Chiyo-ni (1703-1775)

Chiyo-ni representada com seu haiku mais famoso (o primeiro da tradução)

Também conhecida como Chiyo-jo, Kaga-no-Chiyo, Soent etc., nascida em Matsutō, na província de Kaga (ao sul da atual prefeitura de Ishigawa), em 1703, Fukuda Chiyo-ni foi uma grande poeta do haiku japonês, um dos poucos nomes femininos da era pré-moderna desse gênero poético tão difundido pelo mundo. Diz a lenda que ela começou a escrever com sete anos de idade, que se entregou ao estudo da poesia aos doze e que com menos de vinte já tinha seu nome e obra circulando pelo Japão; primeiro influenciada pela estética de Bashō, depois seguindo passos próprios na experiência de vida promovida pela contemplação do/no/pelo poema, em cruzamento com os ensinamentos do budismo. Vivendo no período Edo (1603-1867), seguiu os passos do mestre Shikō Kagami (1665-1731), por sua vez discípulo de Bashō; com a qualidade da sua poesia, ainda em vida ela foi vista por alguns como uma herdeira do grande mestre do haiku.  Ela se casou com menos dezoito anos com um servo da família Fukuoka, com quem teve um filho que morreu infante; mas ficou viúva apenas em 1722, dois anos depois do casório e, como se recusou à uma nova subordinação por casamento, permaneceu solteira até o fim da vida. Com isso ela cuidou dos pais idosos e dos negócios da família. Com a morte dos pais, em 1754 ela contratou um casal para seguir com os negócios, para ela própria se tornar uma monja budista e assim viver até 1775, quando morre com 72 anos.

Não é o nome mais antigo do haiku feminino japonês, já que veio bem depois da também impressionante Chigetsu Kawai (c. 1640-1718); no entanto, a verdade é que, ao compulsar Du rouge au lèvres: haijins japonaises (anthologie), livro organizado e traduzido do japonês ao francês por Dominique Chipot e Makoto Kemmoku em 2010, foi o nome de Chiyo-ni que saltou aos meus olhos com intensidade plena do poema. Por isso, mesmo desconhecendo por inteiro a língua japonesa, me aventurei a traduzir indiretamente alguns poemas que me pareceram verdadeiras pérolas de um gênero que, de tão repetido no Brasil, por vezes (enganosamente) nos parece já caduco. Tentei ler os poemas num rastro de forma sonora, pela transliteração que também transcrevo aqui, porque por vezes me guiei por ela rumo a algumas soluções em português. Na maior parte das vezes, não mantive a estrutura rígida de versos com 5-7-5 sílabas, até porque essa estrutura não é tão rígida nem no período clássico da produção japonesa; me concentrei portanto na imagem mental (a velha fanopeia poundiana) que dança numa trama de sons, muitas vezes sutilíssima (a melopeia): canto da imagem, imagem de um canto, pensamento e vida. Felizmente, há também alguns poemas traduzidos ao português por Alice Ruiz no livro Céu de outro lugar, de 1985, mas também aparece na Zunái, onde vocês podem conferir.

O fato é que o haiku, ou haikai, é um modo de vida singular que se desdobra em proliferação do passado e do presente, uma distensão no tempo vivido que nos convoca a uma pausa longa. Se considerarmos que vivemos no tempo da utilidade máxima, do burnout como método e objetivo de carreira, ou mais precisamente como consumo de si próprio, essa poesia é, talvez mais do que nunca, uma recusa positiva, um tempo estático em que a imagem e o som nos invadem. Chiyo-ni é, sem dúvida alguma, uma mestre nessa produção de temporalidade. Merece ser mais lida no Brasil, mesmo que em traduções indiretas por enquanto.

Guilherme Gontijo Flores

* * *

asagao ni
tsubure torarete
morai-mizu

glória-da-manhã
prende o balde do poço
vou pedir água

§

wakakusa ya
kaeri ji wa sono
hana ni matsu

capim novo
as flores vão esperar
a minha volta

§

miru uchi ni
wasurete shimau
yanagi kana

de tanto as ver
até esqueço
as folhas do chorão

§

kareno yuku
hito ya chīsō
miyuru made

até por fim sumir
vejo alguém andar
no plano a nu

§

beni saita
kuchi mo wasururu
shimizu kana

bebo na fonte
esquecida que trago
carmim nos lábios

§

tsukimi ni mo
kage koshigaru ya
onago tachi

mesmo ao contemplar
a lua as moças buscam
lugar à sombra

§

mizu no kaki
mizu no keshitari
kakitsubata

a água os desenha
a água depois apaga
os traços de íris

§

to no aite
aredo rusu nari
momo no hana

não há ninguém
e a porta escancarada
flores de pessegueiro

§

tsurizao no
ito ni sawaru ya
natsu no tsuki

o fio da vara
de pescar roça
o lume da lua

§

koe nakuba
sagi ushinawan
kesa no yuki

sem o seu grito
eu não distingo a garça
manhã de neve

§

tonbo tsuri
kyō wa doko made
itta yara

agora aonde
foi parar o meu pequeno
caçador de libélulas?

§

nuimono ni
hari no koboruru
uzura kana

ponta de agulha
agora quebrada
codornas grasnam

§

ochi-ayu ya
hi ni hi mizu no
osoroshiki

finda a desova
as trutas descem o rio
até água pode ser terrível

§

taoraruru
hito ni kaoru ya
ume no hana

as flores da ameixeira
perfumam até quem
quebra seus galhos

§

yūgao ya
onago no hada no
miyuru toki

cabaças de flor noturna
uma mulher desvela
a própria pele

§

asagao wa
kumo no ito nimo
saki-ni-keri

glória-da-manhã
floresce até
na teia da aranha

§

oshinabete
koe naki chō mo
nori no niwa

no grande salão
do templo as borboletas
também caladas

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