Concret_s como frutos nítid_s como pássaros (VIII): 12 poemas de Susana Araújo

Susana Araújo. Cossoul. 2019.



“Concretos como frutos nítidos como pássaros” é uma série dedicada à divulgação da poesia portuguesa contemporânea no Brasil.

Leia os posts anteriores da série.

Parte I: “Explicação, Miguel-Manso” [fevereiro 2021].
Parte II: “Regina Guimarães, Margarida Vale de Gato, Maria Brás Ferreira” [março 2021].
Parte III: “Poesia Expandida. Fernando Aguiar, Teresa M. G. Jardim, Ricardo Tiago Moura, Alexandre Francisco Diaphra e Marta Bernardes” [maio 2021].
Parte IV: Volta para Tua Terra (Urutau 2021)” [junho 2021].
Parte V: “Patrícia Lino conversa com Tiago Alves Costa” [agosto 2021].
Parte VI: “Casa de Gigante” [setembro 2021].
Parte VII: “7 poemas inéditos de Pedro Eiras” [outubro 2021].




Susana Araújo (Lisboa, 1975) é poeta, ensaísta, ficcionista e professora na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Entre outros títulos, é a autora do ensaio Transatlantic Fictions of 9/11 and the War on Terror Images of Insecurity, Narratives of Captivity (2015) e de dois livros de poemas, Dívida Soberana (2012) e Discurso aos Pacientes Cirúrgicos (2020). Se Dívida Soberana concentra o embrião do interesse anatómico de Susana pelo corpo, o volume seguinte, Discurso aos Pacientes Cirúrgicos, faz desse mesmo corpo descoberto o centro das suas atenções. O poema ou o bisturi com que Susana disseca as peripécias da crise financeira portuguesa, a vida portuguesa e o próprio conceito de nacionalidade aprofunda-se, oito anos depois, para narrar os detalhes e as dificuldades da doença e do processo cirúrgico que significam, expostos com empatia e crueza, muito mais do que o que sugerem à superfície da palavra.



5 POEMAS DE DÍVIDA SOBERANA (2012)

Susana Araújo. Dívida Soberana. Mariposa Azual. 2012.


MÁTRIA

Puxada pela cabeça, no reverso do
que tínhamos ensaiado, costuras
raspadas e cerzidas, na tentativa de
expelir um país em chamas onde o
Tecnocrata ternamente rege, ruge e cospe.

Pela clareira púrpura, os mesmos escrevem as
mesmas palavras nos mesmos jornais. Pátria,
puta hipócrita, porque falas de mim pelas costas?
Comprei o bilhete de regresso por engano.



CUMPRIMENTOS

Porque não agarras tu, asinha, aquela bóia
que passa de mão em mão, saber seguro de
chavões em bronze (encadernação dourada,
permanente em logro) e halo de laca?

Afundas-te só, forasteira nessa aversão pelo
axioma pátrio trancado a truísmos, nada
igual a si mesmo, cópia (sem original) do
já feito lá fora (nem consciência de tal).

Estica o membro superior direito, bem puxado
braçadeira que aperta indolor. Exerce cumprimentos
formatados que cegam na insubstância do
pouco pensar. Ser portuguesa:
tão tarde, tão pouco e tão certo.
Para quê nadar?



RAIVA

Ladraste-me ao ouvido (rugidos em forma
de cálculo) e dizes agora que a rima é cáustica.
Morderam fundo: eu seco bem a pele,
(para ressequir zoonoses, nevoeiro em nódoa)
o barco em que dormimos
vela sobre o fel

Por onde andámos, membros fechados
de corporação em corporação, sonhando
com o mel de uma amputação, partilhámos
Raiva: porta perfeita para
o nervo periférico.

E, assim, prenunciados,
rendidos a um estado
sem graça nem jurisdição
vadiamos pelo branco adentro,
bocas espumando
tinta em papel




SOBRE A RECORRÊNCIA DO BRAÇO

O braço não é hífen, nem metonímia
é uma extremidade do corpo, um membro
extremista com direcção. Não é joelho nem perna
não corre, nem pisa mas recorre aqui nestes poemas
O meu braço esquerdo é terrorista: ao invés de se dirigir para fora,
retrai, recua e retrocede para dentro de si próprio. Leva consigo a mão
e os dedos do lado esquerdo, que penetrando a clavícula sob a axila
entram pela pele do meu peito adentro.

Esse braço cruza-se então com o outro (braço
que também recuou e penetrou a carne de
aquele lado). Cá fora já não agarro nada,
sem agência nem determinação, sou o resultado
esperado de uma auto-amputação.

Mas lá dentro estão os dois membros
unidos pelas mãos e pelos quirodálitos
prontos a agarrar o meu pulmão, poderosos
que são, como se de uma bomba
ou de uma borboleta se tratasse.



PROGRAMA DE ESTABILIDADE E CRESCIMENTO

Tu vacilas, não queres ouvir e eu
não vou ter contigo a meio caminho
deposta, abandonada e irrisória
a ponte de ferro quebra-se
assim que o FMI avança

Um casal ainda criança
já refinancia
os seus juros

Não há compensação
para quem sonha severamente
enquanto espera pelo autocarro
durante o horário de Inverno

Vê agora, lá fora: uma
família que forja falsetes
tenta agarrar-se à rede,
frívolos esforços em que
os nossos filhos falham

O estímulo ao investimento
de iniciativa privada promove
a utilização proveitosa dos nossos
recursos: como esta faca de cozinha
que avança para nós com serrilha, sorrindo
combinação certeira entre a ergonomia
o melhor design e a qualidade

Todas as domésticas suturas serão
submetidas a uma rigorosa
análise de sensibilidade

Dorme bem, meu amor e
deixa a manhã reestruturar
a nossa dívida.



