Caio Augusto Leite nasceu em São Paulo em 1993. Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP). Integrou o Printemps Littéraire Brésilien 2018 na França e na Bélgica a convite da Universidade Sorbonne. Tem dois livros publicados: Samba no escuro (2013, Scortecci) e A repetição dos pães (2017, Editora 7Letras). Além do livro de contos Terra trêmula, no prelo.
* * *
I.
Nesse silêncio de frutas
Ainda sem verão
Sinto a próxima chuva
Pelo cheiro que a terra emana
Pela secura da terra selvagem
Das flores ainda fechadas
Das flores sem flores ainda
A lembrança de outros verões
Mais turbulentos
A nenhuma saudade de um dezembro
Antigo como a fome de querer ter tudo
De ser tudo e como dói pouco não ter
Não ser e não estar chovendo
Para que eu assim mesmo me alegre
Como os melões e as uvas áridas
Pois trazem dentro a água futura
A mesma de sempre e renovada
Em ácidas e doces suculências
Nas sementes secretas
Nos pátios de linóleo manchados
De sumo roxo e o coração em ritmo
Suave e flexível batendo cabendo
No que a vida dá e que colho não depois
Não como antes mas já nessa umidade
Prevista entre os dedos a unidade
Do universo em meu nome e antes dele
No sal do deserto a partilha se faz
Como se nunca não se fizesse
O pra sempre é aqui já nesse momento:
Primitivo, derradeiro II.
os dias que amanhecem tristes
nada têm de tristes são
os sentidos que pousam
como pássaros na árvore
nada tem de pássaro a árvore
no entanto pensamos neles
quando vemos florestas
e quando crianças desenhamos
pássaros pousados começamos
pela árvore nunca pelo pássaro.
III.
as mãos se relacionam
e se amam ou se odeiam
quanto mais ou menos
se enxergam
quanto mais ou menos
se entregam ao mistério
além das próprias semelhanças
além das unhas e dos dedos
quanto mais ou menos
inauguram gestos concretos
entre si amenos e pacíficos
cheios de alegria
se odeiam ou se amam
quanto mais ou menos
se unem para a falácia
das sombras projetadas na parede
sob uma luz triste e fraca
uma imagem fixa e falsa
as mãos se amam ou se odeiam
quanto mais ou menos
se procuram no escuro
e se iluminam de dentro pra fora
se amam ou se odeiam
quanto mais ou menos
deixam de caçar passados
e tatear futuros
quanto mais ou menos
perfuram o agora
as mãos se odeiam
quanto mais se odeiam
em vício, tristeza
e servidão
as mãos se amam
quanto mais se amam
e alegres dançam
leves aves libertas
IV.
os poetas trapaceiam
passeiam entre trapos
inventam tramas e vendem
livros cheios de arabescos
fingem que são outros
mas lá dentro onde um homem
se olha no lago e se afoga
ali na linha de uma costura
que antes de longe nem parecia
pendurados na paredes
se ocultam óbvios na tapeçaria
Ana Guadalupe nasceu em Londrina, Paraná, em 1985. Poeta e tradutora, tem publicado relógio de pulso (7letras, 2011) e não conheço ninguém que não seja artista (confeitaria, 2015), com fotos de camila svenson e edição de fabiane secches.
Abaixo, alguns poemas de seu mais recente livro, Preocupações, publicado pela Edições Macondo em 2019.
*
VAMOS PERDER O CONTATO
vamos perder o contato
já que não há motivo para mantê-lo
por meio de encontros e recados
se a cada dia acordamos outro
e não vamos manter nem em sonho
nosso outro de ontem
outrora foi mais fácil
cortar os laços todos
vamos retomar e perder o contato
só no arquivo permanente do passado
o outro ficará pra sempre guardado
prêmio que apenas antecipamos
cromo raríssimo
pacote intacto
*
CASAS
numa casa com aluguel atrasado
falamos da chuva de granizo
numa casa movediça
o despertador toca mais cedo
de uma casa com incêndio
você talvez não saia a tempo
numa casa no deslizamento
morremos pensando que pena
numa casa pequena
não cabem os panos de prato
sem uma casa arejada
você cheira a cachorro molhado
numa casa sem amor
todos arrumam outros planos
numa casa às pressas
tem coisas que você deixa
numa casa por ano
é melhor nem abrir essas caixas
*
MORRI
morri
pouca gente apareceu
caixão aberto, batom
seco
três
amigos fizeram homenagem
enquanto despedaçava a
terra
segui
alguns andando pela rua
minutos depois do
enterro
ouvi
quando disseram
que nunca me conheceram
a fundo
*
MAU HÁLITO
quando amamos quem tem mau hálito
todo beijo é generoso e esforçado
ainda que com o tempo
surja um prazer genuíno
no perfume do pão
de anteontem com café
de ontem
depois de muitos anos
quando quem se ama
já morreu
basta passar com energia o fio dental
para projetar
no ar
o sangue
e o rastro de tártaro
que hoje são o corpo do ser amado
Publicada na África do Sul, Sumatra, Japão, Macau, Portugal e Austrália, a obra de John Mateer inclui ensaios, poemas, uma prosa de viagem na Indonésia e uma novela que se passa nas Ilhas Cocos (Keeling), um atol no Oceano Índico. Seus poemas foram traduzidos em várias línguas europeias e asiáticas, bem como ao farsi e ao armênio. Seus livros de poemas incluem: Ex-white/Einmal weiss: South African Poems; The West: Australian Poems 1989-2009; Emptiness: Asian Poems 1998–2012; Southern Barbarians; e Unbelievers, or ‘The Moor’. Os últimos dois receberam edições portuguesas. Sobre os seus poemas sul-africanos, o romancista J.M. Coetzee escreveu que eles “retornam a onda do esquecimento, dando-nos um relance atrás do outro de uma pátria múltipla e amada”. João, seu último livro, é uma série de sonetos sobre o viajante fictício homônimo e foi publicado na Austrália e na Inglaterra. Recentemente, Mateer veio ao Brasil numa viagem e fez leituras e palestras em várias cidades.
Gisele Wolkoff é autora de Partidas (2012), Rumo ao Sol (2014), Ar (2016), publicados pela Palimage em Portugal, organizou e traduziu Poem-ando além fronteiras: dez poetas contemporâneas irlandesas e portuguesas//Poem-ing Beyond Borders: ten contemporary Irish and Portuguese women poets. (Palimage, Coimbra: 2011) e Plurivozes Americanas/American Plural Voices/Plurivoces Americanas (CRV: Curitiba, 2015). É professora do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal Fluminense em Volta Redonda, de onde coordena a pesquisa Cultura e Artes no sul-Fluminense: memória & história, com apoio da FAPERJ.
