Digestão, de Rubens Akira Kuana

Rubens-Akira-KuanaRubens Akira Kuana, nascido em 1992, é um poeta catarinense radicado aqui em Curitiba, onde cursa arquitetura e urbanismo e que começou a publicar no ano passado, tendo sua grande estreia no 4º número impresso da revista Modo de Usar & Co., com publicações depois no Suplemento Pernambuco e em revistas internacionais como Babelsprach, Samplecanon e Hilda Magazine. Kuana também traduz poesia, sobretudo do mundo anglófono contemporâneo, e foi responsável por verter para o português nomes como Sophie Robinson, Alfred Starr Hamilton, Monica McClure, Maya Deren, Lonely Christopher, Alex Dimitrov, Ariana Reines e Alice Notley, como se pode ver no blog da Modo (clique aqui).

Este ano, ele publicou seu primeiro livro, Digestão, como parte do projeto e instalação artística Poetry will be made by all, organizado pela 89plus e LUMA Foundation, com curadoria de Danny Snelson, Kevin McGarry e Kenneth Goldsmith, o polêmico poeta conceitual fundador da UbuWeb – um site que, para quem não conhece,  desde 1996 oferece gratuitamente arquivos de diversos formatos (texto, imagem, som, vídeo), geralmente focados em arte de vanguarda(s). Realizado entre 30 de janeiro e 30 de março de 2014, Poetry will be made by all foi responsável por publicar 1000 livros de poesia de 1000 autores diferentes de todo o mundo, nascidos depois de 1989.

Com apenas 14 poemas e 40 páginas, Digestão é um livrinho de proporções modestas, mas nos mostra um poeta promissor. O normal, eu imagino, seria traçar comparações entre Kuana e os poetas que ele mesmo costuma traduzir, mas se há um nome que me vem à mente ao ler Digestão é o de Charles Bernstein, apesar de que eu não sei se Rubens é leitor dele (sei, por exemplo, que nós dois o seguimos no tuíter, mas só isso), mas não importa, porque acredito que essas influências podem vir mesmo de forma indireta. Lendo um poema como, por exemplo, “doggy bag” (bem, eu poderia pegar qualquer outro como exemplo, mas acho que “doggy bag” é um bom caso para ilustrar) do livro de 2001 de Bernstein, With Strings (clique aqui), pode-se ver alguns dos recursos mais comuns no arsenal da poesia de Kuana. Para começar, temos a presença constante do “eu”, mas sempre esse “eu” estranho, fragmentado, longe de qualquer coesão ou coerência, que se interrompe e repete versos e estruturas sintáticas com um disco riscado, acompanhado por um interlocutor indefinido, um “você” que em vários dos poemas parece ter algum tipo de relação amorosa com o eu-lírico. E então temos os poemas com as premissas absurdas (“eu quis comer a terra” ou “Eu comeria areia”, que podemos comparar com o Bernstein de “doggy bag” lamentando ter perdido, quando era criança, o embrulho com as sobras para o cachorro, entre outras coisas nonsense), as repetições (“eu quero que você olhe para a lua”, “remoto remoto remoto”, “eu estou contando / em covas / eu estou contando / em bosques”, “eu quis comer a terra”, “quando eu jogo um pano de prato”), as interpolações de elementos banais do discurso cotidiano ( “obrigado sinceramente”, “como foi o seu dia?”, “até breve”) combinados com apropriações irônicas de clichês (“Eu te amo / Eu morreria por você”) e seções que culminam em anticlímax (“porque o meu campo de visão / é uma gangorra”). São todos elementos clássicos desse tipo de poética desorientante, possivelmente como iconização da desorientação generalizada da experiência atual da modernidade, onde emergem essas experiências pessoais, domésticas, a mesquinharia cotidiana desmistificada e desprovida de grandeza que compõe a nossa vida. Esse me parece ser o foco de Kuana aqui, e espero que ninguém interprete essa minha comparação com Bernstein como uma alfinetada. Não se trata de imitação, mas acredito que, diante de poetas contemporâneos (especialmente dessa poesia novíssima), muitas vezes um caminho razoável para a interpretação é esse da semelhança (contanto que dentro dos limites, claro… comparações forçadas não ajudam ninguém). Nesse caso específico, eu diria que me parece apontar para uma possível internalização dessa poética a princípio promovida pela Language poetry, que também me parece ser talvez observável em outros poetas nascidos nos anos 90, como, por exemplo, o Gabriel Resende Santos, que já publicamos aqui no escamandro – e não deixa de ser curioso que o que para uma geração é o resultado de um projeto extensivo pareça vir naturalmente para alguns poetas da geração seguinte.

