Entrevista com Ricardo Domeneck

ricardo domeneck (n. 1977, em bebedouro, hoje mora em berlim) é, a meu ver, um dos poetas brasileiros mais interessantes dos últimos anos e também um dos mais versáteis, embora ele o desdiga na primeira primeira resposta da entevista logo abaixo; sua poesia incorpora uma série de experiências que estavam na tradição vanguardista do século xx, mas de modo eclético, sem as dicotomias e exclusões que tanto primavam naqueles textos-manifestos de combate em que os poetas tentavam afirmar sua poética acima de todas as outras. para além disso, mas em nada menos interessante, domeneck também se destaca como um poeta oral, que faz apresentações verbivocovisuais em que o texto preso na página se revela muitas vezes potencializado pela fala acompanhada de imagens ou da própria presença de uma voz-poeta que ali se apresenta, como vocês podem conferir nos links que estão logo antes da antologia de poemas.

não vou me alongar mais na apresentação por um motivo: a entrevista, somada à antologia aqui apresentada, resultou num post bem longo, e eu prefiro que vocês leiam o próprio ricardo domeneck, que por si mesmo faz o que eu poderia pretender nas respostas à entrevista. assim, deixo apenas sua bibliografia poética.

 

Carta aos anfíbios (Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2005)

When they spoke / I confused cortex / for context (Londres: Kute Bash Books & Pablo International Magazine, 2006)

cadela sem Logos (SP/RJ: Cosac Naify/7Letras, 2007)

Corpos e palanques (SP: Dulcineia Catadora, 2009)

Sons: Arranjo: Garganta (SP/RJ: Cosac Naify/7Letras, 2009)

Cigarros na cama (Rio de Janeiro: Berinjela/Modo de Usar & Co., 2011)

Ciclo do amante substituível (Rio de Janeiro: 7Letras, no prelo)

 

 

GGF – Nós podemos dizer certamente que você é um dos poetas mais versáteis da geração, com livros que se encerram muito bem dentro de uma est-É-tica específica e diversa dos outros. Por exemplo, Cigarros na cama (2011) é um livro, sob muitos aspectos, bem diferente de  Sons: Arranjo: Garganta (2009), o último que você tinha publicado. Neste você tinha feito uma série de experimentos com o não-sentido: poemas sonoros em línguas menos conhecidas (holandês, húngaro, polonês), poemas alheios em escrita inversa, que também os torna uma espécie de poemas sonoros; as microfissuras do verso; poliglotismo (inglês, alemão, francês, espanhol). Agora temos um livro mais discursivo, comunicativo. São apenas dois anos de diferença, mas você já disse que SAG estava pronto desde 2007. Afinal, essa variação estilística é diacrônica ou sincrônica? Há vários Domenecks, ou ele muda com o tempo?

RD – Eu entendo a tentação de usar conceitos como diacronia e sincronia neste contexto, mas responder esta pergunta nestes termos seria contradizer grande parte do meu trabalho, já que parcela principal de minha pesquisa obsessiva, sobre a qual falo tanto, é a de tentar borrar certas dicotomias, ou pelo menos viver na fronteira que as separam, para alguns, mas que eu pessoalmente creio ser o que as une. Lembro aqui que meu mestre principal, que elegi para mim mesmo, sempre foi Murilo Mendes, aquele que Manuel Bandeira chamou de “conciliador de contrários”. Digo isso porque não acredito em sincronia e diacronia como categorias absolutas, como evento e estrutura puros, usando as expressões de Agamben, o que já foi discutido de forma frutífera por críticos como Jauss e Jameson. Mas talvez a formulação mais clara que conheço seja mesmo a de Agambem em Infância e História:

… a instância precisa como uma interseção de diacronia e sincronia (a presença absoluta) é um mero mito, de que a metafísica ocidental lança mão para garantir a continuação de sua própria concepção dual do tempo. Não se trata apenas – como Jakobson demonstrou para a linguística – de que sincronia não pode ser identificada com o estático ou diacronia com o dinâmico, mas que o evento puro (diacronia absoluta) e a pura estrutura (sincronia absoluta) não existem. Todo evento histórico representa uma margem diferencial entre diacronia e sincronia, instituindo uma relação de significado entre elas.”

