Esquizofrenia & literatura, segundo Deleuze & Guattari

O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia (1972) é um livro bastante famoso que surgiu da colaboração de dois influentes pensadores da França dos anos 60, o filósofo Gilles Deleuze (1925 – 1995) e o psicanalista Félix Guattari (1930 – 1992). Ele é a primeira parte do estudo Capitalismo e Esquizofrenia, do qual a segunda parte consiste no também famoso Mil Platôs (1980), onde elaboram mais sobre alguns conceitos, como o do corpo sem órgãos, e desenvolvem outros, como o conceito de rizoma. Ao mesmo tempo uma leitura (neo-? pós-?) marxista da organização das estruturas da sociedade – que eles identificam sob os nomes de máquina territorial primitiva, máquina bárbara despótica e máquina civilizada capitalista, com base naquilo a que a produção em cada tipo de sociedade é atribuída: à terra, ao déspota e ao capital – e uma crítica às tendências simplificantes e reacionárias da psicanálise, pelo menos tal como era praticada até então, ele deita as bases para a prática que eles chamaram de “esquizo-análise”, i.e. uma análise não transcendente, como seria a psicanálise, mas imanente.

Apesar de não ser uma obra de crítica ou teoria literária, ela recorre a uma variedade de obras de literatura, aludindo principalmente a autores como Samuel Beckett, sobretudo o Beckett da trilogia Molloy, Malone Morre e O Inominável, e Antonin Artaud, de cujas balbuciações esquizofrênicas retiraram o conceito do corpo sem órgãos. Em todo caso, as ideias de Deleuze & Guattari são bastante relevantes para se pensar a literatura a partir de um viés social, do papel do artista na sociedade. No trecho que selecionei abaixo, da tradução em português de Portugal publicada pela Assírio & Alvim, eles tocam nessa questão.

Para uma introdução mais adequada sobre o livro, recomendo seriamente essa postagem detalhada no blog Fuck Theory, em inglês (clique aqui), bem como uma outra também, sobre o conceito das três máquinas sociais (aqui), que foi o que me motivou a superar meu preconceito com os autores (sem dúvida motivado, como sempre, pelos seus diluidores) e finalmente me dispor a lê-lo.

(Adriano Scandolara)

J.M.W. Turner - Snow Storm - Steam-Boat off a Harbour's Mouth (1842)
J.M.W. Turner – Snow Storm – Steam-Boat off a Harbour’s Mouth (1842)

A visita a Londres é a nossa visita à Pítia. Turner está lá. Olhando para os seus quadros compreende-se o que quer dizer atravessar o muro – ainda que permanecendo onde se está –, fazer passar os fluxos sem já se saber se nos arrastam para outros sítios ou se voltam para trás. Os quadros dividem-se por três períodos. Se o psiquiatra tivesse alguma coisa a dizer, poderia talvez falar sobre os dois primeiros que são de facto os mais racionais. Os primeiros são catástrofes do fim do mundo, avalanches e tempestades. Turner começa por aí. Os segundos são como que uma reconstrução delirante mas em que o delírio se oculta, ou melhor, acompanha a elevada tecnicidade herdada de Poussin, de Lorrain ou da tradição holandesa: o mundo reconstrói-se através de arcaísmos com uma função moderna. Nos terceiros, que Turner não mostra, que mantém em segredo, há algo de incomparável. Não se pode dizer que seja algo de muito avançado para o seu tempo: é algo que não é de época alguma, que vem de um eterno futuro ou que foge para lá. A tela afunda-se em si mesma, atravessada por um buraco, um lago, uma chama, um tufão ou uma explosão. Pode haver neles temas de quadros precedentes, mas o seu sentido modificou-se. A tela é realmente rasgada, fendida por aquilo que a atravessa. Apenas se mantém um fundo de névoa e de ouro intenso, intensivo, atravessado em profundidade por aquilo que o atravessa em largura: a esquize. Tudo se mistura, e assim se abre a passagem (e não a derrocada).

Estranha literatura norte-americana: Thomas Hardy, Lawrence e Lowry, Miller, Ginsberg e Kerouac são homens que sabem partir, misturar os códigos, fazer passar os fluxos, atravessar o deserto do corpo sem órgãos. Franqueiam um limite, rebentam um muro, a barreira capitalista, mas é evidente que nunca conseguem realizar completamente o processo. Volta-se a fechar o impasse neurótico – o papá-mamã da edipianização, a América, o regresso ao país natal – ou então a perversão das territorialidades exóticas, a droga e o álcool – ou, pior ainda, um velho sonho fascista. Nunca o delírio oscilou tanto entre os seus dois pólos. Mas através dos impasses e triângulos há um fluxo esquizofrénico que corre, irresistível, esperma, rio, esgoto, blenorragia ou vaga de palavras que não se deixam codificar, líbido demasiado fluida e viscosa: uma violência à sintaxe, uma destruição concertada do significante, o non-sens erigido em fluxo, plurivocidade que assombra todas as relações. O problema da literatura não pode continuar a ser posto a partir da ideologia que o informa, ou do modo como é recuperada socialmente. O que se recupera são as pessoas, não as obras, que hão-de sempre despertar um jovem adormecido, e qeu levam o seu fogo cada vez mais longe. E essa noção de ideologia é extremamente confusa porque nos impede de apreender a relação da máquina literária com um campo de produção, e o momento em que o signo emitido atravessa essa «forma de conteúdo» que o devia manter na ordem do significante. No entanto, foi já há muito tempo que Engels mostrou – a propósito de Balzac – que um autor se torna grande precisamente por não poder deixar de traçar e fazer correr os fluxos que rebentam com o significante católico e despótico da sua obra, e que alimentam necessariamente uma máquina revolucionária no horizonte. E é isso que é o estilo, ou antes, a ausência de estilo, a assintaxia, a agramaticalidade: instante em que a linguagem deixa de se definir pelo que diz, e ainda menos pelo que torna significante, para se definir pelo que a faz correr, ondear, rebentar – o desejo. Porque a literatura é exactamente como a esquizofrenia: um processo e não um fim, uma produção e não uma expressão.

(Gilles Deleuze & Félix Guattari. O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia, tradução de Joana Moraes Varela e Manuel Carrilho. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004. pp. 138-9)

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