Crystal Valentine é uma poeta queer nascida e criada no Bronx e atualmente vive em Boston, Massachusetts. Escritora, ativista e educadora, formada pela NYU, Crystal é vencedora pelo terceiro ano consecutivo, do Grand Slam de Poesia da NYU, e do College Unions Poetry Slam Invitational. Foi laureada como poeta jovem em 2015 pela NYC e está em nono lugar no ranking de mulheres poetas por meio da Poetry Slam Mulheres do Mundo. Sua obra teve destaque na programação da MSNBC, Blavity e CNN. Foi nominada como mulher do ano em 2016 pela Glamour Magazine. Publicou em diversas antologias e em 2015 seu primeiro livro Not Everything is a Eulogy.
Nos poemas a seguir, Crystal lança sua voz nas quebradas do mundo contra a chaga aberta do racismo antinegro que vitima e mata todos os dias.
Trazer para nosso idioma esses poemas é um estímulo de expor a experiência oral do slam norte-americano, semelhante às batalhas e aos saraus de poesia nas periferias brasileiras: manifesta no desafio da oralidade na poética escrita e na tradução cultural da cultura negra periférica brasileira e norte-americana.
Traduzir Crystal Valentine é como traduzir a experiência de grande parte da comunidade negra, suas dores de um passado e um futuro usurpados na História; tal experiência contida na ironia tão de On Evaluating Black Privilege, e é também uma aprendizagem não apenas de História negra norte-americana, mas também em letramento racial e o real conceito de privilégio, escancarado em And the news reporter says “Jesus is White”, o privilégio branco, de conhecer a poesia de Crystal Valentine antes de sua comunidade neste lado da diáspora.
Ler Crystal Valentine fortalece um compromisso com ambas as comunidades, a dela e a nossa, o compromisso de acesso a uma poética, a um grito, a uma lição, um compromisso do contato com a voz da poeta, semelhante à sua, para uns, instrutiva para outros, necessária para ambos.

On Evaluating Black Privilege
Black privilege is the hung elephant swinging in the room,
Is the memory of a slave ship,
Praying for the Alzheimer’s to kick in.
Black privilege is me having already memorized my nephew’s eulogy,
My brother’s eulogy,
My father’s eulogy,
My unconceived child’s eulogy.
Black privilege is me thinking my sister’s name,
Safe from that list.
Black privilege is me pretending like I know Trayvon Martin on a first name basis,
Is me using a dead boy’s name to win a poetry slam,
Is me carrying a mouthful of other people’s skeletons
To use at my own convenience.
Black privilege is the concrete that holds my breath better than my lungs do.
Black privilege is always having to be the strong one,
Is having a crowbar for a spine,
Is fighting even when you have no more blood to give,
Even when your bones carried you,
Even when your mother prayed for you,
Even after they prepared your body for the funeral.
Black privilege is being so unique that not even God will look like you.
Black privilege is still being the first person in line to meet Him.
Black privilege is having to have the same sense of humor as Jesus.
Remember how he smiled on the cross?
The same way Malcolm X laughed at his bullet.
And there I go again,
Asserting my Black privilege,
Using a dead man’s name without his permission.
Black privilege is a myth,
Is a joke,
Is a punchline,
Is the time a teacher asks a little boy
What he wanted to be when he grew up
And he said, “Alive.”
Is the way she laughed when she said,
“There’s no college for that.”
And it’s tirin’, you know?
For everything about my skin to be a metaphor,
For everything Black to be pun intended,
To be death intended.
Black privilege is the applause at the end of this poem,
Is me giving you a dead boy’s body and you giving me a ten,
Is me being okay with that.
__
Privilégio Negro
Privilégio negro é um elefante pendurado na sala
é a memória de um navio negreiro
E eu pedindo a Deus pra ter Alzheimer
Privilégio negro é eu já ter memorizado o discurso fúnebre do meu sobrinho
E do meu irmão,
E do meu pai,
E do meu filho não concebido.
Privilégio negro é, além disso eu pensar no nome da minha irmã,
A salvo dessa lista.
Privilégio negro sou eu fingindo que tenho intimidade com Trayvon Martin pra chamá-lo pelo primeiro nome,
Sou eu usando o nome de um menino morto para ganhar um campeonato de poesia,
Eu com a boca cheia dos esqueletos de outras pessoas
Usando-os como me convém.
Privilégio negro é o concreto que prende minha respiração melhor que meus pŕoprios pulmões.
Privilégio negro é sempre ter que ser o forte,
É ter um pé-de-cabra como espinha,
É continuar lutando mesmo quando não se tem nem mais uma gota de sangue a dar,
Mesmo quando apenas seus ossos o carregaram,
Mesmo quando sua mãe já rezou por você,
Mesmo depois de terem preparado seu corpo para o funeral.
Privilégio negro é ser tão único que nem é feito à imagem e semelhança de Deus.
Privilégio negro é mesmo assim ser a primeira pessoa na fila para encontrá-lo.
Privilégio negro é ter o mesmo senso de humor de Jesus.
Lembra como ele sorriu na cruz?
Da mesma forma que Malcolm X riu diante da bala.
E lá vou eu de novo,
Afirmando meu privilégio negro,
Usando o nome de um homem morto sem sua permissão.
Privilégio negro é um mito,
Uma piada,
Uma anedota,
É quando uma professora pergunta a um garotinho
O que ele quer ser quando crescer
E ele diz: “Vivo”.
É a maneira como ela ri quando diz,
“Não há faculdade para isso.”
E é cansativo, sabe?
