Patrícia Lino (1990—)

patricia lino

há muito, entre nós de aqui, constituiu-se uma tradição forte do temperamento satírico, paródico. tempero dos trópicos, talvez, que assimilou-se de modo interessante já pelos caminhos de passagem, ali pelos antes, com um gregório de matos ou um sapateiro silva ou um qorpo santo ou um bernardo guimaraens, do elixir do pajé, na poesia, e também, os fios de ponta de língua bífida do nosso machado de assis, no romance. tudo, pouco mais a frente, radicalizando-se como procedimento em nossas versões modernistas, com os imediatos óbvios mário, oswald & bandeira. & a caterva vai se acumular por todo século xx e adiante, tendo se tornado, muito possivelmente, uma marcação que nos legaria, muito recentemente, um comentado artigo de ocasião, que nem deve ser lembrado, mas existe. o humor sempre nos foi arma decolonizadora, por dentro e por fora, embora, muito claro, também tenha servido a radicalismos de ordem diversa — o que não nos impede, nunca nos impediu, de um algo do rigor & método endereçado a outras searas do poema refletido em pensamento diverso da graça.

outra tradição, das que se tornaram escolares, a nós nos comparece a mais adiantado no século passado, algo pareado à feição da imagem que visava, então, nos salvar do imbróglio da flacidez do verso que se fazia, dizem eles, no tempo deles lá. os tridentinos do concreto, goste-se ou não, revolucionaram meio mundo de coisas em nossas letras, então nacionais de dar nó, tanto no campo da poesia, quanto no contracampo da tradução. augusto, ainda o olho vivo entre nós, mantém-se em forma & quadro. cabe dizer que há, também entre eles, para desgosto da massa do biscoito fino, todo um turno satírico, paródico, metacrítico. a vida do desbunde, talvez pela fratura do tempo vivido de dentro das experiências dos corpos alijados pela ditadura, possível tenha ficado como documento a sério nos liames do riso frouxo dos encadernamentos brasilienses, mas já é outra história.

pois muito que bem, saiamos da nota escolar.

portugal, entre nós, tem chegado vagarosamente, e talvez com bastante atraso, ao menos em sua ordem de agenda no contemporâneo, e sabemos, cada vez mais, cada vez menos do que acontece do lado de lá do atlântico – apesar do estreitamento das relações em rede. cabe pontuar o serviço realizado pela inimigo rumor em fazer comparecer essas vozes, seguido da modo de usar, bem como a um número, ainda em crescente, de professores e professoras universitárias que tratam, com atenção, aquilo que acontece no portugal pós-pessoa. claro que há toda uma entrada forte de herberto helder entre nós, um miguel torga e seus bichos, ruy belo, alberto pimenta, bem como fiama hasse pais brandão, sophia de mello breyner andresen & luiza neto jorge [ó pá, finalmente, mulheres], e outros pingados. mas nada que baste, inda mais entre vivos.

quando nos aparece aqui a figura de adília lopes, sem exagero algum, causou-nos um rebuliço buliçoso. ela, essa mulher que fora ridicularizada em sua terra por sua feição e afeição por gatos, aqui teve uma recepção de acolhida calorosa. mais uma vez, e muito provavelmente, por seus modos, talvez a mau para alguns, de sátira, paródia & crítica a um sistema de opressão cultural na formação, algo naturalizada, de um país que não permite nem que os nomes sejam nomes, senão os passados em tinta de cartório. cabe dizer, claro, que há editoras brasileiras empenhadas em dar maior visibilidade ao que se faz contemporaneamente em portugal, donde, se se quiser conhecer, devem vocês, leitores, procurar dar suporte às independentes do brasil, tais como a macondo, a chão da feira, a moinhos, a jaguatirica, e por aí vai.

hoje, em chaveamento parecido à adília em alguns aspectos, é bem que possível nos encontremos com patrícia lino. poeta forte nas tramas da multilinguagem, em plataformas diversas, que tem operado com muita inteligência, e humor, um projeto de calcinação dos modelos conservadores de ler a história portuguesa, a dos livros e a dos hábitos, por meio de, ai que me repito tanto, não me repila, sátiras & paródias. ela, patrícia, é professora de literatura e cinema luso-brasileiros na UCLA, investigadora do UCLA Latin American Institute e do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, trabalhando, sobretudo, com poesia contemporânea e interdisciplinaridade. em todos os campos em que atua como pensamento, patrícia avança por linhas contracoloniais, desde dentro, nos informando duma outra maneira de existir portuguesa, e também do mundo, nosso mundo possível. ela, poeta em trânsito permanente, consegue atravessar sua criação a revés dos documentos oficiais, dinamizando com argúcia de rebel aquilo que é vedado dizer, entre outros pontos, mesmo no circuito poético do campo editorial português.