* * *
ETHEKWENI
The Poet
The poet, a New South African, holds his fist out to me. I extend mine to meet his, our knuckles snug as in a knuckle-duster. “Welcome home,” he says, swaying his fist back to his chest, his [heart. I do likewise, but feebly, and mutter, “This is strange…”
Earlier he’d told of when they’d razed his grandmother’s house [with her inside. In the interrogation he’d been asked, “What do you think of your [comrades now?” And he had shouted back: “Every revolution has its casualties!” But when in gaol, alone, he wept for her for the first time.
I look at my hand on the table between us: a pale, grotesque thing. Why, without reticence, did I press that against his dark fist?
O Poeta
O poeta, um sul-africano, estende-me a mão. Eu retribuo, as nossas articulações se acomodam como numa [soqueira. “Bem vindo ao lar”, ele diz, balançando o punho ao seu peito, ao seu [coração. Eu sigo o ritual, ainda que debilmente, e murmuro: “- Isso é estranho…”
Mais cedo ele me contara de quando eles arrasaram com a casa da [sua avó com ela dentro. No interrogatório perguntaram-lhe: “- O que você pensa dos seus [camaradas agora?” E ele gritara de volta: “- Toda revolução tem os seus acidentes!” Mas, quando na prisão, sozinho, ele chorou por ela pela primeira [vez.
Olho para a minha mão entre nós, à mesa: uma coisa grotesca, [pálida. Por que, sem reticência, pressionei-a contra o seu punho escuro?
§
The Prostitute
The woman is sitting in the doorway half in the sun. Her face is hidden. She’s talking to someone out of sight. Her legs crossed like fat fingers. Even from here I can see her shins are bruised and the white high-heels scuffed and dirty. Though she beckons passers-by they hardly glance at her.
Then she stands up, steps into the humid street. Her eyes clench against the bright. Under her black vest her limp, shrunken breasts. She spots me in the bar across the street and beckons, insistently beckons me like a long forgotten friend.
A Prostituta
A mulher está sentada na soleira da porta, parcialmente iluminada [pelo sol. Seu rosto está escondido. Ela conversa com alguém que não se vê. As suas pernas, cruzadas, como dedos gordos. Mesmo daqui consigo ver as suas canelas machucadas e os saltos-altos gastos e sujos. Ainda que ela acene a transeuntes, eles mal a olham.
Eis que ela se levanta, sai à rua úmida Os seus olhos cerram-se mediante a luminosidade. Debaixo de suas vestes prestas, seus peitos encolhidos, flácidos. Ela me descobre no bar do outro lado da rua e acena, Acena-me insistentemente como um amigo há muito esquecido.
§
The Tourist
They have their hands in his pockets and around his neck. They’ve pinned him against the wall. In the public toilets there are no surveillance cameras.
The tourist just off the plane has no witness to his struggle, no one but himself to testify to his calm, how he is telling himself, I could have been one of them, disappointed with the Revolution…
The wall persists, abrasive, against his cheek as he’s being bitten on the shoulder in this land of AIDS.
O Turista
As mãos deles, em seus bolsos e ao redor do seu pescoço. Seguraram-no contra a parede. Não há câmeras de seguranças nos banheiros públicos.
E aterrissado, o turista não tem testemunhas de sua luta, ninguém que ateste a sua calma, ou de como ele diz a si mesmo: “- eu poderia ter sido um deles, frustrado com a Revolução…”
A parede persiste, abrasiva, contra a sua face como se ele estivesse sendo mordido no ombro nesta terra de AIDS.
§
The Worshippers They’re up from the beach, are dancing at the bus-stop.
They’re dancing, circling to the throb of the cow-hide drum. The drummer, head low, holds the leather heart under his arm, pummels with a quick pulse that is pure praise. The women sway and clap fast, absorbed as Rastas on an [Ethiopian mountain. On one woman’s back, snugly bound with a blanket, an infant, eyes wide, cheeks jiggling, is memorizing all this.
Of their words all I hear is the prophet’s name: Shembe Shembe [Shembe.
Behind them, on the beach where they have been since the night, [other gatherings of Zionists, some standing, some kneeling, clasp their hands in [prayer, their candles now low in the sand, their bottles of holy water pale [with the breaking day. Waist-deep in the grey swell a man is baptizing a calm, white- [robed child while two surfers, skirting carefully around them, enter the waves, [slip away from that tourist who photographs this scene with the hotels as [backdrop. Up here at the road the worshippers are dancing and singing as if [they could forever.
Os Adoradores
Eles voltam da praia, dançando no ponto de ônibus.
Dançando, fazendo pulsar o ritmo do tambor burilante. O baterista, cabisbaixo, carrega o coração de couro debaixo do [braço, chacoalha com uma rápida batida e que é puro louvor. As mulheres se movimentam e aplaudem rápidas, absortas, feito os [Rastas nas montanhas etíopes. No dorso de uma delas, embrulhada confortavelmente num [cobertor, uma criança de olhos arregalados, bochechas sacolejantes decora tudo isso.
Tudo o que ouço das suas palavras é o nome do profeta: Shembe, [Shembe, Shembe.
Para trás, na praia onde estiveram desde a noite, outros [agrupamentos de Sionistas, alguns, em pé, outros, ajoelhados batem palmas em [oração. As suas velas agora fracas na areia, as suas garrafas de água benta [lívidas com o raiar do dia. Um homem, imerso até a cintura nas águas turvas, batiza uma [criança vestida de branco, calma enquanto dois surfistas margeando cuidadosamente o entorno, [entram nas ondas, desaparecem daquele turista que fotografa essa cena com os hotéis de pano de [fundo. Aqui na rua, os adoradores dançam e cantam como se não houvesse [amanhã.
Os três poemas a seguir servem de epígrafes ao meu recém-lançado livro de poemas autorais, Uranium 235. Deles, contudo, apenas o “soneto” de Ronsard foi traduzido para compor o volume: o capítulo dedicado a poemas de amor, que ele de certa forma apresenta, parece deslocado no contexto político que vivemos — de retrocesso extremo e de afirmação desse retrocesso como valor… Precisei tecer um comentário autoirônico e assim o escolhi.
Os dois demais poemas: o “soneto 50” de Hopkins, pertencente ao conjunto conhecido como “Sonetos Obscuros”, e o poema “Segunda Vinda”, de Yeats. O primeiro foi traduzido segundo o método da paixão incondicional: de cor, o repetia para mim (pois, por ter trilhado a religião cristã sinceramente por um tempo, compartilho algo da angústia que ele exprime), até que alguns dos versos começaram a surgir em português. Chocou-me, ao fim da organização do capítulo primeiro, o quanto esse soneto o explicava. Inseri-o.
