Anacreonte & Anacreônticas, por Leonardo Antunes

Segundo a tradição, Anacreonte nasceu na cidade jônia de Teos, na Ásia Menor, por volta da metade do século VI a.C. Por conta dos ataques de Harpago, general de Ciro, contra as cidades gregas da região, os habitantes de Teos se viram obrigados a fugir, tendo rumado para a Trácia, onde fundaram Abdera em 540 a.C. A própria obra do poeta parece fazer menção a esses episódios, o que pode ser um indício de que ele tenha acompanhado essa expedição. É fato notório também que tenha passado pela corte do tirano Polícrates, em Samos (533-22 a.C.), e por Atenas em seguida, à época também governada por tiranos, os dois filhos de Pisístrato. Segundo Platão (Hiparco, 228bc), Hiparco teria enviado um navio com cinquenta remadores para trazer o poeta para viver na corte de seu irmão, Hípias. Durante esse período, é possível que Anacreonte tenha convivido também com Simônides, outro importante poeta do final do período arcaico. Testemunhos antigos indicam que sua obra foi compilada, posteriormente, no período helenístico, em cinco volumes. Desses cinco volumes, restam-nos poemas em estado mais ou menos fragmentário, além de um corpus mais amplo de poemas tardios, feitos à sua moda (ou em sua homenagem), conhecidos como Anacreônticas.

A coleção dos poemas anacreônticos, perdida em um tomo ignorado por pelo menos cinco séculos, foi reintroduzida no mundo europeu a partir da edição de 1554 de Henricus Stephanus (Henri Estienne), cuja fonte foi um único manuscrito do corpus, conservado como um apêndice ao codex da Antologia Palatina. À época, o editor foi louvado por ter redescoberto os poemas perdidos de Anacreonte. Entretanto, mediante estudos linguísticos e estilísticos, bem como por meio da descoberta posterior de fragmentos do próprio Anacreonte, sabemos hoje que os poemas das Anacreônticas são em muitos séculos posteriores ao tempo do poeta de Teos. Antes dessa descoberta, os poemas das Anacreônticas foram muito lidos e traduzidos, especialmente durante o Romantismo, por nomes que incluem Byron, Almeida Garrett e Antonio Feliciano de Castilho. Ainda que possam nos dizer bem pouco ou quase nada a respeito do Anacreonte histórico, constituem uma espécie de apreciação artística da figura e da obra de Anacreonte sob a forma de poesia.

Leonardo Antunes (São Paulo, 1983) é poeta, tradutor e professor de língua e literatura grega na UFRGS. É autor de Casa dos Poetas (Zouk, 2021), Lícidas (Zouk, 2019) e de João & Maria – Dúplice coroa de sonetos fúnebres (Patuá, 2017), que recebeu os prêmios: AGES (melhor livro de poesia) e Açorianos (melhor livro de poesia e livro do ano). Tradutor do Édipo Tirano de Sófocles (Todavia, 2018), atualmente dedica-se a uma tradução da Ilíada e da Odisseia de Homero em decassílabos duplos. A tradução de todas as Anacreônticas e dos fragmentos de Anacreonte está no prelo pela Editora 34.

* * *

A terra negra bebe
e bebem dela as matas.
Os mares bebem chuva;
o sol, dos próprios mares;
do sol, depois, a lua.
Por que o espanto, amigos,
se quero embebedar-me?

ἡ γῆ μέλαινα πίνει,
πίνει δένδρεα δ’ αὐτήν.
πίνει θάλασσ’ ἀναύρους,
ὁ δ’ ἥλιος θάλασσαν,
τὸν δ’ ἥλιον σελήνη·
τί μοι μάχεσθ’, ἑταῖροι,
καὐτῷ θέλοντι πίνειν;

(Anacreôntica 21)

§

Ao longo da noite eu dormia,
num mar de purpúreos lençóis,
contente de estar com Lieu.
Sentia que estava correndo
veloz sobre as pontas dos pés,
brincando co’ algumas mocinhas,
enquanto uns rapazes mais meigos
que o próprio Lieu caçoavam
de mim com palavras mordazes
por conta das belas garotas.
Mas, quando eu quis dar-lhes uns beijos,
fugiram-me todos do sonho.
Agora, sozinho e infeliz,
só quero dormir novamente.

