cyprian norwid

toda história, e com ela a história da literatura, é uma simplificação das forças complexas que atravessam qualquer empreitada humana. algumas simplificações são mais grosseiras que outras, óbvio; por isso essa frase bombástica – tão pouco do meu feitio – para abrir o post. porque algumas são mais grosseiras, & uma das que mais me incomoda, é a reconstrução da modernidade literária, que costuma, mais do que se deve, ser simplificada num eurocentrismo ingênuo ou ignorante; num eurocentrismo não, num francesismo ingênuo ou ignorante.

cyprian norwid

aí temos algo como: no princípio havia baudelaire, que inventou a cidade de paris e o mal na literatura, depois veio rimbaud para santificar o irracional profético da poesia, por fim o espírito mallarmé que detectou a crise de verso, aprofundou as possibilidade do hermetismo & da visualidade: o resto é vanguarda. essa história simplificada, aqui toscamente ridicularizada, ganhou força n’a estrutura da lírica moderna, de hugo friedrich, & peca por deixar (quase) de lado nomes como whitman, dickinson, hopkins, de língua inglesa (dentro & fora da europa), um sousândrade brasileiro, & um cyprian norwid, de que pretendo tratar brevemente, dentre outros. coisa similar, na história da música, faz com que a obra inesperada de um charles ives fique fora da lógica historiográfica, para entrar como uma espécie de azarão artístico, ou profeta dos tempos por vir (uma mitificação vazia em busca do ideal do gênio incompreendido em seu tempo, que se diz também de norwid, de sousândrade, de hopkins &c.). é claro que não se exige aqui uma revisão completa da história literária, nem pretendo diminuir as obras francesas, ou sua importância, já que estavam de fato no centro cultural mundial do século xix & puderam ampliar sensivelmente as possibilidades literárias das gerações seguintes. o que interessa é ver como processos similares de composição e pensamento estavam presentes em outras partes do ocidente, com resultados igualmente impressionantes em sua diversidade, mas calados por uma posição geográfica, ou por uma “língua menor” (como é o nosso caso sousandradino, como é o caso norwidiano).

como se não bastasse a historiografia, a coisa piora ainda mais quando se trata de um conhecimento entre periferias, como o conhecimento da poesia polonesa no brasil, ou vice-versa; já que é simplesmente mais fácil voltar os olhos para o centro, sobretudo quando temos mais tradutores para/de línguas como francês, inglês, espanhol, alemão, italiano, e pouquíssimos para/de  árabe, criolo, quéchua, polonês, russo, &c., & muitas vezes dependemos das traduções para as línguas centrais, para que possamos ter ao menos uma ideia do que se passa em outras margens; portanto, não é à toa que nossa literatura abunda em traduções indiretas (& podem ter certeza, isso não é uma crítica da minha parte). então, ao ponto.

autorretrato

cyprian kamil norwid (1821-1883) é, junto com adam mickiewicz provavelmente o escritor polonês mais famoso do século xix nos dias de hoje, com obras que atravessam poesia, drama, ensaio, escultura & pintura (todas as imagens deste post são dele, exceto a foto). ele é geralmente enquadrado como um romântico de segunda geração, & a sua vida desandada, entre penúria & uma espécie de exílio (depois de uma tentativa fracassada de emigrar para os estados unidos) entre londres & paris, ou sua solidão & abandono, chamam quase tanta atenção quanto a sua obra, inclusive pelo fato de ter sido enterrado numa vala comum parisiense, donde seus restos mortais viriam a sair apenas neste século.

o estilo da sua escrita é complexo, com uma mistura de formulação classicista & algo parnasiana dentro de uma roupagem frequentemente obscura, abrupta, elíptica & metafórica, que poderia lembrar o romantismo e o simbolismo (daí que haja tanta discussão inócua sobre como enquadrá-lo), além de um pensamento complexo religioso & por vezes místico entremeado de ironia & autoironia, como se pode ver em vários poemas da sua principal obra (não publicada em vida, não traduzida para o português), o vade mecum. por esse motivo mesmo, norwid não desfrutou de glória literária em vida, & só passou de fato a ser lido já mais de uma década após sua morte, na virada para o séc. xx.

hamlet

um bom exemplo, & provavelmente o mais famoso, é o poema “o piano de chopin” (“fortepian szopena“), onde o poeta expressa parte do seu contato & amizade com chopin enquanto ainda trata de uma cena real, quando o piano de chopin foi lançado pela janela de sua casa. o modo do tratamento é enviesado, elíptico nas informações, deixando o leitor com uma sensação de intimidade velada, ou de uma fragmentação da memória que inclui as cenas por um viés poético que arruína a narratividade para se concentrar no efeito condensado da expressão. outro aspecto que logo chama a atenção é a diversidade da apresentação visual, com letras que por vezes se afastam, como a demonstrar um rallentando na partitura do poema, ao passo que as estruturas rítmicas e rímicas são irregulares, o que o aproxima de diversas sonoridades chopinianas.

tive a oportunidade de conhecer um pouco melhor a poesia de norwid numa tradução inglesa poeticamente infeliz, que prefiro nem nomear, mas capaz de incitar o leitor a uma busca mais aprofundada sobre a obra. felizmente, pude encontrar com o professor marcelo paiva souza, da ufpr, sua tradução em parceria com henryk siewierski (dentre outras coisas, eles organizaram em parceria também o número  30 da revista poesia sempre, com um dossiê dedicado à poesia polonesa moderna, que ainda vai aparecer por estas paragens), que conseguiu criar uma série de efeitos que eu – perfeito desconhecedor do polonês – acredito serem mais capazes de apresentar com dignidade essa poesia inquieta; coisa que se pode notar pela manutenção de uma série de rimas, dos ritmos em cadência semissolta, neologismos, &c. quem quiser conferir o original polonês, para ao menos checar as possibilidades formais mais gritantes, espie, como eu, aqui.