Que tudo sobre a minha pele seja uma metáfora,
Que tudo que é preto seja um trocadilho,
destinado à morte.
Privilégio negro é o aplauso no final deste poema,
É eu dar a vocês o corpo de um menino morto e vocês me darem um dez,
E eu ficar bem com isso.
*
And the news reporter says
“Jesus is white.”
She says it with a smile on her face
Like it’s the most obvious thing in the world.
So sure of herself
Of her privilege
Her ability to change history
Rewrite bodies to make them look like her.
She says it the same way politicians say
“Racism no longer exists.”
The same way police officers call dead Black boys “thugs”
The same way white gentrifiers call Brooklyn home.
She says it with an American accent
Her voice doing that American thing
Crawling out of her throat
Reaching to clasp onto something that does not belong to her And I laugh to myself.
What makes a Black man a Black man?
Is it a white woman’s confirmation?
Is it her head nod?
Is it the way she’s allowed to go on national television
And autocorrect the Bible and God himself
Tell Him who His son really was?
What makes a Black man a Black man?
Is it the way reporters retell their deaths like fairy tales?
Is it the way they cannot outrun a bullet?
How can she say Jesus was a white man when he died the Blackest way possible?
With his hands up
With his mother watching
Crying at his feet
Her tears nothing more than gossip for the news reporters
Or prophets to document
With his body left to sour in the sun
With his human stripped from his Black
Remember that?
How the whole world was saved by a Black man?
By a man so loved by God he called him kin
Called him Black.
Now ain’t that suspicious?
Ain’t that newsworthy
why?
Ain’t that something worth being killed over?
__
E a repórter diz
“Jesus é branco”.
Diz isso com um sorriso no rosto
Como se fosse a coisa mais óbvia do mundo.
Tão segura de si mesma
de seu privilégio
de sua habilidade de mudar a História
de reescrever corpos até que se pareçam com o seu.
Ela diz isso da mesma forma que políticos dizem
“Não existe mais racismo”.
Da mesma forma que policiais chamam meninos negros mortos de “bandidos”
Da mesma forma que os gentrificadores brancos chamam o Brooklyn de lar.
Com um sotaque americano
Com a voz fazendo aquela coisa americana
Rastejando garganta afora
Se agarrando em algo que não lhe pertence E eu rio comigo mesma.
O que faz de um homem negro um homem negro?
É a confirmação de uma mulher branca?
É o aceno da cabeça dela?
É ela pode ir em rede nacional de TV
E corrigir a Bíblia e o próprio Deus
Dizendo a Ele quem seu filho realmente era?
O que faz de um homem negro um homem negro?
É como os repórteres recontam suas mortes como contos de fadas?
É eles não poderem escapar que uma bala?
Como ela pode dizer que Jesus era branco se ele morreu da maneira mais negra possível?
Com as mãos para cima
Com a mãe assistindo
Chorando a seus pés
Suas lágrimas não passam de fofoca para os repórteres
Ou para os profetas documentarem
E seu corpo azedando ao sol
Com a humanidade despojada de sua negritude
Lembram disso?
Como o mundo inteiro foi salvo por um homem negro?
Por um homem tão amado por Deus que o chamou de parente
O Chamou de Preto.
Agora, isso não é suspeito?
Não vale a pena ir pro jornal
porque?
Não vale a pena matá-lo novamente?
*
He says he can tell I’m from the Bronx
and I smile
because I am a foreigner in this country
and that’s what you do
when you are in a place
you don’t belong.
I didn’t know I was American
until I came to Paris.
Here, they don’t care that I’m black
but their eyes still linger on me a bit longer.
He says Mike Tyson is from the Bronx
I smile.
He says he’s Russian.
And I want to cock my neck
say, “My country beat your country in a war
and stole your name.
Now you can’t even remember the taste of
your motherland’s breast milk.”
That’s a childish thing to do,
I know.
It’s a dangerous thing to say to a man
who can spit in my face and call me a bitch.
Or maybe,
that’s just a foreigner thing.
I’m so American,
I will walk into another person’s home
and act like I built it.
__
Ele diz que dá pra ver que sou do Bronx
e eu sorrio
porque sou estrangeira neste país
e é isso que se faz
quando se está em um lugar
que não é nosso.
Eu não sabia que era americana
até vir a Paris.
Aqui, eles não se importam que eu seja negra
mas os olhos ainda demoram um pouco mais sobre mim.
Ele diz que Mike Tyson é do Bronx
E eu sorrio.
Ele diz que é russo.
E eu quero inclinar meu pescoço
dizer: “O meu país venceu o seu numa guerra
e roubou seu nome.
Agora você nem consegue se lembrar do gosto
do leite materno da sua pátria”.
É algo muito infantil de se fazer,
eu sei.
Algo perigoso de se dizer a um homem
que pode cuspir na minha cara e me chamar de vadia.
Ou talvez,
seja apenas uma coisa estrangeira.
Eu sou tão americana
que vou entrar na casa de outra pessoa
e agir como se eu a tivesse construído.
*
Tom Jones é um professor cearense. Estudioso das influências das culturas africanas na constituição da identidade brasileira, é mestre em Estudos da Tradução com pesquisa sobre as poéticas do culto afro-brasileiro do Xangô pernambucano. Interessa-se por literaturas e oraturas de certo modo consideradas à margem do cânone hegemônico; poéticas que formam todo um centro. Tem buscado traduzir poetas de origem africana e afro-americana na tentativa de tornar essas vozes ouvidas em português por quem em inglês não ouve. Já apareceu na escamandro com traduções de Saeed Jones e Warsan Shire.
*