Tigres e cordeiros de Blake – parte I

Assim como Horácio e John Milton, de que já tratamos aqui no escamandro, William Blake tem um lado pop que faz com que seja difícil não ter ouvido algo sobre ele, mesmo sem jamais ter tido em mãos um único livro do autor. “Se as portas da percepção fossem purificadas, tudo pareceria ao homem como é, infinito”, diz ele no Matrimônio do Céu e o Inferno, declaração que foi recebida lisergicamente por Aldous Huxley (conhecido principalmente por ter sido o autor do romance Admirável Mundo Novo), que escreveu um livro sobre suas experiências com mescalina intitulado As Portas da Percepção. Na voz de Jim Morrison, se tornou simplesmente The Doors.

Blake é um poeta complexo. Oficialmente ligado ao Romantismo, ele é uma figura um pouco à parte dos grupos românticos ingleses (onde praticamente todos se conheciam, em algum grau), e parte de sua obra antecede as Lyrical Ballads de Wordsworth e Coleridge, que inauguram “oficialmente” ao Romantismo inglês. Aliás, um dos primeiros livros da carreira de Harold Bloom como crítico, que, como se sabe, se iniciou como comentador (e defensor) dos românticos, é sobre Blake (Blake’s Apocalypse: A Study in Poetic Argument). Alguns consideram Blake um místico (como é o caso de Luis Dohlnikoff, num comentário na revista Sibila sobre a tradução de Augusto de Campos de “The Tyger”), e, de fato, é fácil ver como se pode chegar a essa conclusão a princípio, mas Bloom nega esse argumento primeiro pelo fato de os poetas românticos não serem cristãos, e, segundo, pela estranheza da divindade blakeana e pela relação intrínseca entre poética e mistério, subordinando a religião à poesia, no que diz respeito à capacidade imaginativa do homem (vide seu texto breve, “Todas as religiões são uma”). Não quero entrar nesse debate, mas por ora me contento em apontar como essa é uma questão controversa, e, por mais que ele possa não ser um místico propriamente dito, há muitas coisas místicas e principalmente míticas em torno de sua obra. Assim como Shelley, Blake foi um criador de mitos, e um criador de mitos ainda mais impressionante, na medida em que foi capaz de conceber e articular toda uma mitologia própria e singular.

Além disso, eu diria ainda que essa sua mitologia é quase impenetrável se você for cair de paraquedas direto nos seus grandes poemas longos e menos conhecidos, como Jerusalém, Milton, Os Quatro Zoas, etc. Meu conselho é que o melhor a fazer, para quem tem interesse em Blake, é ir lendo-o aos poucos: primeiro com as Canções de Inocência e Experiência, depois o Livro de Thel, que é um poema só de cerca de 200 versos, mas bem estranho já. Depois O Matrimônio do Céu e o Inferno, e daí partir para os seus poemas mais longos, que acredito que não tenham sido todos traduzidos ainda para o português. Quem se interessar, a tese de doutorado feita pela tradutora e acadêmica Juliana Steil, intitulada Tradução Comentada de Milton de William Blake tem uma lista de traduções que, ao que tudo indica, está bem completa (meus agradecimentos à Denise Bottman do blog não gosto de plágio por essa referência).

As Canções de Inocência e Experiência são um bom ponto de partida não somente porque são poemas mais curtos e compreensíveis, mas porque a noção de inocência e experiência permeia toda a obra de Blake e tem análogos míticos muito poderosos. Pensemos, por exemplo, no Éden: Adão e Eva antes da Queda, em Milton, por exemplo, não são plenamente pessoas, praticamente proto-humanos, porque falta-lhes algo que possamos identificar como humano. É apenas após caírem e conhecerem a situação da experiência, que se completam desse modo. E para isso acontecer é necessário um sacrifício (bem como outro ainda para restaurar a eles e sua estirpe, e aliás, mais do que restaurá-los: permitir-lhes a transcendência), que é a vinda da Morte e Pecado: a dor, o derramamento de sangue que vem já na segunda geração humana, com Caim e Abel. E seria surpreende olhar como essas noções de sacrifícios e povos proto-humanos inocentes são recorrentes em mitologias não-europeias (para quem se interessar, sugiro o livro O Poder do Mito, de Joseph Campbell, uma belíssima introdução ao estudo mítico).

