Paulo Colina (1950—1999)

Este post é um modo de comemorarmos e celebrarmos o lançamento da Poesia reunida de Paulo Colina, um poeta que consideramos importantíssimo, que merece ser mais lido, neste ano em que ele completaria setenta voltas solares. O trabalho da edição é de Eunice Souza e Marciano Ventura, publicada pela Ciclo Contínuo Editorial, com apresentação de Oswaldo Camargo e Posfácio de Ricardo Riso, realizando um acontecimento poético neste sombrio 2020. O livro pode ser adquirido aqui.
O volume reúne os três livros poéticos de Colina publicados em vida, Plano de voo (1984), A noite não pede licença (1987) e Todo o fogo da luta (1989), com as apresentações e prefácios originais. Além disso, o livro reúne fotos que Mário Espinosa (todas as fotos usadas neste post são dele)  fez do poeta.
Abaixo, segue uma biografia retirada do livro e uma microantologia de 17 poemas que fizemos para termos um pouco mais da sua poesia na rede; uma das regras dessa microantologia foi não repetir nenhum poema que tenhamos encontrado em forma digital.

Guilherme Gontijo Flores & André Capilé

* * *

Paulo Colina nasceu em 09 de março de 1950, no município de Colina, São Paulo. Contista, poeta, dramaturgo, ensaísta, tradutor e músico. Trabalhou e colaborou com editoras, jornais, revistas e suplementos literários, escrevendo artigos, crônicas, resenhas e traduzindo poetas, como o sul-africano Dennis Brutus, o nigeriano Wole Soyinka – Nobel de Literatura de 1986, os japoneses Bokussui Wakayama e Machi Tawara (ambos com Masuo Yamaki).

Participou da fundação de grupos literários, como o Quilombhoje (1980). Em 1988, coordenou, na 4a Bienal Nestlé de Literatura Brasileira, o painel “O Negro: de personagem a autor”, com a exposição de Oswaldo de Camargo, Helena Theodoro, Henrique L. Alves, Jônatas Conceição, Zilá Bernd, Abelardo Rodrigues, Clóvis Moura, Éle Semog, Geni Guimarães, José Carlos Limeira, Oliveira Silveira e Adão Ventura. Dirigiu a União Brasileira de Escritores no biênio 1986/1988. Voltando a dirigi-la em 1994/1996.

Na literatura estreou com o volume de contos Fogo cruzado (1980), seguido dos volumes de poesia Plano de voo (1984), A noite não pede licença (1987) e Todo o fogo da luta (1989). Seus trabalhos foram incluídos em várias antologias e coletâneas nacionais e internacionais (EUA, Alemanha, França, Suíça e Espanha). Sua Axé – Antologia Contemporânea da Poesia Negra Brasileira (organização e participação), pela Global Editora, São Paulo, 1982, ganhou o Prêmio APCA – Associação Paulista de Críticos de Arte – de literatura: melhor livro de poesia do ano.

Faleceu em 08 de outubro de 1999, vítima de problemas cardíacos.

* * *

VOO
(De Plano de voo)

Sob o olhar semicerrado
do sol de fins de julho,
os rios musgosos como a coberta
das montanhas entrecortadas
…………………………de veias marrons
são, às vezes, pura prata
……………………………………cintilante.

Daqui, não há limites.
Nem para a noite!

Minhas asas
só precisam de fibras
um pouco mais fortes.

§

CIRCULAR AS SOMBRAS
(De Plano de voo)

podem cobrir
quantas mulheres quiserem
mas nunca descobrirão as trepadeiras
……………………………………………………voadoras
de seus poços de ternura

podem construir torres e grutas
e inventar heróis de ar
…………….para distrair os guris
mas nunca impedirão
que as árvores continuem a crescer
……………………………………….na caatinga

podem dispor de todo o meu corpo
de pano e de louça
mas nunca estancarão meu sangue
………………………………………..de terra
e tão pouco meu pulsar vegetal

§

SENTINELAS
(De Plano de voo)

Eram três
………….e era noite.

Eram três
e me cercaram.

Era noite
e seca a lâmina fina.

Três pivetes,
meninos sem nome.

Três afluentes do meu sangue.

§

POEMA ETÍLICO
(De Plano de voo)

Vez ou outra,
quando te beijo
com a garganta de terra
………….clamando por tempestade,
despencam pelas bordas estriadas
……………………..dos meus lábios
sopros mortos de negros sangues
sugados em torpores líquidos
borbulhando finas lâminas
……………………..e corpos rebeldes
de eternos canaviais.

§

FORÇA
(De Plano de voo)

Acostumar nosso ânimo
ao ritmo de espuma marítima.

Cuidar do olho da cobra de vidro,
com o rochedo do pensamento.

Anular todos os estigmas (da história
e da língua ferina), na voz do vento.

Crer, sim, no sobrenatural,
com a naturalidade do sono.

Manter o pulso noturno lúcido,
na incoerência diurna.

Arder nosso bolor cotidiano,
como minha paixão por ti.

§

VACILOS
(De A noite não pede licença)

Abrir as mãos
e soprar a pena
sentimento do mundo
ou quem sabe
esse cão
que guarda
………….as minhas noites todas

§

TURNING POINT
(De A noite não pede licença)

ainda que seu corpo
…………..insinue caminhos
todas as portas da cidade
………………………………fechada
ainda que sua voz desalinhe
………….algodão línguas cetins
o eco carcomido de grilhões
……………………..intimidando o passo

§

OFERENDA
(De A noite não pede licença)

É certo:
ascendentes presenças não se distanciarão
…………………………………………………………….nunca
um dedo além do meu ego.
E todo o ruído das ruas
nada mais é que um emergente sussurro
…………………………………………………..quilombola.