Quanto ao último, ele me cativara há muito e o seu processo de tradução foi mais penoso, de brigar com o texto. A ironia com que as coisas de deus (Javé), do Cristo, são tratadas, e essa promessa, sempre-além, do fim do mundo e a vaga descrição dos seus sinais e do declínio, fez-me querer tê-lo à frente dos meus textos, os quais também trazem certo pessimismo e ironia.
Talvez seja coisa de estreante o querer trazer diante de si, a cada parte de seu livro, um grande autor ou nome a fim de lhe servir de escudo. Mas como se pode ler em cada um deles, mais que brigar contra um leitor indisposto ou um crítico grosseiro, a lida dá-se, como lemos nos textos, com um deus, que não garante 1. a paz interior, ou 2. o amor vencer, frutificar, ou 3. qualquer justiça ou paz exterior. É contra (E)le o escudo.
Victor Queiroz
*
Thou art indeed just, Lord, if I contend
With thee; but, sir, so what I plead is just.
Why do sinners’ ways prosper? and why must
Disappointment all I endeavour end?
Wert thou my enemy, O thou my friend,
How wouldst thou worse, I wonder, than thou dost
Defeat, thwart me? Oh, the sots and thralls of lust
Do in spare hours more thrive than I that spend,
Sir, life upon thy cause. See, banks and brakes
Now, leavèd how thick! lacèd they are again
With fretty chervil, look, and fresh wind shakes
Them; birds build – but not I build; no, but strain,
Time’s eunuch, and not breed one work that wakes.
Mine, O thou lord of life, send my roots rain.
– Gerard Manley Hopkins
Sois sempre o Justo, ó meu Senhor, se houver contenda de mim conVosco. Deus, dizei-me então por que prospera o ímpio e aonde eu ando não se vê nada além despontar meu desapontamento?
Fosses imigo, ó Vós, o meu amigo, eu penso, como faríeis mais frustrar-me ou mais perder- me, se os capachos da Luxúria têm poder de, em ócio, ir mais além de mim, eu, quem empenha,
Deus, vida em Vossa Obra? O arbusto, o bosque, jaz- em verde viço, vede-os! c’roas de matizes revêm-lhes, e eis o vento ameno move-os, traz
frescor; a ave se aninha, ainda eu não me aninhe: castrou-me o Tempo, e não emprenho obra eficaz. Ó Vós, Vida da vida, regai-me as raízes.
§
Au milieu de la guerre, en un siecle sans foy,
Entre mille procez, est-ce pas grand folie
D’escrire de l’Amour ? De manotes on lie
Des fols, qui ne sont pas si furieux que moy.
Grison et maladif r’entrer dessous la loy
D’Amour, ô quelle erreur ! Dieux, mercy je vous crie.
Tu ne m’es plus Amour, tu m’es une Furie,
Qui me rends fol, enfant, et sans yeux comme toy :
Voir perdre mon pays, proye des adversaires,
Voir en noz estendars les fleurs de liz contraires,
Voir une Thebaïde, et faire l’amoureux.
Je m’en vais au Palais : adieu vieilles Sorcieres.
Muses, je prens mon sac, je seray plus heureux
En gaignant mes procez, qu’en suivant voz rivieres.
– Pierre de Ronsard
Num século sem fé, em meio a guerras, réu de processos mil, será loucura escrever sobre o Amor? Por menos curam de outros loucos algemar, menos feras.
Velho e doente adentrar o Amor, não erra quem o faça? Deus, esta lei, conjuro-a. Não mais Amor, tu és-me a vera Fúria: faz-me fulo e infante e cego como ela.
Ver perder-se o país, entre adversários e estandartes flor-de-lis contrários; frente à Tebaida, bancar o amoroso.
Vou-me ao Palácio: adeus, magia antiga. Ó Musa, eu faço as malas, mais gozoso é vencer meus processos, que o segui-la. §
The Second Coming
Turning and turning in the widening gyre
The falcon cannot hear the falconer;
Things fall apart; the centre cannot hold;
Mere anarchy is loosed upon the world,
The blood-dimmed tide is loosed, and everywhere
The ceremony of innocence is drowned;
The best lack all conviction, while the worst
Are full of passionate intensity.
Surely some revelation is at hand;
Surely the Second Coming is at hand.
The Second Coming! Hardly are those words out
When a vast image out of Spiritus Mundi
Troubles my sight: somewhere in sands of the desert
A shape with lion body and the head of a man,
A gaze blank and pitiless as the sun,
Is moving its slow thighs, while all about it
Reel shadows of the indignant desert birds.
The darkness drops again; but now I know
That twenty centuries of stony sleep
Were vexed to nightmare by a rocking cradle,
And what rough beast, its hour come round at last,
Slouches towards Bethlehem to be born?
– William Butler Yeats
The Second Coming
Gira-girando, e a gira a agigantar-se, o falcão não pode ouvir o falcoeiro; coisas desintegram-se; o centro cede; mera anarquia é liberta contra o mundo, a maré-sangue é liberta, e, em toda parte, a cerimônia da inocência afoga-se; os melhores, inconvictos, enquanto os piores — intensos, passionais.
Decerto a Revelação bate à porta; decerto a Segunda Vinda bate à porta. Segunda Vinda! As palavras mal saem, vem-me a imagem vasta do Spiritus Mundi perturbar-me as vistas: no vago areal, um vulto — corpo-leão/tez humana, olhos-vácuo, impiedosos como o sol — move as coxas lentas, e, em torno, sombras- satélite, aves do deserto indignadas. De novo, trevas; porém agora eu sei que vinte séc’los de sono de pedra em berço de balanço infligem pesadelos. E qual besta rude, arribada a hora enfim, rasteja até Belém para nascer?
§
Victor Queiroz (Campinas/ SP, 1991), formado em Composição pela UNESP, onde travou contato com a teoria e prática da tradução-arte, por meio do professor e amigo Omar Khouri. Desde então, dedica-se, enquanto poeta, sobretudo à prática da tradução, contribuindo com aPonto Virgulina. Entre os seus principais interesses poéticos, encontram-se os Modernismos, dentro e fora do Brasil, e as poesias francesas clássica e pré-Simbolista; e ainda o Concretismo em toda a sua extensão: da poesia visual aos tratados teórico-críticos e (belíssimas) traduções desenvolvidas pelos Noigandres. Lançou este ano Uranium 235, pela editora Urutau e já apareceu aqui na escamandro com 1 poema.