Aqui, no caso, nos focaremos em uma dupla de poemas de Blake, “The Lamb” e “The Tyger”, que ilustram bem esta relação. O primeiro dos poemas tem como interlocutor, evidentemente, um cordeiro (importante manter a terminologia bíblica) e é escrito majoritariamente em versos de tetrâmetros trocaicos catalépticos (TÁ tum | TÁ tum | TÁ tum | TÁ), que é o jeito chique de dizer que, em sua maior parte, é o metro da batatinha quando nasce (LAN ça as | RA mas | PE lo | CHÃO ). Obviamente se trata de um efeito calculado: todo o poema se constrói como um poema infantil, na voz de uma criança que indaga, a seu modo, sobre os mistérios da criação.

Agora, sobre o poema do Tigre… bem, vai ficar para a segunda parte deste post.

Na tradição de tantos outros posts do escamandro, seguem algumas traduções diferentes deste poema. Uma foi feita por mim, as outras pelos poetas e tradutores, Renato Sutanna (pela editora Sol Negro), Sidnei Schneider (que publicou suas traduções do “Cordeiro” e do “Tigre” neste post, com comentário, na revista Sibila) e Leo Gonçalves (em parceira com Mário Coutinho, pela editora Crisálida), que faz agora sua 3ª aparição aqui no escamandro. Em tempo, ele estará lançando oficialmente agora dia 21/8 o seu livro de poemas Use o Assento para Flutuar, pela editora Patuá (e quem acompanha o escamandro já teve um gostinho da poética do Leo com os desastres e as destrezas do amor). Há mais uma edição, feita pelos tradutores Gilberto Sorbini e Weimar de Carvalho para a editora Disal, mas não tive acesso a ela ainda.

Dito isso, seguem os cordeiros!

O Cordeiro

Cordeiro, quem te fez?
Tu sabes quem te fez?
Deu-te vida & deu repasto
Pelo riacho & sobre o pasto
Deu-te traje em puro agrado
Fofo traje, iluminado;
Deu-te a terna voz que bale,
Alegrando todo o vale?
Cordeiro, quem te fez?
Tu sabes quem te fez?

Cordeirinho, eu te digo,
Cordeirinho, eu te digo:
Pelo teu nome ele atende,
Como Cordeiro se entende.
Ele é de alma calma & mansa;
Ele se tornou criança.
Tu um cordeiro, criança eu,
A atender ao nome seu.
Benza Deus, Cordeirinho!
Benza Deus, Cordeirinho!

Tradução de Adriano Scandolara

Cordeiro

Cordeirinho, quem te fez?
Pois tu sabes quem te fez?
Deu-te a vida e deu-te pasto
Ribeirinho e largo prado
Deu-te roupa de delícia
Lã macia sem malícia
& deu-te esta voz tão terna
Alegrando toda a terra:
Cordeirinho, quem te fez?
Pois tu sabes quem te fez?

Cordeirinho, vou dizer-te,
Cordeirinho, vou dizer-te!
É chamado por teu nome
Pra si mesmo dá teu nome
Ele é meigo e moderado
De menino ele é chamado:
Eu menino e tu cordeiro
Temos hoje o nome dele.
Cordeirinho, Deus te crie.
Cordeirinho, Deus te crie.

Tradução de Mário Alves Coutinho & Leonardo Gonçalves

O Cordeiro

Cordeiro, quem te fez?
Sabes tu quem te fez?
Deu-te vida e alimentou-te
sobre o prado e junto à fonte;
cobriu-te com veste pura,
veste branca que fulgura;
deu-te a voz meiga e tão fina
para alegrar a campina!
Cordeiro, quem te fez?
Sabes tu quem te fez?

Cordeiro, eu te direi,
Cordeiro, eu te direi!
Por teu nome ele é chamado,
pois assim se tem nomeado:
Ele é meigo e pequenino,
e um dia se fez menino:
Cordeiro tu, menino eu –
nos une um nome que é Seu.
Cordeiro, Deus te guarde.
Cordeiro, Deus te guarde.

Tradução de Renato Suttana

O Cordeiro

Cordeirinho, quem te fez?
Sabes quem é que te fez?
Deu-te vida, deu-te pasto,
Um riacho no campo vasto;
Deu-te roupa que delicia,
Lã clara, fina e macia;
Deu-te também terna voz
Para alegrar os vales sós?
Cordeirinho, quem te fez?
Sabes quem é que te fez?