a considerar a multiplicidade de patrícia em seus modos de ação, e plurivalência na execução de seus temas caros, seria injusto não citarmos, na compleição daquilo que vem construindo como obra, aquilo que escapa de certa moldura, montada até aqui, do anticolonialismo. há um turno de sensibilidade, de arranjo habilidoso do flagrante cotidiano, das relações que se chegam e se partem, a ironia fina, bem como a força de colocar em chave leve os temas mais ferozes, como o pensamento da vida em passagem ou a relevância do que temos feito quando com os pés na terra. mas nada disso se entrega de modo tão fácil, tão dado, pois também são tocados em turno de desconstruções, o que mantém a poeta em turno rebelante contra o comezinho das ideias em conserva.

embora tenha, de modo sistemático, brincado com a ideia de nosso, tão a posse, por óbvio, ao menos a mim me parece, é descabido. patrícia, entre outras coisas, nos oferta uma tese deliciosa, editada em livro, sobre manoel de barros, tão dela, quanto nosso. quis mesmo, e isso é de mim, apontar que há desenhos, desejos e desígnios que nos são dados de maneira muito aparentada. e, ao fim das contas, resta-nos olhar com maior atenção aquilo que corre à margem dos palacianos. daí, e agora, gostava ofertar ao leitor uma entrada, ainda que às gotas, pelas sendas de texto & imagem dessa patrícia, uma linodínamo.

andré capilé

Ö

Patrícia Lino (Porto/Portugal, 1990) é poeta e professora de literatura e cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California, Los Angeles). Lino é a autora dos livros Não é isto um livro (Ediciones Vestigio, Colômbia, 2020), Manoel de Barros e A Poesia Cínica (Relicário Edições, Brasil, 2019) e Antilógica (edições macondo, Brasil, 2018). Dirigiu, entre 2019 e 2020, a curta-metragem Vibrant Hands e o livro audiovisual Anticorpo. Uma Paródia do Império Risível (Garupa Edições, Brasil, 2020), estreados nos EUA e exibidos em Portugal e no México. Lançou recentemente o álbum de poesia e mixagem I Who Cannot Sing (Gralha Edições, Brasil, 2020). Publicou, apresentou e expôs ensaios, poemas e ilustrações em mais de seis países. É membro do UCLA Latin American Institute e do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa. O seu próximo livro, O Kit de Sobrevivência do Descobridor Português no Mundo Anticolonial, chegará em breve às livrarias portuguesas, pela douda correria, e brasileiras, pela edições macondo.

http://patricialino.com

* * *

[Texto inédito]

Era uma vez um poeta que perguntou numa sessão de poesia portuguesa: o que é escrever? Foi reprovado pelos olhares cortantes dos ouvintes. Sentiu-se tão mal que nunca mais explorou outras formas de escrita e, em menos de um ano, dizia sem pestanejar que a poesia era feita de palavras. Tinha muito medo de perguntar o que as palavras eram.

Plasticina.
São como a plasticina.
Fazem acontecer, entretém e desfazem coloridamente a vida.

Quase não tenho amigos poetas, porque os poetas são muito parecidos com os cristãos. Querem e lutam muito por um lugar no céu. Se escrever trouxesse reconhecimento, estariam certos.

Não estão certos. Não são poetas nem cristãos.

Antes o céu que o reconhecimento.
Preferivelmente, nenhum dos dois.

O beija-flor bate as asas 200 vezes por segundo. O que fizemos nós de tão grandioso, Mariana?

Da lista de profissões abaixo, quem você salvaria na eventualidade do mundo acabar e a humanidade poder recomeçar o mundo noutro lugar?

(imagine uma lista que inclui 15 profissões diferentes)

Há um certo prazer em dizer que ninguém escolheria os poetas e o prazer pertence exclusivamente aos poetas.

Era uma vez um poeta que perguntou: o que é escrever? E foi maravilhoso.

O poema chega quando cruzo a rua para ir comprar pãezinhos. Quantos pãezinhos mais até ao último dos poemas?

