excertos do romance Tchevengur de Andrei Platônov, por Maria Vragova & Graziela Schneider

Ilustração 1 & 2 de Svetlana Filippova

[excertos do romance Tchevengur — Andrei Platônov traduzido por Maria Vragova & Graziela Schneider]

Tchevengur, de Andrei Platônov, é, indubitavelmente, uma das obras mais importantes da literatura russa do século XX e ocupa também um lugar de reconhecimento como uma obra icônica da literatura mundial do século passado. No entanto, o caminho do romance até seus leitores foi tão longo e tortuoso como os percorridos por Aleksandr Dvánov e Stepán Kopienkin — protagonistas de Tchevengur — na busca do éden comunista. O manuscrito diz que o romance foi escrito entre 1927 e 1929, mas, na verdade, os trabalhos no romance iniciaram ainda antes: Tchevengur inclui também fragmentos de outras obras do autor, que nunca foram concluídas. Até o final da sua vida, Platônov não conseguiu ver o seu principal romance publicado — pelo menos não em sua totalidade. Em 1928, foram publicados dois fragmentos da primeira parte do romance, intitulados “A Origem de um Mestre” e “O Descendente de um Pescador”. Em 1929, os mesmos fragmentos foram reunidos e publicados como novela sob o título A Origem de um Mestre. Os textos diferem ligeiramente — várias linhas que faziam alusão à sexualidade foram removidas pela censura e algumas mudanças foram feitas pelo próprio autor. Em 1928, a revista “Novo Mundo” publicou ainda outro fragmento do romance — A Aventura. Em 1971, já após a morte do autor, dois outros fragmentos foram publicados: A morte de Kopienkin, na revista “Kuban”, e Uma Viagem com o Coração Aberto, na “Gazeta Literária”. Em 1972, algumas versões relativamente completas do texto foram publicadas em traduções para o francês e o italiano, assim como uma versão em russo, publicada pela YCMA-Press. No entanto, as três publicações excluíram a primeira parte do romance. O texto completo foi publicado pela primeira vez em inglês, em 1978, em uma tradução de E. Olcott; e foi somente em 1988 que os leitores da União Soviética tiveram acesso à obra-prima de Andrei Platônov, através da publicação do romance na revista literária “A Amizade dos Povos”. Em 2021, ano do 70º aniversário da morte de Platônov, a primeira edição para o português é apresentada agora, proporcionando o primeiro contato com Tchevengur a leitores do Brasil e do mundo lusófono.

* * *

Zakhar Pávlovitch conheceu um homem, um pescador do lago Mútevo, que perguntava a muitos sobre a morte e se atormentava com sua curiosidade; esse pescador gostava de peixe mais do que tudo, não como alimento, mas como uma criatura viva especial que certamente conhecia o segredo da morte. Ele mostrava os olhos dos peixes mortos a Zakhar Pávlovitch e dizia: “Olhe, que sabedoria! O peixe se encontra entre a vida e a morte, por isso ele é mudo e olha sem expressão; veja, até mesmo o bezerro pensa, mas o peixe não. Ele já sabe tudo”. No decorrer dos anos, o pescador, contemplando o lago, só pensava numa coisa: a atração da morte. Zakhar Pávlovitch o dissuadia: “Não há nada de especial lá, apenas algo sufocante”. No ano seguinte, o pescador não aguen- tou e se jogou do barco no lago, os pés amarrados com barbante, para não nadar involuntariamente. Na verdade, ele sequer acreditava na morte, apenas queria ver o que existia lá: talvez fosse mais interessante viver ali do que no vilarejo ou na beira do lago; ele enxergava a morte como outra província, situada sob o céu, como se ela estivesse no fundo da água gelada e o atraísse. Alguns mujiques com quem o pescador falava sobre a sua intenção de viver um tempo na morte e depois retornar o desencorajaram, outros concordavam com ele: “Ué, quem não arrisca não petisca, Mítri Iványtch. Tente e depois nos conte”. Dmítri Iványtch tentou: foi retirado do lago três dias depois e enterrado ao lado da cerca do cemitério do vilarejo.