 Mas estou deixando-me carregar por uma discussão geral quando você quer saber de que forma isso se manifesta em meu trabalho, especificamente dentro dos dois últimos livros. Há aqui um fator importantíssimo que não entrou ainda na conversa: o fato de que entre Sons: Arranjo: Garganta, escrito basicamente entre 2005 e 2007 mas publicado apenas em 2009, e este último, Cigarros na cama, escrito e publicado no verão de 2011, há todo um livro inédito, meu mais longo, intitulado Ciclo do amante substituível, que foi escrito entre 2006 e 2011 e que está no prelo, nas mãos da Editora 7Letras, e será lançado no início de 2012. Você encontrará nele um elo que fará com que esta aparente separação estilística, entre os livros de 2009 e de 2011, faça muito maior sentido. Note que as datas se intercalam, se encavalam, digamos. É que nunca “esvazio a gaveta” quando publico um livro. Enfeixo os poemas que formam um bloco de obsessões irmanadas, deixando muitos poemas de fora até que se enfeixem em outro livro, no qual façam sentido como conjunto. Os livros a cadela sem Logos (2007) e Sons: Arranjo: Garganta (2009) poderiam ter formado um único longo livro, talvez. Eu os chamo de “álbum duplo”, talvez algo como os álbuns Kid A e Amnesiac, do Radiohead, guardadas as devidas proporções de importância e qualidade. Ao mesmo tempo, preciso lembrar que em meio a isso tudo há o meu trabalho em vídeo e poesia sonora, portanto eu preferiria falar não em “mais de um em mim” (não sou Fernando Pessoa, separam-nos anos-luz), nem em sincronia ou diacronia, mas em uma confluência de interesses, e o desejo de trabalhar com a poesia em todas as suas manifestações legadas pela tradição, separadas apenas pelo pensamento linear e evolutivo, mas confluentes sempre, sempre, sempre. Estou, por exemplo, escrevendo canções agora com um amigo alemão, o músico Tobias Bittmann. Mas pergunto-me se sou mesmo tão versátil, se você afirma que meus livros “se encerram muito bem dentro de uma est-É-tica específica”. Poetas como Dirceu Villa ou Marcelo Sahea, para mencionar apenas dois, talvez sejam mais versáteis.

GGF – Você sempre tem feito uma defesa da performance da poesia, da corporalidade do ato poético. Ao mesmo tempo, seus livros apresentam uma força que afirma a forma-livro. Como você vê/entende essas variedades dentro da poética contemporânea?

RD – Ainda existe em grande parte da poesia contemporânea uma separação, seguida de hierarquia, entre tradição oral e literária. Algo que para mim não faz o menor sentido hoje. Nunca fez, realmente. Eu mesmo já tive os meus dias de ativismo pela tradição oral. Ao mesmo tempo, meu desejo de viver na fronteira destas dicotomias artificiais todas faz, neste caso específico, com que a muitos o meu trabalho vocal pareça demasiado literário, assim como meu trabalho escrito parece a outros demasiado discursivo. Falar sobre estas variedades dentro da poesia contemporânea exigiria um volume de ensaios, especialmente porque lido com a tradição em língua portuguesa e com a tradição em língua alemã, por viver aqui em Berlim, sem mencionar meu interesse pela poesia norte-americana ou a tradição das neovanguardas francesas, como o Léttrisme e a Internacional Situacionista. Eu posso apenas falar sobre como isso funciona em meu trabalho, mas, para começar, eu gostaria de descrever como esta separação hierarquizante ainda se opera nos dias de hoje. Veja bem, o que precisa ser exposta é a maneira como ainda se espera e exige, de um texto falado ou cantado, que este funcione na página como Literatura. Quando isso não ocorre, o texto é imediatamente visto como menor. Ao mesmo tempo, e aí reside o que hoje me parece uma farsa crítica, não se espera de um texto na página que também funcione na voz. O texto que funciona apenas na página é tido como superior, mesmo que não funcione na voz. Ai se flagra a hierarquia. Para mim, o parâmetro principal continua sendo o trabalho dos trovadores medievais, especialmente porque em muitos casos sobreviveu também a melodia, algo que não temos mais no caso de Safo de Lesbos, por exemplo. O exemplo maior é a sextina de Arnaut Daniel: tida como a mais sofisticada das formas literárias, todos se esquecem, aparentemente, que a sextina de Arnaut Daniel é na verdade uma “letra de música”. Este é o parâmetro que tenho imposto a mim mesmo, o desafio que tenho feito dos meus textos: que funcionem tanto na página como na voz, o que traz constrições muito específicas e que literatos jamais entendem, pois sofrem da hierarquização sem muitas vezes perceber. Para mim, hoje, o poema que funciona bem apenas na voz é tão belo quanto o poema que funciona apenas na página, mas o poema que me parece superior é o que, seguindo Safo, Arnaut Daniel e outros grandes, funcione tanto na página quanto na voz. Não estou insinuando que tenho sucesso no desafio, mas estou buscando. Invariavelmente, quem não leve isso em consideração e sofra da hierarquização, acabará achando que certos textos são discursivos, já que não entendem a discursividade mesmo em um poeta como João Cabral de Melo Neto.