Vamos refletir sobre o significado do significado. Vamos refletir sobre refletir sobre o significado do significado. Vamos.

§

[de Não é isto um livro. Ediciones Vestigio. Colômbia 2020]

No es esto un libro/ Não é isto um livro é um livro de poemas bilingue com tradução do português para o espanhol de Jerónimo Pizarro e design de Diego Cepeda.

SANTA MONICA

É um tormento
não saber quando a morte chega

Seria outro tormento
saber quando ela vai chegar

Sento-me então à espera da cadela Tétis
que morde convicta as ondas do Pacífico


TETÉ FERNANDES

Teté deu-me incontáveis vezes milho verde
no cruzamento da Alves Guimarães / com a Rebouças

Teté não se apaixonou por mim quando lhe levei uma papaia
Eu também não me apaixonei por Teté quando lhe levei uma papaia

Que Deus abençoe Teresa e as papaias
porque o amor é uma coisa muito dolorida

§

pati 1

MEU DEUS, QUE EU NUNCA PERCA A TERNURA
Poema-instalação. 1m x 70cm, a altura da autora.

§

CAUDEX

Videopoema e parte do ensaio “Augusto de Campos, a crítica transformada e a leitura plexigramática”, incluído no volume Poesia, Crítica, Tradução (org.: K. David Jackson e Eduardo Jorge) com publicação marcada para 2021 pela editora brasileira Iluminuras.

Vídeo e som: Patrícia Lino

§

[Textos inéditos]

ARGOS

Texto: Homero

Voz, vídeo e som: Patrícia Lino

§

OS GIGANTES DE TENOCHTITLAN

mil quinhentos e vinte e um

Como destruir um templo e construir outro? Os espanhóis quiseram dar o exemplo quando, ao chegar ao México, decidiram: “destruiremos o Templo Mayor e (apesar de não conseguirem pronunciá-los) Huitzilopochtli, Tlaloc”.

Ação: com a mão de obra dos aztecas e usando a matéria do Templo, “carregarão as suas próprias pedras até reconhecerem, sem queixa ou interrogação Deus-todo-poderoso”, os espanhóis ergueram a Catedral de Zumárraga perto das novas ruínas.

mil quinhentos e trinta e dois – sessenta dois

Era pequena, e não satisfez o desejo codicioso de grandeza universal. “Temos então de construir outra”, disse um dos espanhóis. “Obviamente”, disseram todos os outros. O Papa anuiu. Construíram-na. Usaram mais ou menos dois séculos até terminá-la, porque dois séculos equivaliam, em tempo, à qualidade da grande, voraz nação espanhola. O seu nome, pio e sólido, além de hierático, dura outros dois séculos. Assim:

La Catedral Metropolitana de la Asunción
de la Santísima Virgen María a los cielos

mil quinhentos e vinte e um – mil oitocentos e doze

Porque o inimigo andava extremamente ocupado e distraído, os aztecas, que carregavam as enormes pedras do próprio Templo, mais sofisticado e belo do que as duas catedrais espanholas, venceram em silêncio, inteligentes, esta disputa sagrada.

Como? Memorizando, em cada um dos milhares de calhaus um deus. Yolotsin. E, quando o inimigo adormecia preocupado com o capital investido na terceira nave, os índios e as índias escapavam, gigantes, para rezar ajoelhados à pedra.

​A matéria viva e a própria vida.

§

patricia relacionamento 1

patricia relacionamento 2

O poema-performance POEMA VISUAL BUSCA CRÍTICO(A) LITERÁRIO(A) PARA RELAÇÃO SÉRIA relaciona-se com o que Patrícia vem trabalhando a propósito da poesia interdisciplinar e apontando à crítica literária exclusivamente verbal. Por outras palavras, analisar visualmente um poema visual ou sonoramente um poema sonoro e criar, em última instância, um exercício crítico transmedial.
Este poema-performance começou por ser publicado, em inglês, na plataforma norte-americana Craigslist em 2018. Foi, logo depois, impresso e distribuído pela própria Patrícia numa das maiores conferências de estudos literários latino-americanos na Universidad Javeriana, em Bogotá (Colômbia). O poema-performance materializa e condensa, com ironia e humor, o tema sobre o qual Patrícia tem escrito extensivamente a nível acadêmico.