Захар Павлович знал одного человека, рыбака с озера Мутево, который многих расспрашивал о смерти и тосковал от своего любопытства; этот рыбак больше всего любил рыбу, не как пищу, а как особое существо, наверное знающее тайну смерти. Он показывал глаза мертвых рыб Захару Павловичу и говорил: «Гляди – премудрость! Рыба между жизнью и смертью стоит, оттого она и немая и глядит без выражения; телок ведь и тот думает, а рыба нет – она все уже знает». Созерцая озеро годами, рыбак думал все об одном и том же – об интересе смерти. Захар Павлович его отговаривал: «Нет там ничего особого: так, что-нибудь тесное». Через год рыбак не вытерпел и бросился с лодки в озеро, связав себе ноги веревкой, чтобы нечаянно не поплыть. Втайне он вообще не верил в смерть, главное, же, он хотел посмотреть – что там есть: может быть, гораздо интересней, чем жить в селе или на берегу озера; он видел смерть как другую губернию, которая расположена под небом, будто на дне прохладной воды, и она его влекла. Некоторые мужики, которым рыбак говорил о своем намерении пожить в смерти и вернуться, отговаривали его, а другие соглашались с ним: «Что ж, испыток не убыток, Митрий Иваныч. Пробуй, потом нам расскажешь». Дмитрий Иванович попробовал: его вытащили из озера через трое суток и похоронили у ограды на сельском погосте.

§

Kopienkin foi ao quintal, em direção ao seu corcel. O animal era corpulento, mais propício para o transporte de troncos de árvores do que de pessoas. Acostumado ao seu dono e à guerra civil, alimentava-se de cercas de ramos novos e palha dos telhados, se contentando com pouco. Entretanto, para se saciar, comia um oitavo do terreno do bosque novo e bebia de um pequeno lago na estepe. Kopienkin o respeitava e o colocava em terceiro lugar: Rosa Luxemburgo, a Revolução e o corcel.
— Saudações, Força Proletária! — Kopienkin cumprimentou o corcel, que fungava por causa da forragem grosseira. — Vamos ao túmulo de Rosa!
Kopienkin esperava e acreditava que todos os assuntos e caminhos de sua vida inevitavelmente levariam até o túmulo de Rosa Luxemburgo. Essa esperança aquecia seu coração e exigia façanhas revolucionárias diárias. Toda manhã, Kopienkin ordenava que seu corcel fosse ao túmulo de Rosa, e o animal tinha ficado tão habituado à palavra “Rosa” que a reconhecia como ordem para avançar. Depois do som “Rosa”, ele logo começava a mover as pernas, estivesse em um pântano, um matagal ou uma voragem amontoada de neve.
— Rosa — Rosa! — balbuciava Kopienkin de vez em quando, ao longo do caminho, e o corcel retesava o corpo gordo.
— Rosa! — suspirava Kopienkin, com inveja das nuvens que flutuavam em direção à Alemanha: elas passariam sobre o túmulo de Rosa e em cima da terra em que ela pisara com seus sapatos. Para Kopienkin, todos os caminhos e ventos iam para a Alemanha, e, mesmo se não fossem nessa direção, contornariam a terra e acabariam chegando à pátria de Rosa.