GGF – Fale um pouco sobre o seu processo de composição.

3a) Como funciona se poliglotismo poético, o que o move a mudar de língua ou inserir estilhaços de outras (creio ter encontrado ao menos 8 línguas em Sons: Arranjo: Garganta)

3b) Qual é a relação da sua poesia com o formato canção (há várias referências a Radiohead, Portishead, New Order, etc.)?

RD – Não tenho um processo único. Cada poema pede sua forma, seu processo. Um texto como “cage of chance jaula do caos”, por exemplo, tomou-me meses na busca das equivalências contextuais entre as tradições de língua portuguesa e língua inglesa. Já a série dos “Bruit pur pour les brutes” nasceu do desejo de investigar a noção de forma fixa que ainda nos flagela, usando o poema fonético “Karawane”, de Hugo Ball, como uma espécie de forma fixa, mas substituindo os fonemas sem sentido verbal de Ball por palavras em língua estrangeira que eu não falo, usando-as como seus fonemas com sentido como se fossem puro som. Foi uma radicalização da minha pesquisa por uma poética de implicações e tentativa de curto-circuito no processo de leitura da poesia que vê em cada texto outro texto-fantasma pairando sobre ele, uma crítica de certas exegeses falsárias. Não foi muito bem compreendido, alguns acreditaram ver apenas uma repetição do zaoum de Khlébnikov, provavelmente por desconhecimento da poesia sonora das vanguardas, ou por realmente colocar num mesmo balaio-de-gato tanto a poesia fonética dos dadaístas germânicos como o zaoum do poeta russo.

Minha relação com o formato da canção passa também por interesses variados. Há o desejo de quebrar certas separações entre citação erudita e popular, o que pode parecer datado depois de modernistas como Oswald de Andrade e Murilo Mendes, mas que parecia ter voltado a operar na década de 90, pelo menos em meu campo de visão e audição. A verdade é também que poetas-cantores como Thom Yorke e Polly Jean Harvey, por exemplo, realmente tiveram uma influência sobre minha “textualidade”, para não chamar o que faço de poesia e ofender certas sensibilidades. Hoje em dia, como já mencionei, formei uma parceria com o músico Tobias Bittmann e estou escrevendo canções “propriamente ditas”, em inglês. O que é um desafio para tudo isso que mencionei, como a tentativa de encontrar o ponto de equilíbrio entre o funcionamento vocal e literário do texto.

GGF – Qual é o seu objetivo como editor de duas revistas (Modo de usar & co. e Hilda magazine)? Você considera esse trabalho uma extensão da sua poesia? E como?

RD – O objetivo das duas revistas é o mesmo: divulgar o que nos parece mais interessante na produção contemporânea, resgatar certas tradições desprivilegiadas, ajudar a criar alternativas críticas no debate. Na verdade, foi muito saudável para mim como poeta, pessoalmente. Antes, em livros como a cadela sem Logos e Sons: Arranjo: Garganta, este meu impulso crítico desaguava nos poemas, tornando-os talvez demasiado conceituais para muitos, pois havia o desejo de escrever poesia crítica que operasse a partir das implicações de sua forma, composição, contexto e discurso, em confluência inseparável. Com as revistas como canais para artigos críticos, senti-me mais livre  ou menos obrigado a fazer isso na poesia.

GGF – Você costuma sempre falar da relação entre poesia e poeta com seu contexto e função. Qual é o lugar, ou a função est-É-tica (como você diz) da poesia amorosa no presente?