Sylvia Plath (1932-1963) compôs Três mulheres como um livro-poema radiofônico. Nesse sentido, não foi escrito para ser lido individualmente, em silêncio, mas para ser falado. Inclui, em sua própria forma, um desejo comunitário.
Trata-se, de fato, de uma comunidade de
incomuns. As três Vozes do poema são de mulheres que tomaram rumos distintos
com relação a uma situação de possível maternidade.
(Sobre a questão da maternidade tanto em Três
mulheres quanto em outros poemas de Plath, conferir o artigo de Marina
Della Valle que acompanha a tradução da mesma autora em “‘Três mulheres’:
Sylvia Plath e a maternidade”, nos Cadernos de Literatura em Tradução n.
8 da USP.)
O poema, encomendado pela BBC, é transmitido
pela primeira vez em 1962, no mesmo ano em que nasce o segundo filho da poeta e
de sua separação de Ted Hughes.
Muitos viram nos temas que surgem no poema
para três Vozes questões centrais na obra posterior de Plath.
Outra chave de leitura possível seria
considerar Três mulheres ao lado de outros poemas que tematizam o
universo do hospital, como “Acordando no inverno”, “Tulipas” e “Febre 40
graus”, relativamente contemporâneos ao poema radiofônico.
Essa leitura permitiria, talvez, conjugar os
pares solidão / comunidade e corpo / incomum com a lei das metáforas em Plath,
em sua relação com os pares natureza / cultura. Mas, sobretudo, permitira ver
na sua forma de metaforização um duelo entre um corpo que vai morrer e um corpo
que insiste em viver.
Sobre a tradução de Três mulheres: o
poema de Plath possui poucas versões em língua portuguesa. Em todas elas, um
problema central se coloca: como traduzir o uso que Plath faz da palavra “flat”
mantendo: a sua conotação simbólica de oposição entre vazio e cheio; a sua
sonoridade gerativa (nas semelhanças sonoras produzidas pela palavra em versos
como: “Blunt and flat enough to feel no lack. I feel a lack”); e a sua
brevidade fonética.
Ana Gabriela Macedo, que traduziu o livro
para o português de Portugal pela editora Relógio D’Água, opta pela variação do
termo. Às vezes o traduz por “vazio”, às vezes por “raso”, por exemplo, para
manter uma polissemia lida pela autora como contradição entre esterilidade e
vazio masculino e fertilidade feminina. Já Marina Della Valle alerta que a
escolha de um único vocábulo para substituir “flat” também não se
apresenta como solução possível sem que algo de muito valioso se perca.
Procurou, não obstante, manter suas escolhas vocabulares próximas ao termo
“reto”, escolha fundamentada nas leituras que a autora fez dos estudos de Kroll
e Folson.
Não consegui localizar uma tradução de Marcia
Cavendish Wanderley, que aparentemente está concluída, mas uma versão
preliminar pode ser lida no blog “Convite a palavra”, na publicação de 25 de
dezembro de 2008, com o título de “TRÊS MULHERES de Sylvia Plath”. Também há
variação do termo.
Optei aqui pela insistência no termo “raso”
como tradução para “flat”. Isso fez com que eu tivesse de transformar
também a tradução de vocábulos vizinhos, que produziam relações sonoras com “flat”,
em outras palavras. Também transformei alguns vocábulos derivados de “flat”
em outros semelhantes a raso, mas de significado completamente diferente. Em
alguns casos, a operação beira a arbitrariedade.
No entanto, como contraprova, quero advertir
que procurei no universo simbólico do poema (como no duelo entre natureza e
cultura, bem como na ambivalência do caráter gentil e do violento alternado
entre as Vozes) a resposta para o gesto transcriativo. Como no caso de “flat,
flatness”, em que optei pelo par “raso, restinga”. Antes de receber as
duras críticas de quem lê esta tradução, quero chamar a atenção para o
contraste que a segunda Voz faz com a primeira, por exemplo, quando se refere a
valores em jogo no mundo natural e no mundo social.
Não quero com isso propor que a dimensão
sonora é a mais determinante na forma do poema – mas decidi privilegiá-la para
fornecer uma tradução de caráter por assim dizer mais radiofônico.
Não ignorei, tampouco, a dimensão gráfica.
Não me parece gratuito, por exemplo, que na descrição de uma cena de
enfermaria, Plath faça um verso comparando aquelas mulheres a montanhas, de
acordo com o seu desenho debaixo dos lençóis, fazendo uso de letras que
escritas remetem ao desenho de subidas e descidas, “m” e w” (“I am a
mountain now, among mountainy women” – para manter a isomorfia, optei pela
tradução “Sou uma montanha neste momento, misturada a mulheres montanhosas”).
Seria bom poder ouvir o poema no rádio, de
toda forma.
Também porque o que se anuncia nessa tradução é uma proposição: o som em Três mulheres (como nos poemas “hospitalares” de Plath) é uma máquina de produção de semelhanças, a partir de uma comunidade incomum não apenas entre personagens, mas entre as esferas da linguagem verbal e da produção de sentido do mundo por corpos que se confrontam muito diretamente com as questões fundamentais de vida e de morte.
Três Mulheres Um Poema para Três Vozes Cenário: Enfermaria da Maternidade e entorno
PRIMEIRA VOZ: Sou lenta como o planeta. Sou muito paciente, contornam meu tempo adentro sol e estrelas observando com atenção. A lua se interessa mais de perto: vai e vem, luminosa como uma enfermeira. Sente muito pelo que está prestes a acontecer? Acho que não. Só está atônita com a fertilidade.
Quando saio pra caminhar, sou um grande evento. Não preciso pensar, nem me preparar. O que acontecer comigo acontecerá sem alarme. O faisão espera na colina; ele ajeita suas penas marrons. Não posso evitar sorrir pelo que sei. Folhas e pétalas cuidam de mim. Estou pronta.
SEGUNDA VOZ: A primeira vez que a vi, a infiltração vermelha, não acreditei. Vi os homens chegando perto de mim no escritório. Eram tão rasos! Tinham qualquer coisa de cartolina, e aí eu pesquei, tão rasos, tão rasos, restinga de onde ideias, destruições, escavadeiras, guilhotinas, câmaras brancas de guinchos [procedem sem fim, procedem – e os anjos gelados, as abstrações. Sentei na minha mesa com minha meia-calça, meu salto alto,
e o homem pra quem trabalho riu: “Viu algum fantasma? Está tão branca assim de repente.” E eu não disse nada. Eu vi a morte entre as árvores nuas, uma privação. Não podia acreditar. Será tão difícil para o espírito conceber um rosto, uma boca? As letras procedem destas teclas pretas, e estas teclas pretas procedem de meus dedos alfabéticos, ordenando as partes,
partes, pedaços, escarvas, as multiluminosas. Estou morrendo enquanto estou sentada. Perco a dimensão. Trens berram nas minhas orelhas, partidas, partidas! Os trilhos de prata do tempo esvaziam-se na distância, o céu branco esvazia-se de sua promessa, como uma taça. Estes são meus pés, estes ecos mecânicos. Péc, péc, péc, pinos de aço. Encontro-me depenada.
