Milton e um paraíso mais de uma vez perdido

John Milton (1608-1674): assim como com o carpe diem de Horácio, mesmo que você jamais tenha lido o autor de fato, deve ter tido alguma forma já de contato com ele. Você pode, por exemplo, já ter esbarrado numa das famosas gravuras de Gustave Doré (como a que está aqui ao lado) baseadas no seu longo épico Paraíso Perdido (1667, 1674), ou assistido ao filme O Advogado do Diabo, que, apesar de não ter muito a ver com a epopeia, dá à figura diabólica interpretada por Al Pacino o nome de John Milton, que inclusive cita a célebre frase miltoniana de que é “melhor reinar no inferno que servir no céu” – e para quem tiver curiosidade, há um longo artigo na wikipedia sobre o Paraíso Perdido na cultura pop, que inclui desde referências dos românticos (que eu não sabia que contavam como cultura pop, mas enfim…) a Neil Gaiman e bandas de heavy metal.

Há algo de fascinante em Milton, como também em Dante – além, inclusive, de suas próprias e gigantescas forças poéticas – que é o fato de eles terem sido autores cristãos que escreveram sobre o inferno e Satã. A cosmologia dantesca, herdada de concepções medievais, e a estranheza alegórica de seu inferno, em matéria de imaginação em muito superam as de Milton, fruto já de uma compreensão científica e proto-iluminista do universo, escrevendo numa época posterior a Copérnico e contemporânea de Galileu e Kepler. No entanto, é no quesito de representação de Satã que Milton supera Dante: indo na contramão da imagem de criatura patética e bestificada, que castiga ao mesmo tempo em que é castigada, instalada no fundo do inferno que Dante nos apresenta nos últimos cantos, Milton nos apresenta um Satã que é dolorosamente humano.

E essa impressão deriva de alguns motivos muito simples: Satã é o primeiro personagem a ser apresentado pela narrativa. Nos primeiros cantos nós o vemos derrotado, derrubado, caído no fundo do inferno após sua revolta e expulsão. No entanto, apesar de derrotado, há uma dignidade trágica em torno de sua figura, representada ainda com grandiosidade. No espaço dos primeiros cantos, então, nós o observamos se levantar dessa queda, comandar a construção do Pandemônio (a capital do inferno, palavra inventada pelo próprio Milton e que se tornou de uso corrente) e convocar uma reunião de todos os anjos caídos para decidir como prosseguir. É aí que eles decidem pela tática de corromper a nova criatura que Deus havia criado, em oposição a um novo e inútil confronto direto ou uma completa rendição, mas dentre toda a demoniarada quem fica incumbido dessa tarefa, completamente só, é o bom e velho Satã, que se voluntaria com um discurso grandiloquente.

Chega a ser admirável toda a resistência, a ousadia e a coragem do Satã miltoniano, ao mesmo tempo em que somos levados a sentir empatia pela profunda tristeza e desesperança do personagem, apresentada desde o princípio do poema e ressaltada de tempos em tempos ao longo da narrativa, a tristeza de estar longe da graça divina, a maior punição que lhe poderia ter sido dada, que faz com que, como ele mesmo diz, ele carregue o inferno consigo (uma ideia, diga-se de passagem, literariamente já presente em Marlowe, no Mefistófeles de seu Doutor Fausto). Com toda essa carga emocional, durante boa parte do poema ele nos parece o mais humano dos personagens, sobretudo quando contrastado com a perfeição do Pai e do Filho (ainda puramente divino e não humano, como na sequência do Paraíso Reconquistado) e os dois manequins que são Adão e Eva antes da Queda. Porém, conforme a narrativa se desenvolve, Adão e Eva caem, e Satã chafurda na própria malevolência e vai se degenerando, e, enquanto ele se desumaniza (e uma cena brutal de transformação em serpentes no livro X ilustra bem isso), quem vai se humanizando são Adão e Eva. Seu ponto alto é, talvez, quando ele encontra os dois pela primeira vez (no livro IV) e, entre suas reflexões, afirma que sente que poderia amá-los, se não tivesse, com grande pesar e aflição, que destruí-los.

