Entrevista com Leonardo Fróes

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É possível ler às entrevistas que tenho feito clicando aqui. Esta entrevista, em específico, difere um pouco das anteriores. Certo dia, conversando com Rob Packer achamos que seria interessante incluir o poeta Leonardo Fróes nesse círculo de entrevistas que vem sendo feito por aqui, mas também achamos que seria muito mais interessante uma entrevista ao vivo, no terreno particular do poeta. A partir disso, formulei algumas perguntas, que já venho fazendo aos outros entrevistados, e o Rob utilizou-as como uma base para a entrevista que se segue. Trata-se, portanto, de uma entrevista a quatro mãos, modulada sempre pela experiência viva do afeto e do diálogo. Imaginem por um momento, olhando para a foto acima, que aquele cachorro é meu espírito animal. Estamos todos ali, em comunhão. Felizes.

Sem mais. Com vocês, Leonardo Fróes.

* * *

SERGIO MACIEL – Quero pedir licença aqui e começar com as “perguntas clássicas” que Clarice Lispector costumava fazer sempre a cada entrevista. Qual é a coisa mais importante do mundo? Qual é a coisa mais importante para a pessoa como indivíduo?

LEONARDO FRÓES – Aprender a se tornar pessoa e, consequentemente, aprender a morrer.

SM – E o que é amor?

LF – Ah, amor. O amor é o doce da vida, é bom. É para adoçar qualquer ameaça de amargor.

SM – Qual foi a experiência mais importante em toda sua vida?

LF – A experiência do amor. O fato de eu ter encontrado a mulher que eu amo, com a mesma intensidade dos primeiros dias.

ROB PACKER – E isso de encontrar o amor se refletiu como em sua poética?

LF – Como? Bem, não sei. A minha poética inicial, juvenil, de morador das grandes cidades, era uma poética sempre em confronto com a ordem estabelecida pela sociedade. Eu era um dissidente da sociedade que escrevia versos de forte oposição ao modelo de vida que me era proposto. A experiência do amor, portanto, me transfigurou. Eu passei a ver coisas com outros olhos; a quatro olhos, frequentemente. Conviver com outra pessoa é conviver com uma multidão, porque cada um de nós é uma multidão em si mesmo. De forma que a solidão a dois é um ensinamento permanente, diário, transformador e, por isso, produtivo.

RP – Uma coisa interessante na sua resposta é esse ato de rebelar-se contra um modo de vida. O que dentro desse modo de vida você acha importante desse fato de rebelar?

LF – De rebelar? Bem, eu discordei do modo de vida que me era proposto e a solução que encontrei foi me ausentar dele o mais possível, ficar distante o mais possível. Portanto, em primeiro lugar, fui morar fora do Rio de Janeiro, que era minha base, sempre foi minha base profissional. Depois, precisei conseguir manter alguns vínculos que me garantissem sobreviver com certa dignidade, mas abrindo mão de brilhantes carreiras, de ganhos muito grandes de dinheiro. Por fim, foi aprender a viver de maneira mais simples, mais de acordo com o que eu penso.

RP – Antes de ir embora do Rio você morou vários anos no exterior. Você também enxerga isso como uma forma de rebelar? Ou é outro tipo de experiência?

LF – Acho que são todas elas outras experiências. Eu fui muito precoce como jovem, comecei as coisas sempre muito na rapidez. Comecei a trabalhar muito moço, por exemplo. Com 20 anos eu já estava morando em Nova Iorque, trabalhando numa editora de lá. Meu primeiro apartamento de solteiro, logo que eu saí da casa dos meus pais, foi em Nova Iorque. Fiquei seis anos por lá e isso tudo foi para mim a faculdade que eu não fiz, porque durante esse período eu estava, evidentemente, aperfeiçoando meu conhecimento de línguas – eu havia estudado seis línguas estrangeiras desde os onze anos de idade. É claro que morando tantos anos fora eu pude aperfeiçoar esse conhecimento, mas também algo que me interessava muito era o conhecimento da literatura dos países onde eu vivi, porque foi lá que eu tomei contato inicial mais forte com os livros que eu leio até hoje. Na verdade, eu acabei lendo muito mais da tradição europeia, da tradição ocidental.