Esta talvez seja a pergunta mais difícil de responder, certamente a que apresenta maiores armadilhas. Você se lembra da colaboração entre Tom Zé e o Grupo Corpo, há alguns anos? Ali havia, em minha opinião, uma expressão muito clara da necessidade de salvaguardar o discurso amoroso, para usar a expressão de Roland Barthes, no mundo contemporâneo ou qualquer mundo. O próprio Barthes exprimiu algo desta necessidade na pequena introdução que faz a seu Fragmentos de um discurso amoroso. Numa sociedade que busca a uniformização de quase tudo (não dos direitos e privilégios) e a criação de autômatos, a poesia lírica torna-se um refúgio não do individualismo egocêntrico, como certos patetas parecem crer, mas um refúgio para o direito de cada indivíduo de ser um indivíduo, ao mesmo tempo que é parte de uma comunidade. Num mundo em que a individualidade é muitas vezes acusada de individualismo num discurso que quer ajudar a transformar cada ser em mera ferramenta de um sistema, sociedade em que tudo é dispensável, em que seres humanos são usados todos os dias como bucha de canhão, o ato de eleger outro ser como uma “festa-em-si”, como teu próprio “príncipe das belugas” ou “princesa das raposas”, torna-se uma subversão completa e perigosa do sistema de uniformização e automatização. Não há nada menos alienado que a poesia amorosa. Pelo contrário, parece-me por vezes a mais desperta. Porque mantém em nós o desejo, seguindo as palavras de cummings, de seguir sentindo, “porque sentir é estar vivo”, de não ceder ao cinismo. Algo a ser celebrado, sempre. cummings o exprime de maneira muito melhor que eu, portanto, se você me permite, encerro com minha tradução de um trecho de uma das nonlectures do grande lírico amoroso americano:

“Vocês não têm a menor ou mais vaga concepção do que é serestar aqui, e agora, e a sós, e ensimesmos. Por que (vocês perguntam) alguém deveria querer estar aqui, quando (com o simples apertar dum botão) qualquer um pode estar em cinquenta lugares ao mesmo tempo? Por que alguém deveria querer ser agora, quando qualquer um pode ir quandando por toda a criação num girar de manivela? O que poderia induzir alguém a desejar sozinhez, quando bilhões de soi-disant dólares são misericordiamente desperdiçados por um bom e grande governo para evitar que qualquer onde quer que jamais esteja um instante qualquer só? Quanto a ser você mesmo – por que diabos ser você mesmo; quando em vez de ser você mesmo você pode ser centenas, ou milhares, ou centenas de milhares de outras pessoas? A simples ideia de ser-se a si mesmo em uma época de eus intercambiáveis deve parecer supremamente ridícula.” — e.e. cummings

 

Antologia mínima

Ricardo Domeneck

vídeos

Pequeno estudo sobre os ciúmes” (2007)

Six songs of causality”, ao vivo na Espanha (2009)

The poor poet (after Carl Spitzweg)” (2010)

Eustachian Tube in Staccato” (2010)

“4’33” of Eugen´s presence” (2006)

 

de Carta aos anfíbios (Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2005)

 

A pele medrosa cicatriza-se: e recomeça

a Philipp Naujoks

1.

esta perturbação inicial, garfo

que não encaixa na boca

e a comida cai, num prato

assustado; o copo

d’água vai de encontro

ao dente. A garganta

estende as palmas

de vontade.

 

2.

O algodão úmido

na testa eriça-me

o quebranto; o soluço

acelera o ritmo.

 

Visto o casaco alheio

e me perco no cheiro,

um instante,

um instante.

 

O flagrante

do dono

perturba-me

o sono.

 

3.

Timidez

de pés

 

em casa

estranha,

 

que ao

ensaio

 

da distribuição

nova do peso

 

descobrem

a levitação.

 

4.

O chão é um convite

recorrente, constante; algo em nós espera

o reencontro. Até que o vento.

 

Como um caule / exausto / sob copa teme- / rosa

a Jorge Wakabara

Novembro cansa. O calendário

é o início

de todo cansaço.

As obrigações

de natal por vir,

o ano novo o

tópico favorito

como se fosse ainda

moeda corrente

a regeneração.

    O jogo

da transição o único

restante e isenta

-nos do definitivo.

“Só toca em mim

casando”, vontade

de expor (as mãos

batendo contra o peito) como

Darlene Glória em Toda

Nudez Será Castigada,

mas o medo. Desde cedo

aprendemos

sobre investimentos.

Nunca desnudar-se

antes da isenção de

responsabilidade.