E, obviamente, o grande motivo que nos leva a simpatizar com Satã é a pura maestria de John Milton como poeta, capaz de convencer até mesmo a partir de um ponto de vista que lhe é oposto (e convinha também ler os poemas da sua lírica menor, “L’allegro” e “Il Penseroso”, que ilustram bem essa capacidade retórica de Milton). Como disse, o poema vai aos poucos tirando essa aura heroica de Satã e mudando o foco para a humanidade que iria se formar a partir de Adão e Eva, expulsos do Éden no final do último livro. No entanto, isso não foi o suficiente para criar essa aura transgressora que paira em torno de Milton e que tanto encantou os românticos. Vide, por exemplo, o modelo satânico que Percy Bysshe Shelley tomou para o seu próprio Prometeu, em Prometheus Unbound (ainda que reconhecesse as imperfeições de Satã), o satanismo de Lord Byron (e, podíamos ainda dizer, de Baudelaire, que leu Byron, Shelley e Milton) e a declaração bombástica de William Blake de que “o motivo pelo qual Milton escrevia em grilhões dos Anjos & Deus, e com liberdade dos Diabos & o Inferno, era porque era um verdadeiro Poeta e do partido do Diabo sem o saber“. Blake também escreveu um longo poema sobre o poeta, intitulado – vejam só – Milton, além de ter feito ilustrações para tanto o Paraíso Perdido quanto o Paraíso Reconquistado, algumas dos quais estou usando neste post. Não vamos discutir muito a declaração de Blake, que, entre várias ironias e complexidades míticas, envolve muito mais coisas do que ter meramente compreendido mal a moral da história do Paraíso Perdido… mas o fato permanece que o período romântico foi, muito antes dos Rolling Stones, o primeiro a ter a verdadeira “sympathy for the devil”, e não seria grande surpresa que muitos leitores tenham comprado este peixe miltoniano. Por exemplo, o tradutor Antônio José de Lima Leitão (1787-1856), que viveu o período, traduz o Paraíso Perdido introduzindo palavras como “heróis” e “heroicidade”, mesmo quando elas não se encontram presentes no original, o que demonstra a influência dessa leitura.

Curiosamente, os modernos não tinham tanto apreço por Milton quanto os românticos. Talvez eles estivessem cansados, mas Ezra Pound, por exemplo, em inúmeros textos críticos, ralha contra Milton, sobretudo pela sua latinização do inglês: “He who disobeys me disobeys” é o seu exemplo de verso preferido para dar chilique. Pound, como bem disse o Guilherme aqui, “sabia ser bem idiota às vezes”. E o engraçado é que isso que Pound critica é o que louvamos aqui, por exemplo, como o que Odorico Mendes e Sousândrade fizeram com o português ao submetê-lo às influências do grego e do latim. Mas Pound também não estava sozinho, e F. R. Leavis, quando traça o cânone da literatura inglesa como objeto de estudo acadêmico exclui Milton – como exclui Byron e Shelley e tantos outros. E essa rejeição da crítica do século XX parece ter tido ecos para nós, falantes de português, na medida que nenhuma tradução do poema, de que temos notícia, foi publicada desde então.

Mas o mais estranho é que persiste ainda esta dissonância entre o fascínio exercido pela obra de Milton e a sua exclusão do paideuma. Tanto a cultura pop quanto a academia valorizam Shakespeare, por exemplo, mas a cultura pop parece valorizar Milton mais que a academia, ainda que a grande maioria não tenha o grau de treinamento de leitura necessário para a tarefa, e o resultado tem sido, em inglês mesmo, uns livros bizarros, como John Milton’s Paradise Lost In Plain English (um verdadeiro Paradise Lost for dummies) e Paradise Lost: the Novel. Serve como um ótimo argumento contra quem acha que a falta de contato com o literário é um fenômeno puramente brasileiro.