É uma doença o que carrego pra casa, uma morte. De novo, isto é uma morte. Estão no ar, as partículas de destruição que eu chupo? Serei um pulso que diminui e diminui, encarando o anjo gelado? É este o meu amante, então? Esta morte, esta morte? Quando criança eu adorava um nome devorado pelo líquen. É esse o meu pecado, então, esse velho amor morto de morte?
TERCEIRA VOZ: Eu me lembro do minuto em que tive certeza. Os salgueiros esfriavam, O rosto na poça era bonito, mas não meu – tinha um aspecto consequente, como tudo o mais, E tudo o que eu podia ver eram perigos: pombas e palavras, estrelas e chuvas de ouro – fecundações, fecundações! Eu me lembro de uma asa gelada branca
e do grande cisne, com seu olhar terrível, vindo a mim, como um castelo, do topo do rio. Tem uma cobra nos cisnes. Ele deslizou suspenso; seu olho tinha uma intenção sombria. Nele vi o mundo – pequeno, mau e sombrio, cada palavrinha enganchada em cada palavrinha, de ato em ato. Um dia azul quente desabrochara em alguma coisa.
Eu não estava pronta. As nuvens brancas crescendo em volta me arrastaram em quatro direções. Eu não estava pronta. Não fazia reverências. Eu pensei que podia negar a consequência – mas era tarde demais pra isso. Era tarde demais, e o rosto começou a tomar forma com amor, como se eu estivesse pronta.
SEGUNDA VOZ: É um mundo de neve agora. Não estou em casa. Como são brancos estes lençóis. Os rostos não têm traços. São lisos e impossíveis, como os rostos de minhas crianças, Pequenos enfermos que se esquivam de meus braços. Outras crianças não me tocam: são terríveis. Elas têm muitas cores, muita vida. Não estão assim, Quietas, como o vazio terrível que carrego.
Tive minhas chances. Eu tentei e tentei. Eu costurei a vida em mim como um órgão raro, e andei com cuidado, precariamente, como alguma coisa rara. Eu tentei não pensar tanto. Tentei ser natural. Eu tentei ser cega no amor, como as outras mulheres, cega na cama, com meu cego querido, evitando procurar, pela densa treva, outro rosto.
Eu não olhei. Mesmo assim o rosto estava lá, o rosto do abortado que amava suas perfeições, o rosto do morto que só podia ser perfeito em sua calma inata, só podia manter-se santo assim. E tinham outros rostos também. Os rostos de nações, governos, parlamentos, sociedades, os rostos sem cara de homens importantes.
São esses homens que me perturbam: Tão ciumentos de qualquer coisa que não seja rasa! Deuses [ciumentos que fariam do mundo todo tábula rasa, por também o serem. Vejo o Pai conversando com o Filho. O arrasado não pode ser sagrado. “Vamos criar um paraíso”, eles dizem. “Vamos arrasar e lavar o rústico das almas.”
PRIMEIRA VOZ: Estou calma. Estou calma. A calmaria precede alguma coisa [medonha: o minuto amarelo antes do vento que passa, quando as folhas exibem suas mãos, sua palidez. É tão quieto aqui. Os lençóis, os rostos, são brancos e parados, como relógios. Vozes se distanciam e se achatam. Seus hieróglifos visíveis achatam-se em painéis de pergaminho que desviam o vento. E pintam seus segredos em Árabe, em Chinês!
Sou muda e marrom. Sou uma semente que irá se arrebentar. A marronidade é meu eu morto, e se cansa: não quer ser mais, ou diferente. O crepúsculo me cobre de azul agora, como Maria. Ai, cor da distância e do esquecimento! – quando será, aquele segundo em que o tempo arrebenta e a eternidade o engole, me afogando totalmente?
Eu converso comigo, só comigo, me afasto – higienizada e sinistra com desinfetantes, sacrificial. A espera deita pesada em minhas pálpebras. Deita como o sono, feito um grande mar. Longe, longe, logo a primeira onda acumula sua carga de agonia sobre mim, inescapável, mareal. E eu, uma concha, ecoando nessa praia branca enfrento as vozes da opressão, esse terrível elemento.
TERCEIRA VOZ: Sou uma montanha neste momento, misturada a mulheres [montanhosas. Os médicos se movem entre nós como se nossa grandeza apavorasse suas ideias. E sorriem como imbecis. São os culpados pelo que sou, e sabem disso. Exibem o que neles é raso como uma espécie de saúde. E se eles então se surpreendessem, como eu? Ficariam loucos com isso.
E se duas vidas vazassem por entre minhas coxas? Eu vi a câmara asséptica e branca com seus instrumentos. É um lugar de guinchos. Não é feliz. “É pra cá que você vai vir quando estiver pronta.” As luzes noturnas são luas rasas vermelhas. Estão embotadas com [sangue. Eu não estou pronta para coisa alguma. Eu devia ter matado isso que me mata.
PRIMEIRA VOZ: Não há milagre mais cruel que este. Sou arrastada por cavalos, cascos de ferro. Resisto. Sobrevivo. Cumpro meu trabalho. Túnel escuro, através do qual acontecem provações, as provações, as manifestações, os rostos assustados. Sou o centro de uma atrocidade. Que sofrimentos, que tristezas terei de parir e cuidar?
Pode tal inocência matar e matar? Minha vida a amamenta. As árvores embranquecem nas ruas. A chuva é corrosiva. Provo um pouco, e os horrores praticáveis, os horrores sedentários e ociosos, as parteiras diminuídas com seus corações tique e taque, com suas bolsas e instrumentos. Hei de ser parede e telhado, protegendo. Hei de ser céu e colina de bondade: Ai, deixe-me estar!
Um poder cresce em mim, uma tenacidade antiga. Estou arrebentando como o mundo. Há esta escuridão, esta escuridão intensa. Cruzo as mãos sobre uma montanha. O ar é denso. É denso com este trabalho. Sou usada. Sou usada à força. Meus olhos são comprimidos pela escuridão. Não vejo nada.