Você está aqui, é implícita

a promessa de estar

sempre. As exigências

nascem da expectativa,

da minha falta de direitos.

O asfalto na Augusta

encharcado

nesta primavera estranha

de 07 de novembro

de 2003 (em anos ímpares

me convenço de que

a morte existe) as fronteiras

fechadas, as invasões

bárbaras às portas,

as disfunções do clima vêm

unir-se à sua intermitência.

               Quando

tudo em mim conspira

pela constância?

Seu rosto que

diz “se eu ficasse não

faria mais sentido

o sufrágio universal.”

Atende-se ao telefone

nunca a única

voz,

parte-se o pão e

é sempre a primeira

vez.

 

(sem título)

onde está o quieto

no seu canto se

não importa em

que margem do

Atlântico sempre

imóvel ao telefone

 

e o passo no vazio é sempre

o penúltimo,

                     pés machucados

de parúsia, tanta compaixão

por perversidades em especial

                    as minhas,

não há taças inquebráveis, a não

                ser na língua,

                diz-se: como

           se relações

fossem higiênicas

 

e a lógica sempre entre

dois ouvidos, língua

sempre entre martelos

e dentes alheios, ele

riu que

                  wollt ihr

den totalen Dorn?

 

deleite em desordem

 

e Tsvetaeva citada e traduzida

por Hejinian citada e traduzida

por Domeneck diz que a oferta

excede tragicamente a procura

 

(ou este último mente)

 

todos entregues a

instituir este regime

do poupar-se mas a

que custo?

             instauração

de armazéns para o

 

fogo e uma árvore

brota e cresce anos antes

para fazer-se disponível

ao raio que a parta

ao meio ou num único

galho, o arco descrito

 

pela madeira em queda

                e eu apenas o

condutor mais eficiente

 

entre céu e solo

 

de a cadela sem Logos (SP/RJ: Cosac Naify/7Letras, 2007)

 

falar hoje exige

elidir a própria

voz as transações

inventivas entre

interno e externo

demandam

que a base venha

à tona e a

superfície seja

da profundidade da

história ímpeto

denotando o

centrífugo

o corpo público

que exibo como

palco fruto

da ansiedade

do remetente

o interno ao longo

da epiderme

como emily

dickinson terminando

uma carta de minúcias

com “forgive

me the personality“

 

§

 

difícil convencer todas

as partes do meu corpo

do sentido

de uma ação e

assim pôr em

movimento as roldanas

da corpulência em

direção ao

abstrato cruzar

o oceano tantas

vezes umedece

os propósitos faz

querer uma cama

no fundo

não não

é irônico

que bas jan ader in search

of the miraculous afunde

desapareça em meio

oceano

 

§

 

inveja das cartas a que

basta dedilhar um

nome completo e sempre

conseguem a atenção

do destinatário e

enquanto ele e

ele abrem

a boca permitem

a visita ao estômago

alheio minha garganta

de mão dupla abre

a passagem mais

uma vez devo bastar

-me limito-me

a olhar sua

boca limítrofe o

álcool realmente não

auxilia a

confusão de

estômagos entre

interno e externo

 

de Sons: Arranjo: Garganta (SP/RJ: Cosac Naify/7Letras, 2009)

 

O anjo da reprise

Fé cega no informe

dos olhos, os dedos

de Tomé

pela ferida do prego,

distância, bússola

e intransigência

do horizonte,

pela cabeça

da mulher

de Ló talvez

apenas a certeza

de não

ser capaz do olvido:

o único inominável

é o long forgotten

ou, cego de ciúmes,

o medo de ter à cama

um monstro

define o que se troca

entre os olhares

de uma Psiquê

erotizada e um Eros

psicótico

no instante à vela

e agora

vejo-te em parte

e aguardo

sentado pelo relatório

de Medeia sobre a lição

de quem arrisca urrar

“meu reino

por um amante”,

já que nessa

novela não

veremos o rosto

de Jasão sem filhos

jazer em divórcio

sobre as folhas

enrodilhado

ou de joelhos,

a barba de três dias

e o sol queimando

as unhas, o quotidiano

longe dos olhos

ou o anjo

que volta o rosto

sempre à espera

das facas às costas.

