quase nada do trabalho dele, mas tinha baixado mta coisa em 2019. querer KERER __________qorpo-santo __________mas o q trazer da ensiqlopèdia p/ cá, se eu mal tinha entrado nos pdfs?

essa palavra querer, ela ñ partiu de mim, ela veio de 1a demanda exterior. ñ fui eu quem a escolheu. há alg1s meses, todo dia 22, eu escolho 4 palavras gregas p/ animar 1a estátua bem cafona q tinha aqui, na entrada da minha casa. uma estátua aguadeira. decidi levar palavras q estão circulando nas leituras q estou fazendo p/ a entrada da casa. tirando essa circunstância, elas ñ têm nenh1a outra relação entre si, ñ q eu saiba. mas agora no final do ano, resolvi mudar o procedimento e tb pedi palavras p/ 1 casal de amigos gregos. eles me deram: ήλιος, Ιδέα, φως, Έρως; Γη, Σελήνη, Γλύκα, Γάλα. __________essa palavra querer, ela ñ é minha, ela me foi dada. designada. ao mesmo tempo em q ela me interpela, ela tb tem 1 apelo à psicanálise. pq querer tb tem a ver com escutar o desejo. mas como lidar com desejo do outro?, como lidar com nosso próprio desejo, ao lidar com o desejo do outro, qd mtas vezes ñ conseguimos nem reconhecer nossos próprios desejos? como nos mantermos atentes às falas dos nossos desejos, ao lidar com o desejo do outro? perguntas assim, sucessivas, dilatadas no tempo. perguntas em aberto.

na 1ª vez em q li o bate-se, fiquei 1 pouco frustrada, pq ñ conseguia me encontrar ali. ñ conseguia me enxergar naquelas 3 fases, propostas pelo freud. pq ele vai estudar as fases de quem produz a fantasia bater/apanhar. ñ quem é pego de surpresa pela fantasia do outro q deixa de ser fantasia. houve 1 desencontro entre nós. às vezes, acontece. __________qd eu leio 1 livro pela 1ª vez, posso ficar 1/2 cega. todo mundo eu acho. só q esse texto tem alguma importância p/ se pensar a questão da fantasia, das relações sado/maso e, pelo q entendi, foi a partir dele q lacan entendeu q a perversão é o negativo da neurose. eu precisava insistir. a coisa + marcante q ficou, da 1ª leitura, está no final da seção V, na minha edição, pq nem todas as traduções são como essa: ñ me surpreenderia se 1 dia fosse possível provar q a mesma fantasia é a base do delírio paranoico de querelância. eu nunca tinha escutado esse termo, querelância. eu precisava voltar e ler outra vez.

Ok. fase 1: o pai bate na criança/a q eu odeio; fase 2: estou apanhando do pai; fase 3: a 3ª fase se parece novamente com a 1ª, a pessoa q bate nunca é o pai: ou é indeterminada, como na 1ª fase, ou é investida pela figura de 1 substituto do pai/professor. quem fantasia já ñ aparece + na fantasia da surra. se insistimos em indagar, declaram: provavelmente estou olhando.

a fantasia da fase 2, de caráter indubitavelmente masoquista, é altamente prazerosa e, de todas as fases, é a + importante e prenhe de consequências, mas, n1 certo sentido, ela nunca teve existência real, nunca é recordada, jamais chegou ao nível consciente, é 1a construção da análise. freud tb diz q quem têm fantasias desse tipo desenvolve 1m sensibilidade e suscetibilidade especiais contra qualquer 1 q possa ser incluído na categoria pai; são facilmente ofendidas por essas figuras e concretizam assim, p/ seu próprio prejuízo e sofrimento, a situação fantasiada de estarem levando 1a surra do pai. só então ele fala de querelância. querer KERER ____querelância ____ñ me surpreenderia se 1 dia fosse possível provar q a mesma fantasia é a base do delírio paranoico de querelância.