SM – Como é seu processo de escrita? Tudo lhe corre fácil e natural como um riacho de roça ou vem de um trabalho interior consciente e demorado?

LF – Eu diria que uma proposta não exclui a outra. O trabalho consciente foi sendo realizado ao longo dos anos, desde a minha adolescência, quando eu comecei a escrever. Acho que sobre o escrito eu devo ter refletido muito, sobre aquilo que eu tinha escrito. Eu não me lembro, nem mesmo quando muito jovem, de ter escrito a partir de uma decisão teórica voluntária, como, por exemplo, decidir que iria escrever um soneto – nunca escrevi um soneto, aliás – ou um sextilha, ou um poema de amor, enfim, uma definição qualquer, um rótulo qualquer. Sempre me aconteceu sair escrevendo.

Essa coisa de inspiração ficou tão gaiato, não é? Já foi tão pechado, muita gente não acredita, mas eu não sei outra palavra. Todas as vezes em que eu escrevi eu saí do meu estado habitual para um estado no qual – bem, é complicado – o cérebro, a inteligência e as emoções estão perfeitamente articulados. Um estado no qual eu não vejo mais uma distinção entre consciente e inconsciente. Tanto é assim que muitas vezes eu me surpreendo com o que escrevi. Eu só consigo compreender certas coisas a meu respeito quando eu vejo um verso que, frequentemente, parece tão enigmático, mas que continha, depois de tê-lo escrito, e essa impressão é muito forte na hora, um recado para mim, alguma coisa que eu precisava ouvir e que me foi soprado, sei lá, do além, de uma forma meio enigmática.

RP – É muito interessante essa coisa de pensar através da escrita, isto é, a ideia de o poeta não saber, mas só saber através da própria escrita.

LF – Acho que é exatamente isso. Há um verso meu, por exemplo, que me ocorre agora, de um poema que termina assim: “a seiva que me silva num silêncio sem queixa” e só eu sei o que este verbo silvar quer dizer, num segredo meu. É algo que só eu sei. Eu sei que havia ali alguma coisa contida que eu precisava ouvir. Eu ouvi e não passo adiante.

RP – Tendo versos assim enigmáticos, o que você acha da interpretação de outras pessoas? O modo como você entende esse verso pode ser muito diferente do modo como outra pessoa entenderá. Há poetas que realmente acreditam que existe somente um significado, mas há outros que deixam o poema de modo mais livre, permitindo que cada um interprete o que quiser.

LF – Sim, sim. Sim. No meu caso, acho que eles são polivalentes. Cada pessoa pode entender de um jeito próprio e eu fico feliz se souber disso. Vou citar um exemplo concreto. Eu tenho um poema, talvez seja dos mais conhecidos, que se chama O apanhador no campo [Nota: este poema estará ao final da entrevista] e descreve uma cena acontecida aqui, a poucos metros, aliás, de onde estamos, naquele pé de caqui – que agora está decadente, mas isso há alguns anos. A cena é: o homem está subindo para pegar um caqui no ponto mais alto do pé de caqui e o atira para a mulher que está esperando embaixo, no ponto mais alto é o caqui mais doce que ele atira para a mulher. Uma moça que eu conhecia na ocasião, ao ler esse poema me disse: “Olha, tudo bem, esse poema descreve uma cena realista do sujeito colhendo um caqui para a mulher, mas, para mim, ele também descreve uma relação sexual entre um homem e uma mulher. Repare que o homem está por cima e ele vai dar para ela o caqui mais doce. Momento de prazer.” Partindo disso, eu passei a ver esse subtexto no poema também por conta da leitura dela. Hoje, lendo esse poema, digo “engraçado, acho que tem isso mesmo aqui, por trás do que eu descrevo”.

