Maya Angelou (1928 – 2014), in memoriam

Maya Angelou

É difícil fazer uma apresentação razoável sobre a figura de Marguerite Annie Johnson, mais conhecida como Maya Angelou, com sua carreira longa e vida conturbada. Mulher negra nascida no final da década de 1920 no sul dos EUA, pouco após o período chamado de “nadir das relações raciais da América”, é evidente que boa parte de sua vida foi repleta de sofrimento, incluindo episódios dolorosíssimos como abuso sexual na infância e o período em que ela trabalhou como prostituta e cafetina na juventude. Enfim, sempre fica um certo receio em tocar nesses assuntos, mas acredito que, se, como ela diz em entrevista, ela mesma nunca teve vergonha e encarou a coisa toda com naturalidade, a postura mais saudável deva ser a de que nós também o façamos (e, como se sabe, tentar varrer esse tipo de informação para baixo do tapete, como querem as famílias defensoras de biografias chapa-branca, é sempre pior). Ela teve ainda uma variedade de trabalhos, como dançarina, motorista de ônibus, funileira, cozinheira, cantora de música calipso (foi quando lançou seu álbum Miss Calypso, aliás, que ela adotou o seu nome artístico pelo qual a conhecemos hoje), jornalista em Gana, e assim por diante – até vir a fama com o seu primeiro livro, a autobiografia I Know Why the Caged Bird Sings (1969), aos quais se seguiram outras seis. Angelou também foi ativista pelos direitos dos negros, ao lado de Malcolm X, Martin Luther King e James Baldwin, todos grandes nomes com quem ela dialogou e desenvolveu uma profunda amizade. Com o sucesso de I Know Why the Caged Bird Sings, é a partir da década de 70, então, que Angelou começa a fazer carreira como escritora, escrevendo, além das autobiografias (ou, bem, romances autobiográficos), roteiros de cinema, como o do filme Georgia, Georgia (1972) de Stig Björkman (mais tarde ela viria também a ser diretora de cinema, a primeira mulher negra, aliás, a dirigir um filme em Hollywood), peças de teatro, ensaios, livros infantis e poemas, além de trabalhar também como tornou professora da Wake Forest University na Carolina do Norte.

Seu livro de estreia na poesia, Just Give Me a Cool Drink of Water ‘fore I Diiie, data de 1971 e contém 38 poemas influenciados pelo blues e pelo jazz, muitos dos quais eram a princípio letras de música, o que dá à sua poesia, naturalmente, um forte tom oral. Um de seus poemas mais famosos se chama “On the Pulse of Morning”, que foi recitado em 1993 no dia da tomada de posse do presidente Bill Clinton (o que fez de Angelou a primeira poeta a recitar nesse tipo de ocasião desde que Frost recitou para Kennedy em 1961) e depois de novo na posse de Obama em 2009. Em 1994, sua obra em verso foi organizada por Deckle Edge no volume de poesia completa The Complete Collected Poems of Maya Angelou. Se arrisco um comentário breve sobre sua carreira, eu diria que me parece que os poemas do começo, como os publicados em Just Give Me…, estão entre os mais abrasivos da sua obra e são os que mais carregam as marcas da cultura urbana afro-americana, como é o caso, por exemplo de poemas como “No No No No”, “Riot: 60’s”, “The Thirteens”, “Miss Scarlett, Mr. Rhett and Other Latter-Day Saints” (em referência aos protagonistas escravocratas de E o Vento Levou) ou “On Working White Liberals”, onde Angelou declara, mordaz, nos versos que o concluem: “So, I’ll believe in Liberals’ aid for us / When I see a white man load a Black man’s gun” (Então, só vou acreditar na ajuda dos esquerdistas para nós / Quando eu vir um branco carregar o revólver de um Negro”). Nos livros posteriores, então, parece que há um progressivo apaziguamento, e os poemas tendem com mais frequência a reflexões introspectivas e intimistas.

Em português, até onde tenho notícia (e, se eu estiver equivocado, que me corrijam por favor), temos tradução de duas de suas autobiografias, Eu sei por que o pássaro canta na gaiola (José Olympio, 1969), e Carta à minha filha (Nova Fronteira, 2008), mas infelizmente, ao que tudo indica, a sua obra em verso, pelo menos no condizente a publicação em livros, permanece inédita em nossa língua. Há algumas traduções em blogues, no entanto, como a do poema “Still I Rise” (clique aqui).

Maya Angelou morreu na semana passada, dia 28/5, aos 86 anos – uma perda não só para o nosso mundinho da poesia e da literatura, que já foi bastante abalado até o momento neste ano fúnebre de 2014, mas também para toda a luta por direitos, o feminismo e o movimento negro. Porque não podemos deixar a ocasião passar em branco, eu selecionei aqui e traduzi alguns de seus poemas. Sei que a minha seleção pode deixar um tanto a desejar, no tocante aos poemas do começo de carreira (alguns bastante difíceis de se traduzir, aliás) e os mais influenciados pelo jazz e blues… neste caso só posso deixar um mea culpa e dizer que, se há alguém por aqui que estaria mais qualificado do que eu nesse quesito seria o Gontijo, que já traduziu por estas bandas Bob Kaufman, Gil Scott-Heron e Robert Johnson. Mas, por ora, permitam-me que eu deixe aqui a minha singela homenagem.

Adriano Scandolara

 

Rostos

Rostos e mais se lembram
depois rejeitam
os dias marrom caramelo da juventude.
Rejeitam a teta chupada de sol das
manhãs de infância.
Furam canos de arma no olhar paralisado de fé de uma boneca predileta.
Inspira, Irmão,
e desloque o ódio do momento com amor organizado.
Um poeta grita “CRISTO ESPERA NO METRÔ!”
Mas quem que vê?