SEGUNDA VOZ: Acusam-me. Sonho com massacres. Sou um jardim de agonias pretas e vermelhas, que bebo, odiando-me, odiando e temendo. E agora o mundo concebe seu fim e vai em sua direção, braços embalando o amor. É um amor de morte que a tudo adoece. Um sol morto mancha o jornal. É vermelho. Perco vida atrás de vida. A terra sombria as engole.
Ela é o nosso vampiro. Ela nos mantém e engorda, é gentil. Sua boca é vermelha. Eu a conheço. Conheço intimamente – velha cara-de-inverno, velha estéril, velha bomba relógio. Homens a enganaram. Ela há de comê-los. Comê-los, comê-los, comê-los a todos no final. O sol se pôs. Morro. Simulo uma morte.
PRIMEIRA VOZ: Quem é ele, esse garoto azul e furioso, bizarro e brilhante, como se arremessado de uma estrela? Parece tão zangado! Voou para o quarto, um berro no tornozelo. O azul empalidece. Ele é humano, enfim. Um lótus vermelho se abre em vasilha de sangue; costuram-me com seda, como se eu fosse um tecido.
O que meus dedos faziam antes de segurá-lo? O que meu coração fazia, com seu amor? Eu nunca vi uma coisa tão nítida. Suas pálpebras feito flores fúcsias e suave feito mariposa, seu fôlego. Não o abandonarei. Não há nele malícia ou urdidura. Que assim permaneça.
SEGUNDA VOZ: Lá está a lua, na janela alta. Foi-se. Como o inverno enche minha alma! E essa luz calcária deitando escamas nas janelas, janelas de escritórios vazios, salas de aula vazias, igrejas vazias. Ai, quanto vazio! E essa interrupção. Essa terrível interrupção de tudo. Esses corpos amontoados me rodeando agora, estes chinelos de neve– que raio azul e lunar congela seus sonhos?
Sinto seu penetrar gelado, alienígena, como um instrumento. E do outro lado essa face dura, louca, com sua boca em O escancarada em seu luto perpétuo. Ela arrasta o mar de sanguessombra ao redor mês após mês, com suas vozes de fracasso. Estou tão desamparada quanto o mar no final do cordão. Estou insone. Insone e inútil. Também eu gero corpos.
Devo ir-me para o norte. Devo ir-me dentro da longa treva. Vejo-me feito sombra, nem homem nem mulher, nem uma mulher feliz por ser um homem, nem um homem bruto e raso o suficiente para não sentir a falta. Sinto uma falta. Sustenho meus dedos, dez piquetes brancos. Vê, a escuridão se infiltra pelas rachaduras. Não posso contê-la. Não posso conter minha vida.
Serei uma heroína do periférico. Não serei acusada pelos botões caídos, buracos na meia-calça, caras mudas e brancas de cartas não respondidas, confinadas nas gavetas. Eu não serei acusada. Eu não serei acusada. O relógio não dará pela minha falta, nem essas estrelas que rebitam um abismo depois do outro.
TERCEIRA VOZ: Eu a vejo enquanto durmo, rubra, terrível garota. Ela chora através do vidro que nos separa. Ela chora, e ela é furiosa. Seu choro é um gancho que agarra e arranha feito um gato. É com esse gancho que ela escala até minha vista. Ela chora no escuro, ou nas estrelas que distantes de nós brilham e retorcem.
Acho que sua cabeça é esculpida em madeira, em rubra e dura madeira, olhos fechados e boca escancarada. A boca aberta emite gritos agudos furando meu sono como flechas, furando meu sono, perfurando até o meu lado. Minha filha não tem dentes. Sua boca é larga. E emite sons tão trevosos que não pode ser boa.
PRIMEIRA VOZ: O que é que a nós nos arremessa essas almas inocentes? Olha, estão tão exaustos, estão arrasados em seus berços de lona, nomes amarrados a seus punhos, os pequenos troféus de prata pelos quais vieram de tão longe. Alguns têm os cabelos pretos e densos, outros são carecas. Suas peles são rosas ou pálidas, pardas ou vermelhas; e começam a lembrar de suas diferenças.
Acho que são feitos de água; não têm expressão. Seu aspecto é de sono, como luz na água calma. São verdadeiros monges e freiras com suas vestes idênticas. Vejo-os chovendo como estrelas sobre a Terra – na Índia, na África, na América, esses pequenos milagres, essas miúdas e nítidas imagens. Cheiram a leite. A sola de seus pés está intocada. São caminhantes do ar.
Pode o nada ser tão prodigioso? Este é meu filho. Seus olhos abertos são um azul raso e genérico. Ele se vira para mim feito uma miúda, muda e mansa planta. Um berro. Ele é o gancho ao qual me agarro. E eu, um rio de leite. Sou uma colina quente.
SEGUNDA VOZ: Não sou feia. Sou até bonita. O espelho devolve uma mulher sem deformidades. As enfermeiras devolvem minhas roupas, e uma identidade. É normal, elas dizem, que coisas assim aconteçam. É normal na minha vida, e na vida de outras. Eu sou uma em cinco, qualquer coisa do tipo. Não estou perdida. Eu sou bonita como estatística. Aqui o meu batom.
Desenho na boca velha. A boca vermelha que entreguei com minha identidade um, dois, três dias atrás. Era uma sexta-feira. E eu nem preciso de um feriado; posso ir ao trabalho hoje. Posso amar meu marido, ele irá compreender. E me amar através do borrão de minha deformidade como eu tivesse perdido um olho, uma perna, uma língua.
Levanto-me, então, um pouco cega. E ando com rodas, não com pernas; servem-me da mesma forma. E aprendo a falar com os dedos, não com as línguas. O corpo está cheio de recursos. O corpo de uma estrela-do-mar pode regenerar os braços e as salamandras são pródigas em pernas. Que eu também Seja pródiga naquilo que me falta.
TERCEIRA VOZ: Ela é uma pequena ilha, adormecida e pacífica, E eu um navio branco apitando: Adeus, adeus. O dia está fervendo. É triste demais. As flores neste quarto são vermelhas e tropicais. Elas viveram por trás de vidros toda a vida, cuidadas com ternura. Agora enfrentam o inverno de lençóis brancos, rostos brancos. Tenho pouquíssimas coisas na mala.
Tenho roupas de uma mulher gorda que eu não conheço. Tenho pente e escova. Tenho um vazio. Estou vulnerável de repente. Sou uma ferida que foge do hospital. Sou uma ferida que deixam partir. Deixo minha saúde para trás. Deixo alguém que iria aderir-se a mim: desfaço seus dedos como bandagens: vou.