Então, acho que isso é característico, talvez, de todo o meu trabalho. Isto é, os sentidos não estão fechados. Eu jogo um monte de imagens, de emoções e de impressões que podem ser vistas de diferentes maneiras. Acho que a poesia mais convincente, no meu entender, é justamente esta que não fecha o sentido. Claro, há poesias muito bonitas feitas sobre temas determinados, a pessoa pegou um tema e fez um verso bonito, um poema bonito, mas a que me toca mais é justamente essa poesia que parece não se fechar nunca, que parece mais alfinetadas que o cantor dá no auditor.

RP – Pensando desse modo o poema se torna contínuo, passa a fazer parte de uma conversa entre o homem e a natureza, entre o homem e a solidão, o homem e o amor, não necessariamente o homem e a época em que vive.

LF – Porque a época é circunstancial. É como o país, eu poderia ter nascido em qualquer outro país. Por acaso, eu nasci aqui e me sinto bem no Brasil, mas eu poderia ter nascido na Bolívia, ou na França, ou na África ou onde quer que fosse. A época, dessa forma, seria outra. O meu problema humano – problema, na verdade, é uma palavra pesada –, a minha condição humana, com seus problemas, seria totalmente outra. Por um acidente de nascimento eu nasci e tenho que me situar neste país, mas não acho que seja uma obrigação minha estar vivendo a minha época. Inclusive porque pela literatura, que é minha grande paixão e a minha grande ocupação, vivi e vivo até hoje em diferentes épocas.

RP/SM – Estando aqui no seu sítio, nós ouvimos muitos barulhos: o som dos pássaros, do rio, o latido dos cachorros, mas não ouvimos o som da voz humana. Você já experimentou sentir-se em solidão, profunda solidão?

LF – Não, nunca. Quer dizer, sempre vivi aqui, a maior parte do tempo sozinho ou com a Regina, minha mulher – a solidão a dois também é um privilégio –, mas posso dizer que nunca, porque estou rodeado de seres vivos. Eu estou é distante da minha espécie. Em contrapartida, essas árvores maravilhosas que eu acompanho nascendo e crescendo há quase meio século, muitas delas plantadas por mim mesmo, para mim são os seres que protegem, que me rodeiam numa boa, porque me circundam de silêncio, de tranquilidade. É claro, há vendavais. A vida no campo também possui um lado violento. Recentemente, um vendaval dizimou parte da vegetação que corre lá no beira do rio, derrubou árvores enormes, mas faz parte da vida. Agora, solidão não há, porque a vida aqui – nestes quase 50 mil metros quadrados de terreno que nós temos – é abundante, é tudo cheio de vida, com os animais, os bandos de animais, quatis, lagartos, micos, jacus etc que vivem rodeando por aqui. Corujas, morcegos, enfim, há distração para todos os tipos. Quer dizer, a vida aqui é muito movimentada para quem sabe apreciar o contato com a natureza. Claro, eu acompanho o germinar de sementes, fato que talvez muitas pessoas nem sequer notem. Hoje de manhã, por exemplo, havia um concerto de abelhas aqui neste pé de pitanga, pois elas estão polinizando, a pitangueira está em flor. Era uma coisa estranhíssima. O zumbido delas era um concerto natural. De forma que é isso, eu presto atenção às abelhas, às formigas, aos menores seres que eu posso ver e tudo isso é vida que me rodeia. Ou seja, pelo contrário, ao invés de ficar confinado aos espaços do humano e às tragédias humanas, eu aqui me abro para todas as alegrias e as tristezas de todas as espécies. É um contato direto com a vida, na sua maior significação.

RP – Essa vivência com a natureza é um fato na sua poesia. Acho que muita gente que lê sua poesia entende isso, sobretudo a partir de poemas como “O apanhador no campo” ou “Mulheres de milho”, por exemplo, que têm muito a ver com a agricultura em si. Você entende essa interação com a natureza como um gesto político?