Копенкин пошел на двор к своему коню. Конь обладал грузной комплекцией и легче способен возить бревна, чем человека. Привыкнув к хозяину и гражданской войне, конь питался молодыми плетнями, соломой крыш и был доволен малым. Однако, чтобы достаточно наесться, конь съедал по осьмушке делянки молодого леса, а запивал небольшим прудом в степи. Копенкин уважал свою лошадь и ценил ее третьим разрядом: Роза Люксембург, Революция и затем конь.
— Здорово, Пролетарская Сила! — приветствовал Копенкин сопевшего от перенасыщения грубым кормом коня. — Поедем на могилу Розы!
Копенкин надеялся и верил, что все дела и дороги его жизни неминуемо ведут к могиле Розы Люксембург. Эта надежда согревала его сердце и вызывала необходимость ежедневных революционных подвигов. Каждое утро Копенкин приказывал коню ехать на могилу Розы, и лошадь так привыкла к слову «Роза», что признавала его за понукание вперед. После звуков «Розы» конь сразу начинал шевелить ногами, будь тут хоть топь, хоть чаща, хоть пучина снежных сугробов.
— Роза-Роза! — время от времени бормотал в пути Копенкин — и конь напрягался толстым телом.
— Роза! — вздыхал Копенкин и завидовал облакам, утекающим в сторону Германии: они пройдут над могилой Розы и над землей, которую она топтала своими башмаками. Для Копенкина все направления дорог и ветров шли в Германию, а если и не шли, то все равно окружат землю и попадут на родину Розы.

§

Diante dele, num fluxo contínuo de viagens, passava a Rússia soviética — sua pátria, tão indigente e cruel consigo mesma, se parecia um pouco com a aristocrática mulher desse dia. A mente triste e irônica de Serbínov lhe trazia pausadamente as pessoas pobres e inadaptadas, que tolamente se empenhavam em implantar o socialismo nas zonas vazias de planícies e barrancos.
E algo já começava a aparecer claro nos tristes campos da Rússia que ia sendo esquecida: as pessoas que não gostavam de lavrar a terra para semear o centeio, com sofrimento paciente, estavam plantando o jardim da história para a eternidade e para estarem inseparavelmente vinculados ao futuro. Mas os jardineiros, como os pintores e os cantores, carecem de mentes sólidas, com sentido prático; seus corações fracos começam a se emocionar subitamente: a dúvida faz com que arranquem plantas mal florescidas e semeiem o solo com pequenos cereais de burocracia; um jardim necessita de cuidados e de uma longa espera pelos frutos, enquanto os cereais crescem logo e seu cultivo não exige necessariamente nem o trabalho nem o desgaste que a paciência impõe à alma. Após a destruição do jardim da revolução, suas clareiras foram dadas somente ao cereal que cresce sozinho, para que todos se alimentassem sem a tortura do trabalho. Realmente, Serbínov pôde ver as raras pessoas que trabalhavam, pois o cereal alimentava todos de graça. E isso duraria muito tempo, até que o cereal comesse todo o solo fértil e as pessoas ficassem no barro e na pedra, ou até que os jardineiros, descansados, voltassem a cultivar um jardim fresco sobre a terra empobrecida e ressecada pelo vento inóspito.

Пред ним сплошным потоком путешествия проходила Советская Россия — его неимущая, безжалостная к себе родина, слегка похожая на сегодняшнюю женщину-аристократку. Грустный, иронический ум Сербинова медленно вспоминал ему бедных, неприспособленных людей, дуром приспособляющих социализм к порожним местам равнин и оврагов.
И что-то уже занимается на скучных полях забываемой России: люди, не любившие пахать землю под ржаной хлеб для своего хозяйства, с терпеливым страданием сажают сад истории для вечности и для своей неразлучности в будущем. Но садовники, как живописцы и певцы, не имеют прочного полезного ума, у них внезапно волнуется слабое сердце: еле зацветшие растения они от сомнения вырвали прочь и засеяли почву мелкими злаками бюрократизма; сад требует заботы и долгого ожидания плодов, а злак поспевает враз, и на его ращение не нужно ни труда, ни затраты души на терпение. И после снесенного сада революции его поляны были отдалены под сплошной саморастущий злак, чтобы кормиться всем без мучения труда. Действительно, Сербинов видел, как мало люди работали, поскольку злак кормил всех даром. И так будет идти долго, пока злак не съест всю почву и люди не останутся на глине и на камне или пока отдохнувшие садовники не разведут снова прохладного сада на оскудевшей, иссушенной безлюдным ветром земле.

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