Roger Wolfe (1962—), por Luís Pedroso

Foto de Luna Miguel

Roger Wolfe nasceu em Westerham, Inglaterra, em 1962 mas vive em Espanha desde a infância, tendo residido em várias cidades – atualmente, em Madrid. É um poeta que enquadram no estilo do Realismo Sujo, embora tal designação possa ser um pouco redutora. A sua poesia utiliza uma linguagem direta, toma-nos de assalto, alternando entre descargas de revolta, a observação das falhas e fragilidades humanas e momentos de contemplação. Alternando entre a raiva e, até, momentos de ternura. Encontramos nela por vezes um humor ácido que frequentemente se volta contra o próprio poeta. Estreou-se em 1986 com Diecisiete poemas, contando já doze livros inéditos de poesia, mas também ensaio e prosa, num percurso que é dos mais importantes contemporâneos da poesia espanhola.

Luís Pedroso nasceu em Lisboa, em 1977. É arquiteto de formação e publicou três livros de poesia (Princesas Dianas & Anti-heróis, em edição de autor, Romance ou Falência, na Artefacto e Importunar o tempo à fisga, na Língua Morta). A antologia Fazer o trabalho sujo, de Roger Wolfe, é a sua primeira aventura como tradutor.

* * *

HACER EL TRABAJO SUCIO/FAZER O TRABALHO SUJO
antología/antologia


DE DÍAS PERDIDOS EN LOS TRANSPORTES PÚBLICOS (1992)
Café y cigarrillos

Salgo del trabajo. Los huesos, todo el cuerpo,
dulcemente doloridos, como -a veces-
después de un polvo de los buenos.
La luna, sajada en dos pedazos, me recuerda
el ojo ése famoso de Buñuel,
asomada un tanto tenebrosamente
por encima de los árboles.
El coche no me arranca. El parabrisas
es una enorme lámina de vidrio congelado.
Así que vuelvo a casa andando,
velado el claqueteo de mis pasos
por la luna, la cabeza
llena de café caliente y cigarrillos.
Llego al portal y me detengo,
soplándome en las manos, bajo
el arco de luz que proyecta la ventana
sobre el hielo, la hierba sucia y abrasada.
Y al otro lado de esa luz te encuentras tú.

Y es que un hombre necesita en esta vida
otras cosas que no sean
lunas surrealistas, coches, oscuras
películas de Luis Buñuel.


DE DÍAS PERDIDOS EN LOS TRANSPORTES PÚBLICOS (1992)
Café e cigarros

Saio do trabalho. Os ossos, o corpo inteiro,
docemente doridos, como – às vezes –
depois de uma boa foda.
A lua, fatiada em dois pedaços, lembra-me
o famoso olho de Buñuel,
revelada um tanto tenebrosamente
sobre a copa das árvores.
O carro não pega. O pára-brisas
é uma enorme e congelada lâmina de vidro.
De modo que volto para casa a pé,
o sapateado dos meus passos vigiado
pela lua, a cabeça
saturada de café quente e de cigarros.
Chego ao portão e detenho-me,
bafejando as mãos, debaixo
do arco de luz que a janela projecta
no gelo, na erva suja e queimada.
E do outro lado dessa luz estás tu.

E é disso que um homem precisa nesta vida,
coisas que não sejam
luas surrealistas, carros, obscuras
fitas de Luis Buñuel.

§

de HABLANDO DE PINTURA CON UN CIEGO (1993)
La música


Los trinos de ese mirlo
se derraman
sobre el fiambre más reciente
de la ciudad.
Dicen
que encontraron la jeringa
colgándole del brazo todavía.
No lo sé.
Y no me importa
demasiado.
Escucho al mirlo.
Su música
en medio del infierno.


DE HABLANDO DE PINTURA CON UN CIEGO (1993)
A música

Os assobios deste melro
derramam-se
sobre o cadáver mais recente
da cidade.
Dizem
que encontraram a seringa
ainda a pender-lhe do braço.
Não sei.
Também não é coisa
que me preocupe.
Escuto o melro.
A sua música
no meio deste inferno.