 

§

 

O poeta vai para o monastério

a-

como adormecer num longa

do Pasolini e despertar

num curta do Kieslowski;

e tem sentido, eu pergunto,

abstinência, parcimônia

polissílabas? se meu corpo

foi sempre teatro

do precário? Êxtase

em ascese,

mas as extremidades

começam a cansar-me,

quem me dera

agora um dilúvio

na ponta dos pés;

a perda acopla-se

mas o oximoro não

me acalma, ninguém

que preencha

meu ônus,

caminhando pelas ruas

como uma papisa,

uma diva, uma Kate

Bush ofendida,

cantarolando

“de longe sim flauta de luva”

para que não

se entenda que

entre dentes

cerrados invoco

(a primeira onda

sobre minha própria

cabeça) o

déluge sintflut dilúvio

 

b-

derramo o leite no

chão de propósito,

firo,

furo os dedos

no garfo,

quero tanto

agradar e intuo

que Deus aprecia

desperdícios; assim

deslocado

como um peixe

n’água, olho

continuamente para

o teto à procura

das câmeras que

tornem oficial

meu protagonismo

nesta história,

pela manhã

o primeiro sussurro

sendo HOMEM

AO MAR HOMEM

AO MAR e só hoje

entendo minha

mãe gritando após

as surras “não

me venha

com esta

cara de Maria

Madalena

arrependida”;

ah o martírio

rosa de jamais

ter filhos que eu

possa chamar de

Rocamadour

Abel

Luke Skywalker

 

§

 

Linear

De boca em boca

o mundo mostra

os dentes e a garganta

infecciona-se em resposta.

Atento ao ambiente como

o ambiente ignora a

minha vontade.

Mesmo equivalências

geram colisões e o eixo

do sal denuncia

o doce na boca.

“.”

O herói contra

a corrente, o herói

à vela.

Não há apoteose

suficiente para todos,

a chuva muitas vezes

cai antes

da hora,

quer-se os créditos

e eles não sobem.

Beethoven

ludibriou-nos.

É claro que em Who´s

Afraid of Virginia Woolf?

Richard Burton, não,

George, recorre ao

útero vazio

de Elizabeth Taylor,

não,

Martha, para a

ofensa última.

A escala da

nutrição não

recomeça a cada

meia-noite, segue

a continuidade

do esôfago, do

termômetro, da

maré, da

infecção, da

ascensão e queda

dos efeitos

da cocaína, da cafeína.

Filiação da fome e

as ilusões da higiene.

 

de Cigarros na cama (Rio de Janeiro: Berinjela/Modo de Usar & Co., 2011)

 

3.

Comecei a fumar porque você fuma

e eu certamente não queria viver

mais que você. Agora já sem

o seu hálito, suas bitucas e cinzas

na mesma cama, começo o dia

com um cigarro, exatamente

e ainda pelo mesmo motivo.

 

9.

Esperei por você no café

português para nossa última

conversa, queria estar lendo

e fumando

quando você chegasse,

com tranquilidade fingida

e estudada. Seu atraso

custou-me quatro cigarros

consecutivos, o que, segundo

as estatísticas,

significa 44 minutos menos

de expectativa

de vida. Unidos aos seus quinze

minutos de atraso, digamos

uma hora a menos no mundo.

Perda nenhuma. O vento

me descabelava

e eu lutava bravamente

contra mais esta desordem.

Você

chegou, obviamente,

no intervalo

entre o quarto e o quinto.

 

de Ciclo do amante substituível (Rio de Janeiro: 7Letras, no prelo)

 

Texto em que o poeta celebra

o amante de vinte e cinco anos

http://www.youtube.com/watch?v=KYrevixpx-A

a Jannis Birsner

Houve

guerras mais duradouras

que você.

Parabenizo-o pelo sucesso

hoje

de sobreviver a expectativa

de vida

de uma girafa ou morcego,

vaca

velha ou jiboia-constritora,

coruja.

Penguins, ao redor do mundo,

e porcos,

com você concebidos, morrem.

Saturno,

desde que se fechou seu óvulo,

não

circundou o Sol uma vez única.

Stalker

que me guia pelas mil veredas

à Zona,

engatinha ainda outro inverno,

escondo

minha cara no seu peito glabro.

Fosse

possível, assinaria um contrato

com Lem

ou com os irmãos Strugatsky,

roteiristas

de nossos dias, noites futuras;

por trilha

sonora, Diamanda Galás muge

e bale,

crocita e ronrona, forniquemos.

Celebro

a mente sob os seus cabelos,

ereto,

anexado ao seu corpo, o pênis.