SEGUNDA VOZ: Eu sou eu mesma de novo. Não há caminhos sem saída. Sangrei e estou branca como cera, não tenho compromissos. Sou rasa e virginal, isto significa que nada aconteceu, nada que não possa ser apagado, extirpado e descartado, um novo [começo. Estes pequenos ramos não pensam em florescer, nem estas secas, secas calhas sonham com a chuva. Esta mulher que me encontra na janela – é pura. Tão pura que transparente, como um espírito. Quão timidamente ela superpõe sua pureza no inferno de laranjas africanas, e porcos presos pelo calcanhar. Ela adia a realidade. Sou eu mesma. Sou eu mesma – provando a amargura entre os dentes. A maldade diária incalculável.
PRIMEIRA VOZ: Por quanto tempo posso ser uma parede, bloqueando o vento? Por quanto tempo posso ser abrandando o sol com a sombra de minha mão, interceptando os dardos azuis de uma lua gelada? As vozes da solidão, as vozes da tristeza rondam-me inelutavelmente. Como é que isso pode suavizá-las, essa cançãozinha de ninar?
Por quanto tempo posso ser um muro ao redor de minha verde [propriedade? Por quanto tempo podem minhas mãos serem bandagem para suas feridas, e minhas palavras pássaros pairando no céu, consolando, consolando? É uma coisa terrível esta desproteção: como se meu coração pusesse uma cara e caminhasse pro mundo.
TERCEIRA VOZ: Hoje as faculdades estão bêbadas com a primavera. Minha beca preta é um pequeno funeral: mostra que estou séria. Os livros que trago se comprimem do meu lado. Certa vez tive uma velha ferida, mas está curando. Sonhei com uma ilha rubra de gritos. Era um sonho, não significava nada.
PRIMEIRA VOZ: A alvorada flore o grande ulmeiro fora de casa. As andorinhas voltaram. Estão gritando como foguetes de papel. Escuto o som das horas dilatando e morrendo nas cercanias. Escuto o mugido das vacas. As cores se recuperam, e o feno úmido ferve ao sol. Os narcisos abrem seus rostos brancos no pomar.
Estou tranquila. Estou tranquila. Estas são as cores vívidas do berçário, os patos falantes, os cordeiros alegres. Sou simples de novo. Acredito em milagres. Eu não acredito nessas crianças terríveis que perturbam meu sono com olhos brancos e mãos sem dedos. Não são minhas. Não me pertencem.
Devo meditar sobre a normalidade. Devo meditar sobre meu filhinho. Ele não caminha. Não fala uma palavra. Ainda está enrolado em faixas brancas. Mas é rosa e perfeito. Ele sorri com tanta frequência. Enchi esse quarto com rosas no papel de parede, e pintei corações em tudo.
Não quero que seja excepcional. É a exceção que interessa o diabo. É a exceção que escala a colina da tristeza ou se senta no deserto e machuca o coração de sua mãe. Eu o quero comum, para amar-me e por mim ser amado, para que se case com quem e onde queira.
TERCEIRA VOZ: Meio-dia quente nos prados. Os botões-de-ouro abafam e derretem, e os amantes passam e passam. São pretos e rasos como sombras. É tão bonito não ter de apegar-se! Sou solitária como a grama. O que é esta saudade? Saberei algum dia, seja lá o que for?
Os cisnes se foram. Mesmo assim o rio se lembra de como eram brancos. Tenta encontrá-los nas luzes. Observa suas formas nas nuvens. O que é esse pássaro que grita com tanta tristeza na voz? Estou mais jovem do que nunca, ele diz. O que é esta saudade?
SEGUNDA VOZ: Estou em casa sob a luz da lâmpada. As tardes se alongam. Remendo a barra da seda: meu marido lê. Como é bonita a luz incidindo sobre tudo. Tem uma espécie de fumaça no ar primaveral, uma fumaça que colore de rosa os parques, as pequenas estátuas, como a ternura acordasse, a ternura que não se cansa, que cura.
Aguardo e padeço. Creio que estou sendo curada. Há mais o que fazer. Minhas mãos podem coser com cuidado este material. Meu marido pode virar e virar as páginas de um livro. E assim estamos juntos em casa, por horas. É só o tempo que pesa sobre nossas mãos. É só o tempo, e isso não é material.
As ruas podem se tornar papel subitamente, mas eu me recupero de minha longa queda, e me encontro na cama, a salvo no colchão, mãos cruzadas, como pressentisse a queda. Encontro-me novamente. Não sou uma sombra ainda que haja uma sombra que saia de meus pés. Sou uma esposa. A cidade aguarda e padece. As graminhas crescem nas pedras, e estão verdes de vida.
Mariana Godoy nasceu no interior de São Paulo em 1996. É poeta e atriz, autora de O afogamento de Virginia Woolf (Editora Patuá, 2019).
*
I.
a primeira morte acontece
quando a infância se torna vida passada
e reencarnamos adultos
ainda que pareça impossível tamanha dor
não chega a ser pior que a segunda
quando acordamos idosos
e começamos a procurar nossos rostos
nos rostos dos nossos filhos.
II.
será que quando morremos voltamos
como filhos dos nossos netos?
pode ser essa a tragédia humana afinal:
estar sempre na mesma casa
com as mesmas pessoas
limpando a mesma estante de vidro.
eu não ficaria surpresa
em ser a piada de deus.
§
o sol nasce tão longe
que a ideia de fim seduz.
saltar,
cair.
meu único medo é desistir
durante o vôo:
rezar por um guindaste,
uma vara de pesca
que me fisgue.
ser peixe!
que ironia…
tanto sofrimento humano
para terminar
querendo ser peixe
§
deveríamos ter a mesma idade,
seis, sete.
a mãe desceu do ônibus mas ele deu partida
com a filha dentro.
os passageiros começaram a gritar:
“pelo amor de deus, motorista,
para esse ônibus!”
a garotinha chorava de medo.
eu chorava de medo.
e a gente se parecia tanto
que agora vejo que ela sou eu.
a mãe desesperada correndo atrás do ônibus
sou eu.
corro, bato,
quebro os dedos
querendo-me de volta,
o ônibus não para.
o ônibus nunca para.
§
mamãe entra no quarto
para contar que vovó morreu.
fico com medo porque sei
que vovó virou fantasma.
o telefone toca.
corro até ele.
quero ser a primeira a dizer
“não podemos falar agora”
encontro papai chorando na sala.
triste, bem triste.
assim que percebe minha cara pálida
cobre o rosto com as mãos.
olho a janela
e sorrio.
nunca a chuva foi tão bonita.