§

DE ARDE BABILONIA (1994)
Esta infinita y patética belleza

El comienzo del verano y la noche
yace como un cuerpo herido
que la aurora no consigue desvelar.
Recorro la ciudad
taconeando
en las aceras agrietadas
con mis viejas botas
de Valverde,
tan cansadas como yo
del incesante embate
de cascos rotos y batallas.
Un contenedor
arde solitario en una esquina
ante los ojos embotados
de un borracho
que ya no sabe que lo está.
No hay policía.
Y es extraño.
Dos mecánicos amantes
se palpan las partes
con gestos agotados
que ni siquiera el último
tiro de nieve emponzoñada
es capaz de revivir.
Parpadean los semáforos
tintineando en huérfana advertencia.
Y no hay sencillamente estrellas
que me valgan.


DE ARDE BABILONIA (1994)
Esta infinita e patética beleza

Já principia o verão e a noite
jaz como um corpo ferido
que a aurora não consegue revelar.
Percorro a cidade
batendo os tacões
nos passeios esburacados
com as minhas velhas botas
de caça,
tão gastas como eu
pelo incessante embate
de garrafas partidas e zaragatas.
Um contentor
arde solitário numa esquina
perante o olhar turvo
de um bêbado
que já nem sabe que o está.
Não há polícia.
E é estranho.
Dois mecânicos amantes
apalpam-se
com gestos esgotados
que nem sequer a última
linha de branca martelada
consegue recuperar.
Piscam os semáforos
tilintando um aviso órfão.
E simplesmente não há estrelas
que me valham.

§

DE MENSAGES EN BOTELLAS ROTAS (1996)
La poesia

La poesía de una madre que grita en un balcón
llamando a sus hijos a la cena.
La poesía de una rádio que suena al otro lado
de una ventana apenas entreabierta.
La poesía de un mendigo inclinado ante una gorra
en las baldosas, en espera de limosna.
La poesía de un charco agotado entre las piedras.
La poesía de una mujer que se levanta de la cama
buscando a tientas el sujetador en la penumbra.
La poesía de un perro que se estira
bostezando en una alfombra.
La poesía de un televisor con el volumen silenciado
mientras suena música y los cuerpos se enajenan.
La poesía de una calle a media tarde
en cuyo extremo hay un boquete de luz que se proyecta
sobre el mar, atravesado por los tumbos de un borracho.
La poesía de una voz en el teléfono.
La poesía de un autobús que remonta la avenida
lleno de gente ensimismada.
La poesía de un viejo vagabundo desdentado
apurando un cartón de vino en la escalinata de una iglesia.
La poesía de una mancha de aceite en una acera.
La poesía de un hombre gordo que se agacha
con un cigarrillo entre los labios
para atarse los zapatos al fondo de la barra.
La poesía de una anciana que se arregla el maquillaje
en un espejo.
La poesía de unas manos que casí no son mías
tanteando (¿tonteando?) en el teclado…

Toda esta poesía que nunca cabe en un poema.

DE MENSAGES EN BOTELLAS ROTAS (1996)
A poesia

A poesia de uma mãe que grita da varanda
chamando os filhos para a mesa.
A poesia de um rádio que toca do outro lado
de uma janela entreaberta.
A poesia de um mendigo curvado à frente de um chapéu
no passeio, à espera de esmola.
A poesia de um charco quase seco entre as pedras.
A poesia de uma mulher que se levanta da cama
e procura às apalpadelas o sutiã na penumbra.
A poesia de um cão que se espreguiça
bocejando numa esteira.
A poesia de um televisor silenciado
enquanto se ouve música e os corpos se afastam.
A poesia de uma rua a meio da tarde
em cujo extremo há uma fresta de luz que se projecta
sobre o mar, atravessada pelos tombos de um bêbado.
A poesia de uma voz ao telefone.
A poesia de um autocarro que sobe a avenida
cheio de gente ensimesmada.
A poesia de um velho e desdentado vagabundo
emborcando um pacote de vinho na escadaria de uma igreja.
A poesia de uma mancha de óleo na calçada.
A poesia de um gordo que se agacha
com um cigarro entre os lábios
para atar os sapatos ao fundo do balcão.
A poesia de uma velha que retoca a maquilhagem
ao espelho.
A poesia de umas mãos que quase não são as minhas
sondando (seduzindo?) o teclado…

Toda esta poesia que nunca cabe num poema.

