o verso livre é a prática mais recorrente da poesia ocidental do séc. XX, & continua assim.
no entanto — assim o percebo — ele permanece em grande parte um mistério técnico, porque para entendê-lo precisamos revisar o que seria a métrica, pensar sobre as funções da tipografia (mesmo num poema em que ela é discreta). o teórico, poeta & tradutor francês henri meschonnic escreveu alguns estudos importantíssimos sobre ritmo. abaixo, traduzi um trecho em que ele busca explicar como o verso livre altera o ritmo & como o poema funda o verso livre.
guilherme gontijo flores
p.s.: o poema de august stramm citado no trecho é tradução minha, direto do alemão. busquei manter, quanto era possível, o ritmo.
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A linha, no verso, é o funcionamento do discurso que o verso livre desnudou, no sentido dos formalistas. Um verso sempre foi uma linha. Uma linha não era e não é necessariamente um verso. Mas ao reduzir ou anular o metro e a rima, o verso livre mostrou a linha, porque isso era tudo que ele mantinha do verso. Desse ponto de vista, o verso livre surrealista é seu resultado, mais que o de Cendrars, visto como o verso livre clássico. A disposição em linhas faz um ritmo. No poema Heimlichkeit, a frase de August Stramm: “Die heissen Ströme brausen heiss zu Meere, und unsere Seelen rauschen ein in sich” [Os rios quentes rugem quente ao mar, e nossas almas marulham em si], escrita em prosa, é escandida:
/ / / / /
X | X X | X X | X X | X X | X X |
…../………./ / /
X | X U U | X X | X X | X •
mas se ela for escrita do seguinte modo no poema:
Die heissen Ströme
Brausen
Heiss
Zu Meere,
Und
Unsere Seelen
Rauschen
Ein
In
Sich.
[Os rios quentes
Rugem
Quente
Ao mar,
E
Nossas almas
Marulham
Em
Si]
Ele será ritmada da seguinte forma:
/ / / / /
X | X X | X U • | X U •| — | • X | X U • |
.. / / / / / / /
— | X U U | X U • | X X | — | — | — |
e assim registra que a linha criou um acento onde ele não existiria no discurso cotidiano. A linha é a visualização do acentuável, no lugar do verso. A linha é para a poesia amétrica o que o verso é para a poesia métrica. López Estrada, que propõe a noção de “verso amétrico” (p. 156) para o verso sem hemistíquios ou acentos fixos, esboça uma tipologia: a linha fechada ou verseto (p. 137), a linha fluente, a linha fragmentada (pelos brancos), a linha disseminada (em escada). Os próprios termos mostram a parte do critério tipográfico, visual. As combinações variadas (contrariamente à regra de Roubaud) com os versos tradicionais chegam a um efeito paradoxal discernido pelo metricista espanhol, que “a liberdade da linha favorece a ortodoxia do verso.” (ibid. p. 167)
O verso livre, ao dar tal valor à linha tipográfica, aumentou a exigência do sentido do poema e do verso. A linha só é uma unidade poética se houver poema. É o poema que faz o verso livre, e não o verso livre que faz o poema. Como para os versos métricos. Mas, no “velho jogo do verso”, poderíamos crer que os versos faziam o poema. O poema é interação. Para que haja interação entre a linha e as outras organizações do discurso, é necessário que haja uma tensão de sentidos. Se houver essa tensão entre os múltiplos do discurso, o verso livre não é da prosa. E também porque o poema é uma unidade, que a definição do verso livre só pode escapar àquilo que se estanca no verso livre. A linha mostra uma poética negativa.
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Meschonnic, Henri. Critique du rythme: anthropologie historique du langage. Paris: Verdier, 1982. pp. 606-7. (trad. guilherme gontijo flores)
p.s.: a obra citada por Meschonnic é Métrica española de siglo XX, de Francisco López Estrada.
Símbolos utilizados na análise do ritmo
X (sílaba qualquer)
U (sílaba breve)
• (pausa)
| (separação dos pés rítmicos)
/ (acento sobre a sílaba)
Muito bacana este texto.
Há muito o que ser dito sobre o verso livre. Que, aparentemente, fez as gerações de poetas pós-modernistas perderem muito das noções de ritmo embutidas na métrica tradicional.
gostei muito deste texto. realmente a forma como o texto se apresenta, dá ou não dinamismo ao que se quer dizer. A métrica é realmente o compasso do verso.