§
não sei afogar as mágoas
como virginia woolf
tudo dói debaixo d’água
a vida passa em flashes de memória
luto como posso
mas a cachoeira me engole
tenho quatro anos de novo
da janela vovó manda sair da chuva
mas continuo dançando
estou morrendo agora, vovó
talvez mais tarde
mais tarde eu entro.
Tradução do espanhol (Argentina) ao português (Brasil) por Ana Cláudia Romano Ribeiro e ao inglês (Irlanda) por Gerry Loose
José Muchnik nasceu em Buenos Aires e mora em Épinay-sur-Orge, na França. Engenheiro químico, fez seu doutorado se em Antropologia pela École de Hautes Études en Sciences Sociales em Paris e trabalhou no Institut National de la Recherche Agronomique (INRA). Publicou volumes de poemas, como Quince poemas por la paz, Ocho poemas para perder el tiempo, Cien años de libertad y Coca-Cola, Proposition poétique pour annuler la dette extérieur (bilíngue, espanhol-francês), Arqueología del amor, Amazonia he visto (bilíngue, espanhol-francês, publicado pela editora Louma em Montpellier, 1997), Calendario poético 2000, Guía poética de Buenos Aires, Tierra viva, luces del mar, Crítica poética de la razón matemática, publicou poemas com relatos, como Sefikill (Serial Financial Killers) y Desgarros: exilios, duelos, muros, o relato Josecito de la ferretería e as novelas Chupadero (2005) e Geriatrikón (2007). Apresentou fotografías suas nas seguintes exposições (1990-2007): Le pain des autres, Amazonia he visto, Mamáfrika e Amazonie, rêves et réalités. Seu endereço para correspondência é josemuchnik@gmail.com.
Ana Cláudia Romano Ribeiro é autora da tradução, introdução e notas da Utopia de Thomas More (no prelo) e da viagem imaginária A terra austral conhecida, de Gabriel de Foigny (Editora da Unicamp, 2011). Traduziu coletivamente a peça Le bleu de l’ìle (O azul da ilha), da haitiana Évelyne Trouillot (no prelo). Ilustrou A princesa que conseguiu virar moça comum e As cinco Franciscas, de Deise Abreu Pacheco (inéditos) e coeditou todos os números da revista Morus – Utopia e Renascimento até seu último número. É professora e pesquisadora na graduação e na pós-graduação dos cursos de Letras da Universidade Federal de São Paulo. Agradece a Dedé Pacheco, Pedro Marques, Leonardo Gandolfi, Paloma Vidal e especialmente a Mayra Guanaes e Andreia Menezes pela leitura da tradução destes poemas do José Muchnik.
Gerry Loose morou na Inglaterra, na Irlanda, na Espanha, em Marrocos e, atualmente, na Escócia. Escritor e artista, ele se define como um slow-moving nomad que trabalha principalmente com temas do mundo natural e da geopolítica. Ele também projeta e faz jardins. Foi Poet in Residence nos Jardins Botânicos de Glasgow e Montpellier, onde está o mais antigo jardim botânico. Ele trabalhou para os Hidden Gardens, Glasgow e Port Logan Botanic Gardens. Entre suas publicações recentes estão Printed on Water, New and Selected Poems (Shearsman Books) e that person himself. Vagabond Voices publicou fault line(2014) e night exposures (2018). Foi agraciado com o Creative Scotland Award, o Robert Louis Stevenson Fellowship, o Kooneen Säätiö Award e o Hermann Kesten Award.
* * *
He visto
la selva palpitando como un tambor de sangre
la selva abierta como un amor inesperado
la selva en grito como un río enceguecido
un río sin cauce como caballos de piedra
huyendo espantados hacia reinos diferentes
He visto
frentes humedecidas por un sudor muy antiguo
noches alumbrando verdes melodías
y el espesor de los sueños en los campos partidos
He visto niños jugando como juegan los niños
he visto niños sonriendo como sonríen los niños
he visto niños trabajando como trabajan los niños
jugando que son grandes con las vidas en la mano
He visto árboles
árboles abatidos como abuelos centenaríos
árboles en carne viva como reyes solitaríos
árboles suplicando la llegada de otros cielos
He visto la tierra
la tierra en cenizas derrotada hasta el horizonte
la tierra madre la tierra novia la proceadrora del canto y de los huesos de las voces y de los peces
la tierra avergonzada sin rostro para las flores
He visto loros llorando la ausencia de su amada
He visto turistas comprando exóticos plumajes
He visto vacas
una vaca dos vacas tres vacas …………….. autopistas de ganado desfilando hacia el mercado
Mi reino por una vaca una vaca por siete selvas
una selva por media hamburguesa (algunas gotas de ketchup en homenaje al tomate algunos gramos de mostaza
en las entrañas del pan)
He visto
un abuelo sabio susurrando a las plantas canciones de cuna para que duerman en paz
He visto campesinos con sus manos duras sus palabras suaves
y la esperanza blanca
He visto la mesa de los pobres
el arroz silencioso honorando el momento
la farinha repartiendo su humilde alegría
y familias reunidas protegiendo la tibieza
He visto la esperanza
una rama brotando en el recuerdo de las brasas
un mono enamorado con una flor en la boca
un viejito muy viejo descifrando las nubes
y un niño luminoso disipando los humos
He visto
graciosos açaís bailando con la luna
belicosos babaçús preparando el combate
papagayos proclamando la república soñada
y un castaño erguido como un rey sin latitudes declamando poemas para que vuelvan las aves
He visto rostros
todos los golpes todas las huellas todos los caminos en rostros desplegados como signos en vuelo
rostros dulces como el lenguaje de las palmeras
rostros tiernos como el pecho del Xingú
rostros graves buscando en la niebla luces de manzana antes de la serpiente
Todas las raíces todos los ríos todas las venas estallando en rostros como destinos verticales
constelaciones de rostros buscando su sentido buscando sus líneas en las formas del dolor
constelaciones de miradas bajo la Cruz del Sur
desde siempre
desde antes que el fuego sometido
desde antes que el hacha liberada
desde antes que el verbo enaltecido
La Cruz del Sur
raíces de la luz y orígen de un silencio que aún no escuchamos.
He visto luces
luces difusas tatuando mensajes en la espalda del río
luces incendiando el cielo para que pueda la noche cumplir sus promesas
atardeceres de luces en túnicas diferentes
mas el mismo suicidio el mismo sol que se hunde el mismo rito circular de la muerte
He visto
luces que quedan en los labios después del primer beso
luces que suben al tejado para pedirle un favor a la luna
luces acariciando troncos para adivinar la edad de las heridas
He visto aguas
aguas de todas las formas ….. aguas como ríos llevando hacia el sol antiguos cargamentos de ilusiones marinas