§

DE CINCO AÑOS DE CAMA (1998)
El amor, supongo

He estado pensando en escribir
un poema de amor
dedicado a mi mujer
pero lo cierto es que no sé
por qué, pero me pongo
increíblemente triste y los poemas
de amor no se me han dado nunca
demasiado bien –o quizá es que nunca
lo haya intentado seriamente-;
supongo que el amor
debe de ser
como esos rarísimos instantes
de felicidad:
si por un momento
los tienes
yo diría
que no es conveniente
andar perdiendo el tiempo
con poemas.


DE CINCO AÑOS DE CAMA (1998)
O amor, suponho

Tenho pensado escrever
um poema de amor
dedicado à minha mulher
mas a verdade é que não sei
porquê, ponho-me
incrivelmente triste e os poemas
de amor nunca foram coisa que me corresse
muito bem – ou quem sabe se nunca
os tentei muito a sério -;
suponho que o amor
deve ser
como esses raríssimos instantes
de felicidade:
se por um momento
os tens
eu diria
que não convém
perderes tempo
com poemas.

§

DE EL ARTE EN LA ERA DEL CONSUMO (2001)
Fiambre


La radio acaba de informarnos
de que ha muerto Octavio Paz;
el machaca de turno sale con la vara
y los ditirambos post mortem de rigor.
Y cita –dice- al gran poeta
cuando afirma
que «los tiempos le hacen poco
sitio a la poesia»; y que ésa
es señal de lo mal que van.


No. No es eso, me gustaría responderle,
sino señal más bien de lo de siempre:
los poetas –viejos, nuevos, muertos, vivos,
da bastante igual-
nunca han solido tener ni puñetera idea
de lo que ocurre a su alrededor.


Pero no podré hacerlo.
¿Y quién me escucharía, en cualquier caso?
La fanfarria funeraria ya se ha puesto en marcha
-implacable, obscena, atronadora-
y hasta que se tope –como mínimo-
con el próximo fiambre
ni Dios la va a poder parar.


DE EL ARTE EN LA ERA DEL CONSUMO (2001)
Cadáver

A rádio acaba de informar
que morreu Octavio Paz;
o tagarela de serviço desata a debitar
os ditirambos post mortem da praxe.
E cita – diz ele – o grande poeta
quando afirma
que «estes tempos reservam pouco
espaço à poesia»; e que isso
é sinal do mal que vão as coisas.

Não. Não é, apetecia-me responder-lhe,
na verdade é sinal do mesmo de sempre:
os poetas – velhos, novos, mortos, vivos,
tanto faz –
nunca fizeram a mais pálida ideia
do que se passa à sua volta.

Mas não poderei fazê-lo.
E quem é que me ouviria, fosse como fosse?
A fanfarra funerária já se pôs em marcha
implacável, obscena, retumbante –
e enquanto não tropeçar
no próximo cadáver
nem Deus a conseguirá parar.

§

DE AFUERA CANTA UN MIRLO (2009)
The sun also rises


Afeitándome
delante del espejo:
un grano refractário
en el flanco derecho
de mi cuello.

La uña
que aquella prostituta
posó en un grano parecido
en medio de mi pecho
mientras alzaba la mirada
con cejas enarcadas
como dos interrogantes:
«¿Qué es esto de aquí?»

Fue en Oviedo.
Hace diecinueve años.

Ahora soy un hombre
que va para maduro
y que se afeita a las seis de la mañana
en una casa
de la que se han llevado hasta los muebles.

Afuera canta un mirlo.

Está empezando
muy timidamente
a salir el sol.


DE AFUERA CANTA UN MIRLO (2009)
The sun also rises

Barbeando-me
ao espelho:
um sinal refractário
no flanco direito
do meu pescoço.

A unha
que aquela prostituta
pousou num sinal parecido
no centro do meu peito
enquanto levantava o olhar
com as sobrancelhas arqueadas
como dois pontos de interrogação:
«O que é isto aqui??»


Foi em Oviedo.
Há dezanove anos.

Agora sou um homem
que já não vai para novo
e que se barbeia às seis da manhã
numa casa
onde já nada há para levar.

Lá fora canta um melro.

Começa
muito timidamente
a nascer o sol.