Algures,

um porco, seu contemporâneo,

chega

ao cimo de seu existir rotundo,

pergunto,

exausto em suor, se amantes,

de cílios

afinal unidos, contam ovelhas

antes

do sono, eufóricas e prenhas.

 

§

 

Carta a Antínoo

http://www.youtube.com/watch?v=qFJXBxc7om4

Que me importam o império as vilas

as efígies nas moedas se o teu cheiro

ocupa ainda cada canto angular

da arquitetura

mas teu pescoço teus pés teu tórax

já não os habitam

e as águas do Nilo não permitem

que este teu cheiro

agora se evada se exale e me excite ou exalte

uns dizem suspeitar que eu ordenei tua morte

outros que tua influência se tornara indesejável

nunca houve lugar para Eros

entre as intrigas de corte

eu já não me lembro tua morte talvez

a tenha ordenado quiçá tenha sido

castigado por meus inimigos

os mais cruéis sugerem que o ato

fora uma fuga tua dos meus cafunés

das minhas mãos geriátricas

não sei não sei tua lembrança

ocupa o espaço de todo o resto

que eu poderia agora memorizar

ordens execuções missões diplomáticas

a fundação de cidades já não me alegra

se tu já não serás um dos cidadãos

as revoltas de bárbaros tão-só

me entediam

se tu não me acompanhas nas campanhas

divinizar-te é consequência lógica

doravante estarás no panteão

entre aqueles que agora

por um motivo a mais invejo

se teu exercício de natação sem volta

foi mesmo sacrifício ou autoimolação

eu me pergunto que deus te merecia

mais do que eu

dizem as boas bocas pelas ruas de Roma

que eu chorei por ti como uma mulher

como se eles pudessem distinguir o gênero

das águas salinizadas

Pancrates de Alexandria comparara

uma flor-de-lótus a ti e não o contrário

e com isso ganhou meus favores

tu eras o parâmetro

de todos os sistemas da simetria

Antínoo ainda que eu mandasse a Bitínia

ser varrida vasculhada

jamais outro com teu pescoço

teus pés teu tórax

tu eras o príncipe das belugas

Antínoo tu foste meu antinão

 

X + Y: uma ode

            An refert, ubi et in qua arrigas?

                    Suetônio

Houvesse nascido

mulher, já teria dado

à luz sete

filhos de nove

homens distintos.

Agora, vivo entretido

com as teorias

a explicarem meu gosto

por odores específicos,

certa distribuição de pelos

nas pernas alheias,

os cabelos na nuca

e no peito

sem seios, ainda que aprecie

certas glândulas mamárias

de moços e rapazes

com aquela dose

saudabilíssima

aos meus olhos de hipertrofia.

Medito sobre as conjecturas

de terapeutas,

os relatos de uma Persona

partida, Édipo subnutrido,

sem modelo

na infância de um lendário

Laio

exemplar, lançando-me

a uma suposta

busca entre amantes

por mim mesmo.

Tentei, sem o menor

sucesso,

por dias induzir-me à ereção

diante do espelho.

Concluí não ser tão

eréctil meu ego.

Ouvi com atenção

a fórmula

sobre pai ausente e mãe

dominante a gerar rainhas

de paus, espadas e copas

lassas e loucas,

mas, apesar do meu histórico

de progenitora histérica

e procriador estóico,

meus irmãos

tão afeitos e afoitos

diante dos clitórides

embromam a estatística.

Li todas as reportagens

sobre a possível queerness

na boutique do código

genético, esta quermesse

das afinidades seduzidas,

e ri com o amigo

que certa vez, em chiste,

nomeou-me dispositivo

biológico

de uma Natureza em estresse,

medicando o hipercrescimento

populacional. Não mentirei dizendo

que não temo e tremo

com o perigo do inferno.

Cheguei, contudo, à conclusão

de que minha passagem

só de ida

ao Hades

não se dá

apenas pela inclinação

algo obcecada

de minha genitália

pelo caráter heterogêneo

dos vossos gametas.

Houvesse

nascido fêmea,

já teria dado à luz onze

filhotes de treze

machos diferentes,

e, de puta,

assegura

o Vaticano (e mesmo Hollywood),

não se conhece ascensão,

tão-somente queda.