Mas estou divagando já (e, ok, tenho sérias dúvidas sobre o quanto estes meus comentários são pertinentes). O que importa é que selecionei aqui 5 poemas do Digestão para compartilhar com vocês abaixo. O livro de Kuana pode ser lido e baixado no site do Poetry will be made by all, clicando aqui , e para mais do autor, vocês podem conferir o seu blog, http://akirakuana.wordpress.com/ .

(Adriano Scandolara)

digestao

coincidências histéricas

eu quis comer a terra
que o seu pé esquerdo não possui
eu quis comer a terra
que o seu pé ainda não possui
eu ainda quis comer terra
apesar da sua cintura
ser ligeiramente menor
que o meu campo de visão
porque o meu campo de visão
é uma gangorra

suas mãos brandas

suas mãos brandas
suas calhas e caixas d’água
entopem com um filhote
de sabiá uma lebre
uma lebre não é capaz
de aguentar mais fibras
e mais pilhas duracell
alcance-me o controle
remoto remoto remoto
insira cenoura em sua
dieta em sua dieta em
qual solo ou solavanco
nós pegamos para plantio
perpetuação e paráfrase
suas mãos brandas
suas mãos frouxas
nossa intimidade
nosso quarto com paredes
pintadas mas descascando
secas secas secas
o estupor do limão
que restou em sua boca
eu lhe deixo eu lhe desvio
o sangue da santa
o sangue da lebre
manca e uniforme
desdentada e sonolenta
eu estou contando
em covas
eu estou contando
em bosques
eu estou contando
covas
eu estou contando
bosques.

 

Satisfações Suspensas

Eu comeria areia
Porque eu sou tão limpo

Quanto a minha cama
Você me entende

Não? Ao menos
Admita o derradeiro

Ostracismo é receber
Rosas por e-mail

Um power point
Com o pôr-do-sol

Eu te amo
Eu morreria por você

Quem é romântico
Aqui quem é o objeto

Passe adiante passe
Por você

 

você aceita a impermanência como parte do seu corpo

o universo pouco ou nada
se importa com seu joelho
fernando henrique cardoso
não importa
com a sua partida
para a Tasmânia ou Haiti
você quer fazer trabalho voluntário
eu quero fazer trabalho voluntário
mas nós não faremos
juntos juntinhos onde
está aquele árvore centenária
que eu salvei? você já
a viu? ela está bem?
como foi o seu dia?
eu tomei as minhas vacinas
arrumei as malas
escovei os dentes embora
a ONU só nos aceite após os 25
quando nossas almas encontrarem paz
as ciclovias e florestas
com certeza serão mais comuns
e largas
até breve
você resolve ser virgem
até breve até breve
eu quero que você olhe para a lua
eu quero que você olhe para a lua
eu quero que você olhe para a lua
e perceba como a sua beleza não
depende
da forma com que eu me expresso

 

acidentes domésticos envolvendo toalha

o mistério ainda é maior
quando a descamação completa
eu me fecho

a porta da lavanderia
completa
bato três vezes mais

fica mais fácil te explicar
o porquê das cortinas
estarem todas no chão

é que eu esqueci

o salto dos sapatos
os noticiários esportivos
argumentavam
Borges era bulímico e não sabia
minha genealogia
o remédio
são as opções
quando eu jogo um pano de prato em
cima

quando eu jogo um pano de prato
o mistério ainda é maior
em cima

da minha última carta de amor
restou uma passagem nãoautobiográfica
é a primeira que eu levaria
caso alguém consertasse o gelo
e aceitasse o troco
com amor até

logo muito
obrigado sinceramente
por favor

(poemas de Rubens Akira Kuana)

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