§

DE GRAN ESPERANZA UN TIEMPO (2013)
Poema encontrado en el fondo de la papelera

Conozco todos los argumentos.
Conozco todos los contraargumentos.
Conozco la futilidad de nuestra vida.
Conozco el hambre, la sed, el ansia.
La alegría.
¿El amor? También.
El desamor. La dicha y la desdicha.
Tropiezo cada día con la misma piedra.
Tropiezo cada día con la misma piedra.
Tropiezo cada día con la misma piedra.
Al final ya no se sabe
si es que hay piedra o es que tropezamos
por costumbre, por amor al arte,
porque no somos capaces de otra cosa.
Porque el hombre es un animal que tropieza.
Porque no somos capaces de otra cosa.


DE GRAN ESPERANZA UN TIEMPO (2013)
Poema encontrado no cesto de papéis

Conheço todos os argumentos.
Conheço todos os contra-argumentos.
Conheço a futilidade da vida.
Conheço a fome, a sede, a ânsia.
A alegria.
O amor? Também.
O desamor. A sorte e o azar.
Tropeço todos os dias na mesma pedra.
Tropeço todos os dias na mesma pedra.
Tropeço todos os dias na mesma pedra.
E no fim já nem sabemos
se havia alguma pedra ou se tropeçamos
por hábito, por amor à arte,
porque não sabemos fazer mais nada.
Porque o homem é um animal que tropeça.
Porque não sabemos fazer mais nada.

§

DE EL AMOR Y MEDIA VUELTA (2014)
Las autoridades literarias advierte: ser feliz perjudica seriamente a la salud

«Llegué a creer que la felicidad
no es un asunto de los seres humanos»
Félix Grande


Hay algunos –por incríble que parezca a estas alturas-
que todavía se convierten en borrachos
por influencia de los poetas simbolistas.
Otros –de manera igualmente increíble-
acaban chutándose heroína
porque momias como William Burroughs
contaban con pelos y señales que lo hacían.
Por motivos parecidos
tú negaste siempre la felicidad,
que como ya se sabe
es un asunto muy mal visto
entre las mentes pensantes de todo este tinglado.
Hasta que la felicidad te cayó encima
como un plato de sopa
que alguien te hubiera volcado en el regazo.
¿Qué demónios era esto?
No estaba programado.
Era un contratiempo nuevo;
era de auténtica vergüenza.
Como, de niños, mojar la cama
o hacérselo en los calzoncillos.
Menudo bochorno.
¿Quién te iba a sacar de esta?
Pero la felicidad insistió en agitarse dentro de ti;
te recorria de arriba abajo
como un flujo de savia electrizada.
Y se te ocurrieron ideas muy extrañas:
abandonarlo todo,
salir corriendo dando gritos de alegría,
tirar la casa por la ventana
y lanzarte en plancha a la vida.

La hostia fue de órdago.

Los hijoputas habían vaciado la piscina.

DE EL AMOR Y MEDIA VUELTA (2014)
As autoridades literárias avisam: ser feliz prejudica seriamente a saúde

«Cheguei a acreditar que a felicidade
não é assunto para os seres humanos»

Félix Grande

Alguns – por incrível que pareça nestes tempos –
ainda se iniciam nos copos
por influência dos poetas simbolistas.
Outros – de modo igualmente incrível –
acabam a chutar heroína
porque múmias como William Burroughs
bradavam aos quatro ventos que o faziam.
Por motivos semelhantes
negaste sempre a felicidade,
que como se sabe
é um assunto muito mal visto
entre as mentes pensantes deste curral.
Até que a felicidade te caiu em cima
como um prato de sopa
que alguém te entornasse no colo.
Que diabos era isto?
Não estava programado.
Era um novo contratempo;
uma autêntica vergonha.
Como, em menino, mijar a cama
ou fazê-lo nas cuecas.
Tremendo embaraço.
Quem poderia livrar-te desta?
Mas a felicidade insistiu em agitar-se dentro de ti;
percorria-te de alto a baixo
como um fluxo de seiva electrizante.
E ocorreram-te ideias deveras bizarras:
abandonar tudo,
desatar a correr dando gritos de alegria,
pintar a manta
e mergulhar de cabeça na vida.

Ficaste sem pinga de sangue.

Os filhos-da-puta tinham esvaziado a piscina.

Um comentário sobre “Roger Wolfe (1962—), por Luís Pedroso

Deixe um comentário