guilherme gontijo flores

O Piano de Chopin

A Antoni C…

La musique est une chose étrange!
Byron

L‘ art? … c’ est l’ art — et puis, Voilà tout.
Béranger

I

Estive em tua casa nos penúltimos dias
Da trama sem desfecho – –
– Cálidos,
Como o Mito, pálidos,
Como a aurora… Quando o fim da vida sibila ao começo:
“N ã o t e r o m p e r i a e u – n ã o – E u, t e r e-a l ç a r i a!…”

II

Estive nesses dias, penúltimos, em tua
Casa, e parecias – de novo e de novo então –
A lira que Orfeu chegado o instante
Rejeita, mas que forçada-forceja pela canção,
E ainda vibra relutante
As suas
Cordas: duas – mais duas –
E pulsa:
“A s s o m o
D o s o m?…
S e r á t a l M e s t r e!… q u e t o c a… m a l g r a d o a r e p u l s a?…”

III

Estive em tua casa nesses dias, Frederico!
E tua mão… assim
Tão clara – e leve – rico
Alabastro e espasmos de pluma –
Mesclava-se com as teclas numa
Névoa de marfim…
E eras a forma que ressuma
Do ventre do mármore,
Antes de esculpida,
E revida
Ao cinzel do Gênio – Pigmalião que nunca morre!

IV

E no que tocaste – quê? disse o tom – quê? dirá, mas a cor de
Um eco escoa a esmo,
Não como abençoavas, tu mesmo,
A cada acorde –
E no que tocaste: tal foi a rude
Perfeição Pericleana,
Como se antiga Virtude,
No umbral duma choupana
De lariço, a si
Mesma dissesse: “R e n a s c i
N o C é u, e a p o r t a – s e i r m a n a
À h a r p a, a v e r e d a – à f a i x a…
V e j o u m a h ó s t i a – a t r a v é s d o t r i g o s e m c o r…
E m a n u e l j á s e a c h a
N o c i m o d e T a b o r!”

V

E nisso era a Polônia, retesa
Desde o zênite da História dos
Homens, num arco-íris de êxtase – –
A Polônia – d o s f e r r e i r o s t r a n s f i g u r a d o s!
Ela mesma, adorada,
Abelhi-dourada!…
(Mesmo ao cabo do ser – eu teria certeza!…)

VI

E – eis aí – cantaste – – e não mais te alcança
O meu olhar – – mas ainda ouço:
Algo?… como rusga de crianças – –
São porém as teclas em alvoroço
Pelo anseio da canção que não se fez:
E arfando convulsas,
Oito – cinco por dez –
Murmuram: “E l e s e p ô s a t o c a r? o u n o s r e p u l s a??…”

VII

Tu! – perfil-do-Amor,
Que tens por nome P l e n i t u d e;
Isto – que na Arte atende por
Estilo, porque permeia a canção, urde
As pedras… Tu! – E r a, como a História soletra,
E onde o zênite da História não investe,
Chamas-te a um só tempo: o E s p í r i t o e a L e t r a,
E “consummatum est”…
Tu! P e r f e i t a-c o n s u m a ç ã o, seja o que
For, e onde?… Teu selo…
Em Fídias? Chopin? Davi?
Na cena de Ésquilo? Em ti
Sempre – se vingará: o ANELO!…
– A marca desse globo – carente:
A P l e n i t u d e?… o fere!
Ele – prefere
Começar e prefere lançar o sinal – mais à frente!
A espiga?… madura feito um cometa fugaz,
Mal sente
A brisa a tocá-la, chove sementes
De trigo, a própria perfeição a desfaz…

VIII

Eis aí – olha, Frederico!… é – Varsóvia:
Sob a estrela que flameja,
À luz que, insólita, envolve-a – –
– Olha, os órgãos da Igreja;
Olha! Teu ninho: ali – os sobrados
Patrícios velhos como a P u b l i c a-r e s,
O chão surdo e pardo
Das praças, e a espada de Segismundo nos ares.

IX

Olha!… nos becos os potros
Do Cáucaso irrompem
Como andorinhas defronte das tropas, ao sopro
Da tempestade; c e m – o u t r o s
C e m – –
O fogo fulge, hesita, infesta
O prédio – – e eis aí – contra a fachada
Vejo testas
De viúvas empurradas
Pelo cano
Das armas – – e vejo entre a fumaça no gradil
Da sacada um móvel como um caixão erguerem… ruiu…
Ruiu – T e u p i a n o!

X

Ele!… que exaltava a Polônia, tomada
Desde o zênite da História dos
Homens, no êxtase da toada –
A Polônia – dos ferreiros transfigurados;
Ele mesmo – ruiu – no granito da calçada!
– E eis aí: como o nobre
Pensamento é presa certa
Da fúria humana, o u c o m o – s é c u l o s o b r e
S é c u l o – t u d o, q u e d e s p e r t a!
E – eis aí – como o corpo de Orfeu,
Mil Paixões rasgam dementes;
E cada uma ruge: “E u
N ã o!… E u n ã o” – rangendo os dentes –

Mas Tu? – mas eu? – que surda
O canto do juízo:“A l e g r i a, n e t o s q u e v i r ã o!…
G e m e u – a p e d r a s u r d a:
O I d e a l – a t i n g i u o c h ã o – –”

(trad. henryk sierwierski & marcelo paiva souza).

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