Portanto, poeta, pederasta e puta,

sigo com meus olhos pela rua

cada portador

desta combinação gloriosa

de cromossomas

X e Y,

chamem-se Chris ou Absalom,

com suas espaçadas proporções

entre os buracos

do crânio, a linha que se forma

entre orelhas e ombros,

as asas de suas omoplatas

e a coifa dos rotadores,

as simetrias volubilíssimas

entre as extremidades

excitantes e excitáveis

como nariz, pênis e dedos,

o número de pelos

entre o umbigo

e ninho púbico,

o formato dos dentes

e seu espelhamento

em diâmetro

nos pés e suas unhas.

Se andam como comem,

se bocejam como riem,

se bebem como tossem,

se fodem como dançam.

A absoluta falta de mistério

em alguns deles, incapazes

da dissimulação famosa

de certas personagens

literárias femininas

do século XIX.

Neles, é oblíqua

somente a ocasional

ereção inconveniente.

Constrangem-me

estas confissões,

mas cederia certos direitos políticos

por algumas dessas cristas ilíacas

já presenciadas em praias, ao sol,

e abriria mão de uma ida às urnas

este inverno por esta ou outra nuca.

E veja só como o planeta

insiste na demonstração empírica

dessa abundância de músculos

e seus reflexos

cremastéricos:

neste exato momento,

enquanto escrevo este textículo,

entra no café, em pleno Berlimbo,

um desses exemplares de garoto

canhestro e canhoto,

o boné cobrindo meio rosto,

prototipagem de barba

e bigode, calças

que me catapultam a fantasias

com skateboards como props,

sobrancelhas feito caterpillars

sitiando os olhos com promessas

de delícias e desfaçatez épicas.

Seus tênis são beges;

ao tirar o suéter, vê-se

a sua escala de Tanner.

Sua Calvin Klein.

Bege fico eu, adivinhando que pele

cobre seus joelhos, seus calcanhares.

Sonho o sexo biônico e homérico,

algo entre Aquiles e Pátroclo,

interpretados em nosso mundo

por Brad Pitt e Garrett Hedlund,

potros xucros como búfalos

ou bárbaros.

E este mundo está cheiíssimo

dessas distrações quase sádicas

para meu masoquismo

voluntarioso e em vício,

que impedem que componha

a minha Divina Commedia,

meu Paradise Lost.

Perdoe, Sr. Cânone,

esta minha tosca e parca

contribuição lírica à safra

de seus contemporâneos,

mas não me catalogue

entre as farsas, sátiras.

Pois não é, consinto, culpa

das massificações capitalistas

esta minha attention span

pouco renascentista,

mas desta explosão de cântaros

plenos de testosterona púbere

a ir e vir nos espaços públicos.

Quando passam, petiscos,

finger food em arrogância

cocky e garbosa, murmuro

na cavidade oca

da boca:

“Deviam ser proibidos

seus exageros de lindos”.

Meu fim será nestes botecos

do Berlimbo,

entupindo-me de café preto

e esperando suas ocasiões

para escrever poemas

que vos celebrem, atores

principais deste longo pornô

em que me vi concebido, gerado

e expelido, coadjuvante

contente e dublado.

Agradeço-vos a oportunidade

de fazer do advérbio sim

uma interjeição obscena.

Aos outros, juro que não se trata

de encômio, louvor ou gabo.

Quisesse eu fazer apologia,

talvez dissesse

haver mais elegância

em “Sê meu erômenos

e eu serei teu erastes”

do que, ao cangote,

“Mim Tarzan, você Jane”.

Não busco novos adeptos

que me façam concorrência.

Boys will be boys,

há quem diga, e, ora,

não vou dizer que espero

de todo moço

que seja Mozart

ou Beuys.

Haverá os momentos de caça

e rendição felizes, as poucas

vezes de sorte

em que seremos camareiros

de algum moço pasolínico,

com quem se poderá, enfim,

fazer o cama-supra, meia-nove

e então discutir no pós-coito

outros conceitos hifenizados

ao som de Cocteau Twins,

listar as guitarras de 1969,

nosso horror a Riefenstahl,

a obsessão por Fassbinder,

e oxalá sentir em meio a tal

loa uma nova ereção

cavucar

as malhas entre as dobras

do edredão

enquanto lemos poemas de Catulo,

Kaváfis.

Quando chegarem os bárbaros,

me encontrarão na cama;

que venham porém armados,

pois hei de estar acompanhado,

e em riste as nossas lanças.

 

Berlim, 25 de outubro de 2010

 

guilherme gontijo flores

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