7 POEMAS DE DISCURSO AOS PACIENTES CIRÚRGICOS (2020) + 3 POEMAS LIDOS PELA AUTORA

Susana Araújo. Discurso aos Pacientes Cirúrgicos. Não Edições. 2020.


PRESAS

Se a poeta fosse uma fingidora, tu já
terias partido e eu não estaria para aqui
a percorrer canais de escândalo e crime
para evitar o cano apertado deste buraco

destravaria já aqui o gatilho
e o rolar dos dias
no cilindro

mas cansa disparar
sempre
sempre ao lado

e logo com o revólver
de Emily Dickinson.



PREÂMBULO CLÍNICO: NÉCTARES OPERATÓRIOS

Examinei os estragos e fiz o desenho do sinistro. Deitada no
bloco pré-operatório, olho para o meu corpo – o local do embate.
Talvez o acidente tenha sido necessário, uma forma de resgate
ou de desentorpecimento. O médico pergunta-me se quero ter
mais detalhes sobre o procedimento. Quero saber apenas sobre a
anestesia: tenho medo de acordar durante a operação quando me
fizerem o primeiro corte. Dizem que é um medo recorrente neste
tipo de cirurgias. Na minha pele foi marcado, com uma caneta, o
sítio onde será feita a incisão. Lembro-me de teres percorrido esse
lugar como um pássaro sobre a pétala de uma flor.
Sob o efeito da anestesia peridural vejo a cidade como uma
gaivota semi-amputada. Uma cidade sem asas, de onde pessoas,
casas, famílias inteiras, partem. Sinto a minha perna dormente, mas
tento sacudi-la para a acordar. Sacudo o resto do corpo, sacudo o
peito e as ancas. Tento estender o corpo até ao outro lado do rio, para
onde foram transplantados bairros e bairros. Os músculos dos meus
braços já adormeceram, os meus olhos pesam. Sei que o transplante
será bem-sucedido porque parte do meu corpo já alcançou o outro
lado. Espera aí pelas gaivotas e que elas não venham sozinhas. Mas
acompanhadas por cambacicas e beija-flores.



INTIMAÇÕES

Gosto muito de ti, Wordsworth
mas lamento muito
(e face às tuas intimações
continuarei a lamentar)

porque esteja onde eu estiver
seja de que forma for –
pela porta da ambulância
pela faixa de emergência
ou no embate do eléctrico
contra o autocarro

regressa a mim
sempre que lhe apetece
a maldita hora
of splendour in the grass
of glory in the flower.



LIGAÇÕES E LIGADURAS

Nem o cheiro a gaze
nem o suor dos corpos brancos
me confundirão o faro

Serei como o pequeno cão
acidentalmente à solta
no cenário decorado a preceito
de um filme apocalíptico

cauda em riste

(tão certo de te ter
reencontrado
entre os zombies).



CURA E CASTIGO

Agora que sabes que sou tudo isto
e ainda o monstro sem rosto
que reaparece entre o lixo
nos filmes do David Lynch

agora que me viste curvar em
contramão como o lápis alcoolizado
que se julgava o melhor condutor
do mundo mas fica de bico partido
já que me tornei na voyeuse vulgar
à espera do outro lado do vidro

agora que já sabes tudo de que sou capaz

diz-me por favor
– o que vais
(ou não vais)
fazer comigo?



CICATRIZAÇÃO

É estranho, mas quando paro
junto a uma montra, no elevador
ou quando me revejo no retrovisor do carro
reparo que ainda persiste
no rosto – algo
ligeiramente magoado

toco aqui e ali
mas não te acho
não sei bem o que aconteceu
o que fiz ou o que me fizeste nas trincheiras
junto aos olhos
mas não ficou marcado

por outro lado
reconheço ali
um soldado

é qualquer coisa
a nascer
no canto do lábio

ainda não o contei a ninguém
nem a mim mesma

mas desconfio
(e por isso sorrio)
que tenho um plano.



HELIOTERAPIAS

Junto de um contentor de resíduos hospitalares está deitada uma
mulher de meia-idade. Tem um gorro de lã que lhe tapa as orelhas
e parte dos olhos. Veste dois casacos, um em cima do outro e meias
grossas que passam por cima das calças. É uma tarde de Abril, mas
as noites ainda são frias.
Outra mulher aproxima-se. Vem da entrada junto dos
Serviços de Urgência. Tem cabelos longos e desgrenhados. Veste um
sobretudo de homem com a bainha solta que lhe cai pelos joelhos.
Traz na mão esquerda dois sacos cheios de restos de comida. Na mão
direita segura uma moldura de madeira vazia. Põe os sacos no chão
e segura a moldura com as duas mãos, admirando-a: “Só cinco euros
para pores aqui a cara!” diz à mulher de gorro de lã, sorrindo. Senta-
-se ao lado da outra, levantando a moldura à altura dos ombros, para
que ambas a possam apreciar. A amiga, olha-a torcendo o lábio: “Só
cinco euros?”
A mulher de cabelos longos vira-se de frente para a amiga.
Limpa o caixilho de madeira com a manga da camisola e arranca
duas farripas de madeira já soltas. A outra observa-a em silêncio,
olha a moldura que brilha ao sol. A de cabelos longos põe a cabeça
pelo caixilho adentro e, assim enquadrada, beija a companheira nos
lábios. O sol insiste em ficar e eu atravesso a rua.


+


Leituras de 3 poemas de Discurso aos Pacientes Cirúrgicos pela autora. 2020.

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