segundo a lei de benford, 1a lei matemática q descobri vendo 1a série na netflix, a letra q ñ é desafortunada, ela têm poucas entradas em pt, pq faz parte de 1a lógica de distribuição de 1a escala logarítmica… tlvz por isso qorpo-santo se empenhou na reinscrição do q? será q faz sentido pensar nesses termos? lançar hipóteses assim? mal comecei a ler qorpo-santo e já estou cheia de pressuposições, do lado de fora… q loucura os cacoetes q carregamos! naquela época, qorpo era qorpo ou era corpo? p q ele alterou/adulterou o qorpo? preciso de 1 dicionário do séc. XIX! pq escrevi eu o meu nome em h1a toalha de crivo q entreguei ao guerra p/ sacudir-se o pó do altar de n. s. da conceição?… ah! sim: foi p/ q ñ fosse aplicada a outro fim: e p/ propalar a orthographia q começava a ensaiar. dezembro de 1862, disse qorpo-santo, n1a das milhares de entradas do 1º volume da ensiqlopèdia.

em pt, temos quente, quebranto, quiproquó, quizomba, quórum… em latim, eram tantas palavras com q… quodlibet, eu me lembro. em quichua tb deveriam ser inúmeras, se a própria língua começa com a letra q… quipu é 1 objeto lindo, aquele enlace de cordas na mão do índio-astrólogo-poeta de waman puma, aqueles nós q literalmente contam histórias. quetzalcóatl é em náuatle. serpente de plumas, pirâmide, “o rosto iluminado em tantos destroços na américa central”, disse cardenal, pelas mãos de herberto helder. querer KERER __________quetzacóatl __________digo eu agora, como se fosse o início de 1 poema q ainda ñ escrevi. a letra q, no jogo de baralho, é a dama/queen. hj é 1º de janeiro de 2021 e acabei de achar 1a trinca na rua. ñ veio a dama, veio 1 qoringa! bingo!

durante a pandemia, quem me fez prestar + atenção nos verbos foi o artista, professor e pesquisador yuri firmeza. em 2 falas do LEEA, ele usou verbos p/ pontuar suas colocações de 1 jeito q me pareceu mto particular, 1 jeito q normalmente eu ñ estou habituada a usar: ele usou verbos como quem tenta operar 1a síntese, transformando toda 1a situação, 1a fala, 1 acontecimento, n1 único verbo ou n1 conjunto de verbos. ele fez isso qd foi mediador, no encontro com o também artista, professor e pesquisador felipe ribeiro, e aquilo me deu 1 estalo! logo depois da fala do felipe, ele começou dizendo q percebia …a presença de 1 certo verbo, deixar. p q ele estava tentando condensar toda aquela fala, logo de cara, n1 único verbo? p q ele usou 1 verbo p/ iniciar a conversa?, foi o q eu fiquei pensando, me perguntando.

e ele tb fez isso qd apresentou sua pesquisa de doutorado em torno de fordlândia. então eu entendi q ele realmente está estruturando seu pensamento usando verbos, usando verbos no infinitivo como articuladores/propulsores, eu pensei, pq ele coloca os verbos no meio de coisas, entre, q é a posição q eles já ocupam nas frases. ele disse q está organizando sua tese em 3 blocos, avesso, palimpsesto e ruínas, e subdividindo cada bloco com 3 verbos no infinitivo, falar, emudecer e escutar; sobrepor, rasgar e desfigurar; e salvar, ameaçar e trair. ele tb falou q estava interessado em pensar a ≠ entre trair e trapacear, q o deleuze discutia isso nos diálogos. tlvz venha daí seu desejo de pensar com verbos, ñ sei. o lindo de juntar verbos assim, é q eles esperam ser conjugados e esperam a continuação da frase. a continuação da conversa. verbos são ganchos p/ o outro entrar na conversa. agir. falar. verbos são um convite ao jogo.