LF – Sim. No final das contas, em cada gesto nosso sempre há algo de político. Claro, há uma posição política mesmo, afinal eu discordo frontalmente da sociedade tal como é organizada em meu país. Então, o que eu fiz? Criei um principado fictício. Aqui dentro eu sou o rei. É espantoso, mas é verdade, sabe? Aqui ninguém nunca me incomodou, sempre respeitaram os meus domínios. Por exemplo, se eu quiser andar nu aqui, como frequentemente acontece, eu posso, ninguém vai me prender por isso. Lá na cidade eu não posso. Eu me lembro de quando eu morava em Nova Iorque, ainda nos anos 60, um jovem resolveu tirar a roupa para se banhar num laguinho que tem lá no centro da praça e a polícia o prendeu no mesmo momento. Levou-o em cana, porque não se pode tirar a roupa em público. Aqui eu posso. Posso fazer o que eu bem quiser. Sobretudo escrever poesia, que foi o que eu mais fiz, e plantar.

É curioso isso que você menciona na sua pergunta, porque “Mulheres de milho” foi feito em cima da primeira roça de milho de que eu plantei na minha vida. O poema aconteceu dentro da roça de milho, que foi toda feita por mim. É trabalhoso fazer um roçado de milho, não sei se você sabe, é preciso fazer ao menos três capinas ao longo do tempo de floração, de frutificação do milho. O poema aconteceu assim, eu estava no meu êxtase. Quer dizer, além de escrever essas bobices que escrevo no papel, eu sou capaz de plantar pé de milho, que eu vou comer, que vai alimentar meus filhos. E assim foi. Portanto, é muito forte essa ligação entre um homem de cultura e um homem de agricultura, até mesmo por necessidade de sobrevivência, porque naquela época nós vivíamos e dependíamos muito daquilo que se plantava aqui.

RP/SM – É interessante a ligação entre essas duas palavras: cultura e agricultura. Mas voltando um pouco à poesia, você tem algum poeta que permaneceu com você desde a primeira a leitura, que vem atravessando os anos ao seu lado e, de alguma forma, te influencia?

LF – Eu não diria um poeta, diria um conjunto de poetas, que são os nossos mestres modernistas, que é como gosto de me referir a eles. Os brasileiros: Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Joaquim Cardoso, Jorge de Lima. Todos esses poetas eu comecei a ler na adolescência, ali por volta dos quinze anos, comecei a descobri-los todos, um atrás do outro, e eles me encantaram muito. Eu tive uma educação secundária muito sólida no colégio Pedro II, que era o melhor da época no Brasil, mas era toda clássica, de modo que nós não chegávamos ao Modernismo de 22, parávamos na altura do parnasianismo. Ou seja, estudávamos versificação, que era parte do currículo, eu aprendi regras de versificação como matéria básica do currículo. Então, quando à margem do colégio descobri esses poetas modernistas, a poesia ganhou outra significação para mim – por mais que eu já adorasse poesia, gostasse dos poetas românticos e tudo aquilo da tradição –, porque eu descobri homens falando dos meus próprios problemas, das minhas inquietudes. Esses que eu mencionei e vários outros, como João Cabral de Melo Neto, que eu fui conhecer depois e gosto muito.

Eu acho que o Brasil deu, no século XX, um conjunto de poetas extraordinários. Eu diria mais que apenas um conjunto de poetas, deu uma poesia de valor, que só não repercutiu mais no mundo por conta da barreira linguística. Se escrevêssemos em espanhol, por exemplo, talvez nossos poetas tivessem conseguido uma audiência muito maior no mundo.

RP – Agora uma pergunta sobre formas poéticas. Você menciona a versificação e é curioso que no início da sua obra há mais poemas versificados e ao longo do tempo vão aparecendo mais poemas em prosa, por exemplo. Como você entende a diferença entre essas formas? Há alguma influência no tipo de poema que você escreve?

LF – Não. Eu simplesmente não entendo. E essa é uma coisa que eu nunca consegui entender: qual é a diferença entre verso medido, metrificado e bem composto e a prosa. Eu não consigo entender muito bem. Isso é uma coisa que foi acontecendo comigo de maneira muito espontânea. Durante anos escrevi meus poemas direto na máquina de escrever, dava o espaço, pulava de uma linha para outra. Fazia versos. De repente, deixei o carro da máquina correr até o final, preenchi a lauda toda. Isso, na minha cabeça, foi a mudança, uma mudança física. Eu comecei a pensar por que eu parava de escrever, por que eu não deixava continuar escorrendo. Talvez muitos dos meus poemas em prosa possam ser distribuídos em unidades de versos, numa outra paginação, não duvido. Eu mesmo já experimentei fazer isso em certas páginas do Grande Sertão: Veredas, do Guimarães Rosa, e descobri que há passagens que estão em redondilha maior, isto é, em versos de sete sílabas.