Cordeirinho, eu o direi,
Cordeirinho, eu o direi:
Teu nome tomou inteiro,
Também se chama Cordeiro;
Humildade meiga e mansa,
Que se tornou uma criança.
Eu, menino, tu, cordeiro,
Temos Dele o nome inteiro.
Cordeirinho, que Deus rei
Te abençoe, como o farei!

Tradução de Sidnei Schneider

O Cordeiro

Cordeirinho, quem te fez?
Você sabe quem te fez?
Te deu vida, & te fez pés
Entre rios & sapés,
Te deu roupa de deleite
Leve roupa, cor de leite;
E essa doce voz que bale
Eco alegre em todo o vale?
Cordeirinho, quem te fez?
Você sabe quem te fez?

Cordeirinho, eu sei quem fez.
Cordeirinho, eu sei quem fez.
Do teu nome ele é herdeiro,
Pois o chamam de cordeiro.
Força meiga & força mansa,
Ele também foi criança.
Eu criança, & tu cordeiro
Somos do seu nome herdeiros.
Deus te guarde, doce rês.
Deus te guarde, doce rês.

Tradução de Guilherme Gontijo Flores

The Lamb

Little Lamb, who made thee?
Dost thou know who made thee?
Gave thee life & bid thee feed
By the stream & o’er the mead;
Gave thee clothing of delight,
Softest clothing, wooly, bright;
Gave thee such a tender voice,
Making all the vales rejoice?
Little Lamb, who made thee?
Dost thou know who made thee?

Little Lamb, I’ll tell thee,
Little Lamb, I’ll tell thee:
He is callèd by thy name,
For he calls himself a Lamb.
He is meek, & he is mild;
He became a little child.
I a child, & thou a lamb,
We are callèd by his name.
Little Lamb, God bless thee!
Little Lamb, God bless thee!

William Blake

8 comentários sobre “Tigres e cordeiros de Blake – parte I

    1. Muito obrigado, Denise! Você tem um grande senso crítico para lidar com traduções, por isso fico feliz que tenha gostado.

  1. que ótimo ver todos juntos! na época que traduzi, a tradução que mais me marcou foi a do Paulo Vizioli, que também traduziu Yeats e outros. ah, e concordo com a sua leitura sobre o blake místico: vejo ele muito mais conectado com o mundo em que vivia do que com as visões que dizia ter. visões, aliás, tão multicolores quanto as invenções míticas, “o mundo da imagination”, que era a grande religião do Blake..

    1. Bem isso, Leo. Toda a relação que Blake desenvolve com a religião (das visões à sua oposição à religião organizada e seus ideais) é complicada demais para ser reduzida a “Blake era um místico”.
      E, uia, essa tradução do Vizioli eu não achei, do contrário teria incluído aí também.

  2. acabei me animando a fazer uma também.

    O Cordeiro

    Cordeirinho, quem te fez?
    Você sabe quem te fez?
    Te deu vida, & te fez pés
    Entre rios & sapés,
    Te deu roupa de deleite
    Leve roupa, cor de leite;
    E essa doce voz que bale
    Eco alegre em todo o vale?
    Cordeirinho, quem te fez?
    Você sabe quem te fez?

    Cordeirinho, eu sei quem fez.
    Cordeirinho, eu sei quem fez.
    Do teu nome ele é herdeiro,
    Pois o chamam de cordeiro.
    Força meiga & força mansa,
    Ele também foi criança.
    Eu criança, & tu cordeiro
    Somos do seu nome herdeiros.
    Deus te guarde, doce rês.
    Deus te guarde, doce rês.

    (trad. guilherme gontijo flores)

  3. A minha é bem velhinha, mas está aqui… Uma pena esse poema não ser tão “favorito” como O Tigre…

    O Cordeiro – Canções da Inocência
    Cordeiro, quem te fez?
    Sabes tu quem te fez?
    Deu-te vida & alimento
    Na nascente no relento;
    Vestiu-te em gozos, louçã,
    De finas vestes de lã;
    Deu-te tenra voz também,
    Para alegrar vales & além?
    Cordeiro, quem te fez?
    Sabes tu quem te fez?

    Cordeiro, te direi;
    Cordeiro, te direi:
    O teu nome tem inteiro,
    Pois Ele chama-se cordeiro.
    Ele é meigo, & sem tardança
    Veio aqui como criança.
    Sou criança, & tu cordeiro,
    Chamados por Seu nome inteiro.
    Cordeiro, Deus te guarde!
    Cordeiro, Deus te guarde!

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