no bate-se, freud relaciona a fantasia bater/apanhar com propósitos de satisfação autoerótica, i.e. masturbação, 1 traço primário de perversão. na hora em q li isso, pensei q tb dizemos bater 1a punheta, bater 1a siririca… e tb dizemos bater à máquina, p/ escrever. comecei 1a lista coletiva no instagram com vários usos do bater. as pessoas foram colocando expressões. bater nos lembra coração, relógio, música, ritmo, tempo, mas tb acidente, ou seja, algo q duplica a vida, mas q tb a suspende. engraçado. todo bater tem 2 lados. bate e volta. bater bater no yuri é 1 livro da poeta carla diacov q está online no site da enfermaria 6. lembrei dele e fui atrás p/ reler. carla bate bate no yuri, bate tanto até quebrar, querer KERER __________quebrar __________o q a carla procura no poema através da imagem repetição do bater bater no yuri? a vida? variações da vida? possibilidades de continuar viva? de tanto “bater bater o bife”, “bater bater no yuri”, “em dizer yuri ynventa yatos”, “yuri yntervém yntervalos”, “mania yuri”, mas no final, yuri acaba ynterditado, como um lembrete, um interdito: “nunca mais vou bater o coração no yuri”. e o livro acaba assim, yuri rebatido p/ as cucuias… no céu remendado e triturado da poética de carla diacov, quem pode vir ocupar a posição vaga recalcada de yuri? será q é possível conciliar entre querer KERER __________qoração __________com querer KERER __________qabeça?

durante a pandemia, eu e a fabiana faleiros tivemos mtas sincronicidades… acho q, por estarmos mto conectetadas, diria marie carangi/teta lírica, na bolha da internet, na dimensão da vida, acabamos nos comunicando tb por outros canais. aconteceu literalmente com 1 poema q escrevi, a partir de 1 sonho, 1 dístico como 1 LP/ lado A lado B:

projete

e

proteja

assim q a fabi viu meu poema-post no insta, ela me mandou 1 áudio falando q ela tava fazendo pôsteres no ateliê do rg com o joão no dia anterior, reescrevendo aquela artista, jenny holzer, protect me from what i don’t want, e aí eles começaram a variar as frases e chegaram nessas 2:

me projete

me proteja

___________________________________a gente tá conectada amiga, somos poeira qósmica, q alegria,

ela me disse no áudio

enquanto eu estava fazendo este texto __________querer KERER __________fui sendo atravessada por mtas coisas, pq ele ñ tinha 1 percurso mto evidente p/ mim. era + 1 jeito de observar o meu próprio desejo em relação ao desejo do outro, a dimensão exterior do desejo, ao ter q fazer 1 texto sobre o desejo… então, durante o processo de escrita, me veio 1a frase mto direta, sem nenh1 desvio, refazendo 1a frase q já existe no teto no texto da nossa máquina-cabeça-de-linguagem: querer ñ é poder, querer é querer! é kerer! qd eu pensei nisso, eu pensei imediatamente n’o seminário da fofoca, 1 outro trabalho da fabi, pensei q essa frase pertencia aos tipos de frase q o seminário da fofoca escreve e q, mesmo sem ela estar lá, escrita, ela estava lá, por cima das outras frases.

fabiana faleiros é 1a artista q trabalha mto no campo da performance e da música, sempre movida por algo q lhe chama atenção na palavra, na linguagem, no ruído da comunicação, na fricção de mundos, entre o real e o virtual… a subjetividade lady incentivo, p. e., é 1a das subjetividades q atravessa suas pesquisas, criando corpo e dando voz a 1a série de questões q se relacionam com o ser artista/fazer arte no nosso tempo, reverberando tb inquietações ligadas ao universo feminista. MasturBar já é 1 outro trabalho q se desdobra de diferentes maneiras, seja n1 lugar específico, n1 Bar, seja n1 livro, seja na tese, todos esses espaços viraram palco p/ suas experimentações cohabitarem: entre o curso e o show, entre a mão e o sexo, entre os signos verbais e os símbolos gráficos, fabiana nos convida a pensar nas múltiplas corpas presentes nas sociedades contemporâneas e nas questões ligadas à sexualidade. é com a energia desses trabalhos, digamos assim, q ela criou o seminário da fofoca.