§

[de Anticorpo. Uma Paródia do Império Risível. Garupa Edições. 2020]

O Anticorpo é um livro paródico e audiovisual com publicação marcada para 2020-21 pela Garupa Edições.

Texto, design e som: Patrícia Lino

Grande parte dos vídeos utilizados no Anticorpo foram retirados de canais online da extrema-direita portuguesa.

ANTICORPO. UMA PARÓDIA DO IMPÉRIO RISÍVEL

CAPÍTULO 1: INTRODUÇÃO
CAPÍTULO 2: O IMPÉRIO OU O ELOGIO DA POBREZA
CAPÍTULO 3: A TARA PORTUGUESA
CAPÍTULO 4: O COLONIZADO SUSTENTA O PATRIARCADO
CAPÍTULO 5: FRUTA, OU A MORTE DO IMPÉRIO PORTUGUÊS
CAPÍTULO 6: VERSÃO RENOVADA DE UM HIT NACIONAL
CAPÍTULO 7: NÃO FALO MAS GRITO POR DENTRO
CAPÍTULO 8: ADEUS MACAU
CAPÍTULO 9: VIRAR DO AVESSO O PAÍS

§

[d’O Kit de Sobrevivência do Descobridor Português no Mundo Anticolonial]

O Kit de Sobrevivência do Descobridor Português no Mundo Anticolonial será lançado pela editora portuguesa Douda Correria em setembro e pela editora brasileira Macondo em outubro deste ano [2020].

DescobriMENTOS

kit 1

O que são os DescobriMENTOS
Os DescobriMENTOS são uma marca de pastilhas fabricada pela empresa portuguesa GHGF (Grandes Homens, Grandes Feitos). Cada embalagem contém 71 pastilhas.

Para além do sabor original (Mentha Spicata), a marca, distribuída pelo continente e ilhas, criou recentemente outros sabores. Entre eles: Citrus Aurantius, Malum Persicum ou I’ba-ka’ti. Todos inventados pelos portugueses no século XVI.

bala

Como usar os DescobriMENTOS
Abra a embalagem, selecione uma pastilha, chupe.

Para todas as idades.

O BANQUINHO RACIAL

banquinho

O que é o BANQUINHO RACIAL
O BANQUINHO RACIAL é uma peça de mobiliário colonial e a base de um exercício fundamentalmente psicológico.

O BANQUINHO RACIAL deve ser usado na eventualidade de cruzar-se com um ou mais membros das comunidades das ex-colónias portuguesas.

Como usar o BANQUINHO RACIAL
1. Ao cruzar-se com um ou mais membros das comunidades das ex-colónias portuguesas, posicione o banquinho e suba para cima dele.
2. Assim que o contato com um ou mais membros das comunidades das ex-colónias portuguesas terminar, desça do banquinho.

Não se recomenda o uso do BANQUINHO RACIAL em situações de contato com ou mais membros dos países do Norte.

Para todas as idades.

QUEM DESCOBRIU O MUNDO?

disco

O que é o QUEM DESCOBRIU O MUNDO?
O QUEM DESCOBRIU O MUNDO? é um jogo inspirado nos grandes feitos dos colonizadores portugueses.

Os especialistas concluíram que a dinâmica reiterativa deste jogo ajuda não só a compreender como a inspirar a confiança e a firmeza a que, desde há muito tempo, os descobridores lusitanos são associados.

QUEM DESCOBRIU O MUNDO? poderá ser jogado em três versões (A, B e C) que correspondem a três rodas da sorte diferentes.

A. Roda da sorte EU (ver imagem acima), para meninos e homens de todas as idades.
B. Roda da sorte NÓS, para meninos e homens de todas as idades.
C. Roda da sorte ELES, para meninas e mulheres de todas as idades.

A duração do jogo depende inteiramente do grau da dedicação dos participantes.

Como usar o QUEM DESCOBRIU O MUNDO?
1. O QUEM DESCOBRIU O MUNDO? pode ser jogado individualmente ou em grupo.
2. Antes de fazer girar as conhecidas rodas do EU, NÓS e ELES cada participante deverá gritar: “Quem descobriu o mundo”?.

2 comentários sobre “Patrícia Lino (1990—)

  1. A senhora vive num pais onde os “colones”americanos fizera o que fizeram aos indios e como trataram os negros americanos esses aí sim tratados como escravos e nao vejo a senhora ter mencionado nada sobre isso

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