 

Faces

Faces and more remember
then reject
the brown caramel days of youth.
Reject the sun-sucked tit of
childhood mornings.
Poke a muzzle of war in the trust-frozen eyes of a favored doll.
Breathe, Brother,
and displace a moment’s hate with organized love.
A poet screams “CHRIST WAITS AT THE SUBWAY!”
But who sees?

 

Homens

Quando eu era nova, tinha por hábito
Observar por trás das cortinas
Homens que subiam e desciam a rua. Os homens da manguaça, os homens de idade.
Homens moços afiados feito mostarda.
Veja. Os homens estão sempre
Indo a algum lugar.
Sabiam que eu estava lá. Quinze
Anos e faminta por eles.
Sob minha janela, eles paravam,
Os ombros altos como os
Peitos de uma moça,
A cauda dos casacos batendo
Naqueles traseiros,
Homens.

Um dia eles te seguram nas
Palmas das mãos, gentis, como se você
Fosse o último ovo cru do mundo. Então
Te apertam. Só um pouco. O primeiro
Aperto é bom. Um abraço rápido.
Suave na sua fraqueza. Um pouco
Mais. A dor começa. Arranca um
Sorriso que contorna o medo. Quando o
Ar desaparece,
A mente estoura, explodindo com violência, breve,
Como a cabeça de um fósforo. Estilhaçada.
É o seu sumo
Que escorre pelas pernas deles. Mancha os sapatos.
Quando a terra se põe outra vez no lugar,
E o gosto tenta voltar à língua,
Seu corpo já se fechou. Para sempre.
Chave nenhuma existe.

Então a janela se cerra toda sobre
Sua mente. Lá, além
Do balanço das cortinas, os homens caminham.
Sabendo algo.
Indo a algum lugar.
Mas desta vez eu vou só
Ficar aqui e observar.

Talvez.

 

Men

When I was young, I used to
Watch behind the curtains
As men walked up and down the street. Wino men, old men.
Young men sharp as mustard.
See them. Men are always
Going somewhere.
They knew I was there. Fifteen
Years old and starving for them.
Under my window, they would pauses,
Their shoulders high like the
Breasts of a young girl,
Jacket tails slapping over
Those behinds,
Men.

One day they hold you in the
Palms of their hands, gentle, as if you
Were the last raw egg in the world. Then
They tighten up. Just a little. The
First squeeze is nice. A quick hug.
Soft into your defenselessness. A little
More. The hurt begins. Wrench out a
Smile that slides around the fear. When the
Air disappears,
Your mind pops, exploding fiercely, briefly,
Like the head of a kitchen match. Shattered.
It is your juice
That runs down their legs. Staining their shoes.
When the earth rights itself again,
And taste tries to return to the tongue,
Your body has slammed shut. Forever.
No keys exist.

Then the window draws full upon
Your mind. There, just beyond
The sway of curtains, men walk.
Knowing something.
Going someplace.
But this time, I will simply
Stand and watch.

Maybe.

 

Acordando em Nova York

Cortinas exercendo sua vontade
contra o vento,
crianças dormem,
trocando sonhos com
os serafim. A cidade
se arrasta até despertar nas
tiras dos metrôs; e
eu, um alarme, desperta como
um rumor de guerra,
repouso estendida na manhã,
sem que ninguém peça, ninguém atente.

 

Awaking in New York

Curtains forcing their will
against the wind,
children sleep,
exchanging dreams with
seraphim. The city
drags itself awake on
subway straps; and
I, an alarm, awake as a
rumor of war,
lie stretching into dawn,
unasked and unheeded.

 

Riem os Mais Velhos

Eles gastaram já sua
cota de risinhos,
segurando os lábios assim
e assado, ondulando
as linhas entre
as sobrancelhas. Os mais velhos
deixam que as barrigas chacoalhem como lentos
pandeiros.
Gargalhadas
sobem e se derramam
como quiserem.
Quando riem os mais velhos, eles libertam o mundo.
Viram-se devagar, com o saber malicioso
do que há de melhor e pior
da lembrança.
Reluz saliva nos
cantos das suas bocas,
as cabeças saltam
dos pescoços frágeis, mas têm
os colos
cheios de memórias.
Quando riem os mais velhos, eles consideram a promessa
da morte, querida e indolor, e generosos
perdoam a vida por ter-lhes
ocorrido.

 

Old Folks Laugh

They have spent their
content of simpering,
holding their lips this
and that way, winding
the lines between
their brows. Old folks
allow their bellies to jiggle like slow
tambourines.
The hollers
rise up and spill
over any way they want.
When old folks laugh, they free the world.
They turn slowly, slyly knowing
the best and the worst
of remembering.
Saliva glistens in
the corners of their mouths,
their heads wobble
on brittle necks, but
their laps
are filled with memories.
When old folks laugh, they consider the promise
of dear painless death, and generously
forgive life for happening
to them.

 

Insone

Há certas noites em que
o sono se faz de pudico,
distante e desdenhoso.
E todos os ardis
de que tenho me valido
para ganhar os seus favores
são inúteis como orgulho ferido,
e muito mais dolorosos.

 

Insomniac

There are some nights when
sleep plays coy,
aloof and disdainful.
And all the wiles
that I employ to win
its service to my side
are useless as wounded pride,
and much more painful.

(poemas de Maya Angelou, tradução de Adriano Scandolara)

2 comentários sobre “Maya Angelou (1928 – 2014), in memoriam

Deixe um comentário