Por outro lado, o meu conhecimento, o meu estudo, quando jovem, de versificação me foi muito útil nas minhas traduções. Eu, pessoalmente, nunca escrevi um soneto, mas consegui, graças à minha instrução, traduzir os 44 sonetos de Sonetos da portuguesa, de Elizabeth Barrett Browning. Por causa do meu saber, sou capaz de fazer aquilo metrificado e rimado, mas se eu não tivesse esse preparo eu provavelmente não faria, ou não faria com a mesma qualidade com que acredito ter feito. Agora, no meu próprio trabalho eu não utilizo esse tipo de coisa. A única coisa que ficou patente para mim, depois de eu ter uma obra escrita, é que eu não quis ficar me repetindo. O que eu sinto hoje, olhando para o que já foi feito, é que de um livro para outro eu tenho uma mudança muito grande. Publiquei os livros, em geral, com grande intervalo, nunca fui de publicar um livro todo ano. Passavam-se cinco, seis, sete anos, até mais, entre os livros. Há muito anos não publico um livro totalmente novo. Portanto, eu noto que há um salto, que eu estou sempre me arriscando por um caminho novo, por uma solução nova. Acho que isso foi sempre muito interessante. Como se um pintor pudesse lidar sempre com diferentes formas, um escultor com diferentes volumes, a minha poesia tendeu muitas vezes, não sei bem se por conta dos meus estudos de belas artes, a ser plástica, representativa plasticamente. Desse modo, tanto faz se é em verso ou em prosa. Não me preocupa essa classificação. Acho que deveríamos falar somente de textos, porque no fundo são somente textos que assumem diferentes formas.

SM – Agora, para encerrarmos, uma pergunta final: o que você espera de um poema?

LF – De um poema meu ou de qualquer poema?

RP – De ambos.

LF – De um poema meu eu espero algo que eu não tenho palavra para dizer, teria que inventar uma palavra. Não sei. Um prazer de uma qualidade tão rara que é mais do que prazer, é um sobreprazer, é uma alegria, alguma coisa assim. Como se eu tivesse feito o que de melhor eu posso fazer. Uma coisa tal que me deixa muito satisfeito, muito contente. Acho que o primeiro sentimento que me inunda é este, como se algo me dissesse “eu fiz o meu melhor”. Agora, de poemas alheios eu espero sempre algum ensinamento, alguma coisa de aprendizado. Aprendi muito, tenho aprendido muito com poetas, não só brasileiros, mas de todas as línguas em que consigo ler, e é uma alegria permanente. Acho que a leitura de poesia é parte da minha condição de poeta.

* * *

 

O APANHADOR NO CAMPO

Fruta e mulher no mesmo pé de caqui
no qual espantando os passarinhos eu trepo
para apanhar como um garoto a fruta
e apreciar, comendo-a lá no alto, a mulher
que ficou lá embaixo me esperando subir
e agora vejo se mexendo entre as folhas,
com seus olhos de mel, seus ombros secos,
enquanto me contorciono todo subindo
entre línguas de sol, roçar os galhos,
para alcançar e arremessar para ela,
no ponto mais extremo, o caqui mais doce.

§

MULHERES DE MILHO

Milhares de mulheres de milho
brotam do meu olho calado como espigas
fortes. No ar elas se endireitam

como folhudas criaturas carnosas
que ao vento se transmudam, de fêmeas,
em formosos penachos machos.

Acho graça na cruza; penso nisso
que é ser mulher a passo
de, sob a vertigem solar, virar confusa

hibridação. Abro-me. Brinco
de me dar. Rapto-me e opto-me
como se eu mesmo fosse me comer inteiro

enquanto as coisas simplesmente nascem.

 

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