o seminário da fofoca junta 2 palavras de lugares diferentes, diz a fabi: 1a vinculada aos saberes acadêmicos (seminário) e outra aos saberes das redes feita por mulheridades (fofoca). ao juntar essas 2 palavras, fabiana pretende tensionar o percurso histórico da fofoca, pensando junto com silvia federici, qd a fofoca virou 1 termo pejorativo, da “maldita”, a q fala mal ou é mal falada, procurando, assim, reescrever e reinscrever a fofoca, num contexto atual de causas feministas, pensando na sua dimensão política.

explica a fabi: “O Seminário da Fofoca surgiu em 2018 como uma proposição de conversa sobre as relações de poder performadas na estrutura cisheteronormativa do circuito cultural. Já foi realizado em dois contextos: o primeiro como parte da exposição Iminência de Tragédia, na FUNARTE_SP em 2018 e no Ateliê 397 em 2019, no grupo de estudos Vozes Agudas. Nas duas ocasiões o Seminário aconteceu como uma conversa entre mulheres diversas, pessoas não-bináries e corporalidades dissidentes interessadas em criar espaços de acolhimento e debate sobre as relações abusivas sustentadas e silenciadas pelo patriarcado no circuito cultural. Foram encontros para compartilhar e debater casos de denúncia de assédio, abuso, violência física e psíquica, roubo de produção intelectual, silenciamento estrutural etc. Além disso, compartilharmos modos de ações diretas à espaços institucionais e não institucionais que reproduzem lógicas colonialistas que tentam desqualificar as falas que conectam experiências privadas com as discussões públicas. Propomos o esvaziamento do sentido pejorativo da “fofoca” e do ato tóxico que simboliza essa palavra para enchermos do nosso significado: conectar experiências privadas com discussões públicas. Fofocar como um gesto político.!”

o seminário traz 1a série de frases escritas em almofadas de paetês, escondidas embaixo dos paetês, frases q só se revelam ao público/espectador, se passarem a mão nas almofadas:

“a vida sexual da fulana de tal”
“o destino da bonita é ser feia”
“estou esgotada”
“família gosta é de marido”
“é dando que se dá”
“doutorado em patriarcado”
“é dando que se dá”
“centímetro por sentímetro”
“inimiga, minha louca”
“que saudade do cheiro de bebida no nosso quarto inteiro
que vinha da tua boca
depois que você bebia e beijava quem você queria
e depois dizia:
você está louca”

o gesto de passar a mão nas almofadas é totalmente ambíguo, pq ao mesmo tempo em q se assemelha a 1 gesto de carícia consentida, tb imita 1 gesto de alguém q há anos passa a mão nas nossas bundas durante o carnaval ou no ônibus, por exemplo, mas qd olhamos p/ trás, ninguém virou estátua ainda… se fosse p/ colocar a mão na consciência, quem é q conseguiria dormir com essas frases gritando ao pé d’ouvido? o seminário da fofoca, com sua aparência kitsch de 1 locus quase amoenus, bem cafona, no ápice do idílio amoroso de 1a sala de estar no interior de 1a casa de família, procura, com sua ironia felpuda, quebrar o tabu de lugares comuns q se erigiram sobre a lógica de sempre esconder as coisas embaixo do tapete. e o q é q querer é querer tem a ver com isso?

TUDO! se a frase querer é poder, na sua melhor leitura, nos leva à pergunta de spinoza sobre o q pode 1 qorpo, a frase querer é kerer simplesmente não nos faz esquecer, n1a espécie de reducionismo radical, q os kereres é q, ao nos movimentarem, movimentam mundos, criam novos mundos. nos fazem criar novos mundos.


Imagens: “Seminário da Fofoca”, 2018. Iminência de Tragédia, Funarte SP, cedidas pela artista Fabiana Faleiros.

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