διὰ νυκτὸς ἐγκαθεύδων
ἁλιπορφύροις τάπησι
γεγανυμένος Λυαίῳ,
ἐδόκουν ἄκροισι ταρσῶν
δρόμον ὠκὺν ἐκτανύειν
μετὰ παρθένων ἀθύρων,
ἐπεκερτόμουν δὲ παῖδες
ἁπαλώτεροι Λυαίου
δακέθυμά μοι λέγοντες
διὰ τὰς καλὰς ἐκείνας.
ἐθέλοντα δ’ ἐκφιλῆσαι
φύγον ἐξ ὕπνου μοι πάντες·
μεμονωμένος δ’ ὁ τλήμων
πάλιν ἤθελον καθεύδειν.

(Anacreôntica 37)

§

Eu quero, eu quero amar alguém.
O Amor urgiu pra que eu amasse,
mas eu mantendo um pensamento
contrário não obedeci.
De pronto o Amor então tomou
seu arco e sua aljava áurea
e me chamou para lutar.
Vesti, então, por sobre os ombros
meu corselete, feito Aquiles.
Tomei a lança e meu escudo
e fui à luta contra o Amor.
Ele atirava. Eu me esquivava.
Por fim, quando se viu sem flechas,
ficou nervoso e arremessou-se
como se fosse algum projétil.
Feriu-me bem no coração
e fez lassarem-se meus membros.
Meu armamento é todo em vão.
Pra que lançar pra longe a lança
se travo a luta dentro em mim?

θέλω, θέλω φιλῆσαι.
ἔπειθ’ Ἔρως φιλεῖν με·
ἐγὼ δ’ ἔχων νόημα
ἄβουλον οὐκ ἐπείσθην.
ὁ δ’ εὐθὺ τόξον ἄρας
καὶ χρυσέην φαρέτρην
μάχῃ με προὐκαλεῖτο.
κἀγὼ λαβὼν ἐπ’ ὤμων
θώρηχ’, ὅπως Ἀχιλλεύς,
καὶ δοῦρα καὶ βοείην
ἐμαρνάμην Ἔρωτι.
ἔβαλλ’, ἐγὼ δ’ ἔφευγον.
ὡς δ’ οὐκέτ’ εἶχ’ ὀιστούς,
ἤσχαλλεν, εἶτ’ ἑαυτὸν
ἀφῆκεν εἰς βέλεμνον·
μέσος δὲ καρδίης μευ
ἔδυνε καὶ μ’ ἔλυσεν·
μάτην δ’ ἔχω βοείην·
τί γὰρ βάλωμεν ἔξω,
μάχης ἔσω μ’ ἐχούσης;

(Anacreôntica 13)

§

Fr. 408 – Anacreonte
ἀγανῶς οἷά τε νεβρὸν νεοθηλέα
γαλαθηνὸν ὅς τ’ ἐν ὕλῃ κεροέσσης
ἀπολειφθεὶς ἀπὸ μητρὸς ἐπτοήθη.

Delicada como jovem veadinha
na floresta, inda lactente, abandonada
por sua mãe de chifre ornada, se apavora.

§

Fr. 407 – Anacreonte
ἀλλὰ πρόπινε
ῥαδινοὺς ὦ φίλε μηροὺς,

Mas serve-me de aperitivo,
querido, as tuas tenras coxas.

§

Fr. 356 – Anacreonte
ἄγε δὴ φέρ’ ἡμὶν ὦ παῖ
κελέβην, ὅκως ἄμυστιν
προπίω, τὰ μὲν δέκ’ ἐγχέας
ὕδατος, τὰ πέντε δ’ οἴνου
κυάθους ὡς ἀνυβρίστως
ἀνὰ δεὖτε βασσαρήσσω.
ἄγε δηὖτε μηκέτ’ οὕτω
πατάγῳ τε κἀλαλητῷ
Σκυθικὴν πόσιν παρ’ οἴνῳ
μελετῶμεν, ἀλλὰ καλοῖς
ὑποπίνοντες ἐν ὕμνοις.

Vai trazer-me, meu menino,
uma taça, que eu a verta
só num gole. Dez medidas
d’água e cinco mais de vinho
bota nela, que de novo
sem violência eu enlouqueça.
Vai de novo! Chega disso!
Com barulho e gritaria
junto ao vinho, feito citas,
não bebamos, mas com hinos
belos, moderadamente!

§

Fr. 360 – Anacreonte
ὦ παἶ παρθένιον βλέπων
δίζημαί σε, σὺ δ’ οὐ κοεῖς,
οὐκ εἰδὼς ὅτι τῆς ἐμῆς
ψυχῆς ἡνιοχεύεις.

Ó menino de olhar gentil,
te procuro, mas tu não vês.
Não percebes que em tuas mãos
tens as rédeas do meu ser.

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