Igual que as pancadas pluviais de verão,
é impossível prever, com segurança, quando
o banzo desabará sobre mim.
Mas sigo me desanuviando.

Em mim, sempre é verão
(âmago abrasivo transpirando, irrequieto,
toda sorte de desejos e lutas).
Os tambores que persistem nas noites
………………………………………………….dos tempos
não embalam simples recordações: –
há que se recriar paciente
nosso universo turvo.

Meus músculos estão todos prontos.
Se quiser, mulher, começamos já.

§

HEREDITARIEDADE
(De A noite não pede licença)

Tudo aflora
à raiz dos cabelos:

cruzar de vultos contínuo
por fronteiras ausentes de lua.

Beiços
portas escancaradas –

palustre alvenaria de um povo
erigida em outubros banais.

Teu desespero, avô
que nunca me contou histórias,
sempre me acompanha.

§

ROSA DOS VENTOS
(De A noite não pede licença)

Inútil buscar os rastros da Noite
nos livros de história.
Nossos rumos dormem antigos
sob a poeira da discórdia.

§

CONSCIÊNCIAS
(De Todo o fogo da luta)

soberania
amor estranho às carícias
………………………..do meu povo
em nossos olhos
a calma embaçada dos tanques
ante esses tempos fáceis
…………………………………de poder
a dor antiga tem uma só voz

crepita incontrolável
meu remordimento

§

AQUI O FOGO
(De Todo o fogo da luta)

origem dos gumes alaranjados
……………………….da língua
santa inquisição onde não delato
……………………….os dentes clandestinos
……………………….o assalto dos corpos
todo o universo disperso
……………………….em minha carne anoitecida
na hora em que os homens de terno
………………………………………………..padrão
dormem sonos injustos

cão destravado
…………..palavra em pelo
……………………………..tribal
altar pagão de minha prudência
……………………………………..de água calcinada
raiz do fogo

é sempre uma redundância
………………………..companheira
falar do teu ventre

§

AO JEITO DE ÁLVARO DE CAMPOS (*)
(De Todo o fogo da luta)

comprovadamente
a terra é redonda
galileu galilei desconhecia viseira

enquanto procurávamos nossas carnes
pelos porões impunes
…………..ou cemitérios sem caminhos
o mundo também era uma bola p
elos campos de setenta

sangue terra e grama
o princípio da humanidade
(foi o que li dia desses
………………………….no jornal
uma chuteira uma camisa dez
e a mágica com uma pelota
podem driblar qualquer desgraça
…………………………do gênero humano)

recebo via malote
panfletos coloridos ressaltando
as belezas da áfrica do sul

cape town johannesburg skukuza
sun city durban
…………..saberão
apartheid soweto mandela
e tantos nomes afogados pela demência
…………..de futebol & warner brothers?

em nome da nossa soberania
o homem que sabe javanês
se recusa romper com o terror
e assina que turismo
……………………….é paz
sob o retrato de desmond tutu

coitado de mim
coitado de mim que sou maioria
……………………………………e invisível
em meu próprio país
eu animal de fogo
que arde nos fósseis
…………….da nossa mudez

…………….merda

(*) Escrito após leitura de uma propaganda veiculada pela EMBRATUR em alguns jornais do país, em maio de 1987, com uma foto de Desmond Tutu ao lado de uma de Pelé classificado como “a maior personalidade negra da humanidade”.

§

RADIAL
(De Todo o fogo da luta)

Não é grande conhecimento
saber o número preciso de átomos
……………que compõem uma molécula.
Nem de grande serventia
todas as armas que engraxo
cauteloso do momento indefinido.
Pobres de nós, minha preta!
– O vício da mordaça;
o hiato dos nossos nomes

§

NAÇÃO
(De Todo o fogo da luta)

Há esse arfar gordo:
batidas pontuadas de pés no chão.
Não nos cabe agora o cão das salivas,
o fel que navega de tempos em tempos
por nosso território.
Não nos cabe agora o bisturi
…………………………das dúvidas.
Este o momento de desatar nós internos
…………………………com nossas canções.
Onda negra de rostos contra o sol.
E essa cerca colorida de arcos
………………………………………de berimbau
em movimento.
Resistir jamais será um equívoco.

§

UM TOQUE
(De Todo o fogo da luta)

nenhuma vergonha
do que restou da casa
que temos que reconstruir

Incautos
os incendiários nos creem
……………………….inocentes

gravada em pedra
……………que não se remove
a lembrança de que nada
do que nos cabe
…………..deve ser pequeno

nós
órfãos do minuto desatento
frutos da noite grávida
…………………………de força

§

TODO O FOGO DA LUTA
(De Todo o fogo da luta)

pela manhã te cumprimento
e não existe instrumento capaz de traçar
…………………………………………….com exatidão
o meridiano de nossos dias

esta vida não é só minha

coral secular no fundo do vale escuro
……………………………………………………que sou
o dever de mãos calejadas em construir
…………………………………………………..países
tênue teia de ruas
de remoldar vestígios no meio do caminho
………………………………………………….que nos cabe
aprendizado de união

este sonho não é só teu

dançam campanários despercebidos
no trânsito da cidade
confusão de vitrais multicores
pontas de dedos que procuram

pela manhã te cumprimento
passa por teus lábios
todo o fogo da luta

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