Bem, há inúmeras coisas ainda que poderíamos comentar, como os pormenores das questões políticas e teológicas em Milton (são das mais cabeludas), o estilo de Milton, o poema Paraíso Reconquistado que lhe dá continuidade (e que já traduzimos integralmente, em grupo), etc… mas estou me estendendo demais já, e ficam para um próximo comentário. Sem mais delongas, gostaríamos de apresentar a tradução de Lima Leitão (facilmente encontrável em sebos nas edições dos Clássicos Jackson), junto com o original, do comecinho do primeiro livro, que envolve a abertura do poema, em clássica tradição épica, e a apresentação da condição de Satã que, com seus comparsas, jaz derrotado no inferno. Mais do que a tradução de Lima Leitão, encontramos também uma tradução esgotada, também do século XIX, do barão e visconde de São Lourenço, Francisco Bento Maria Targini, cujo mesmo trecho eu transcrevi abaixo, com atualização da ortografia. Ao que dá para perceber, a tradução de Targini me parece preferível à de Lima Leitão, primeiramente por conseguir manter algo ainda da sintaxe miltoniana. Lima Leitão toma umas decisões estranhas como, por exemplo, deslocar o “Sing, heavenly Muse” do 6º verso para o primeiro verso, enquanto podemos acreditar que haja motivos estilísticos para Milton adiar o aparecimento da Musa. Além disso ainda, a tradução de Targini consegue ser notavelmente mais concisa que a de Lima Leitão, e os 58 versos desse trecho inicial em inglês em Targini aumentam para 64, mas se tornam 73 em Lima Leitão. Ainda que nós do escamandro, em geral, tentemos manter um mesmo número de versos sempre que possível, é compreensível que essa não seja a maior preocupação numa épica longa em versos brancos sem maior estruturação estrófica, até mesmo por conta das questões de diferenças linguísticas entre inglês e português. No entanto, ao aumentar 15 versos (25%!), é difícil imaginar que não tenha havido diluição do conteúdo poético.

Mas por ora me calo finalmente e deixo que vocês sejam os juízes.

Adriano Scandolara

John Milton, Paradise Lost, Book I, vv. 1-58:

Of Man’s first disobedience, and the fruit
Of that forbidden tree whose mortal taste
Brought death into the World, and all our woe,
With loss of Eden, till one greater Man
Restore us, and regain the blissful seat,
Sing, Heavenly Muse, that, on the secret top
Of Oreb, or of Sinai, didst inspire
That shepherd who first taught the chosen seed
In the beginning how the heavens and earth
Rose out of Chaos: or, if Sion hill
Delight thee more, and Siloa’s brook that flowed
Fast by the oracle of God, I thence
Invoke thy aid to my adventurous song,
That with no middle flight intends to soar
Above th’ Aonian mount, while it pursues
Things unattempted yet in prose or rhyme.
And chiefly thou, O Spirit, that dost prefer
Before all temples th’ upright heart and pure,
Instruct me, for thou know’st; thou from the first
Wast present, and, with mighty wings outspread,
Dove-like sat’st brooding on the vast Abyss,
And mad’st it pregnant: what in me is dark
Illumine, what is low raise and support;
That, to the height of this great argument,
I may assert Eternal Providence,
And justify the ways of God to men.

Say first—for Heaven hides nothing from thy view,
Nor the deep tract of Hell—say first what cause
Moved our grand parents, in that happy state,
Favoured of Heaven so highly, to fall off
From their Creator, and transgress his will
For one restraint, lords of the World besides.
Who first seduced them to that foul revolt?

Nine times the space that measures day and night
To mortal men, he, with his horrid crew,
Lay vanquished, rolling in the fiery gulf,
Confounded, though immortal. But his doom
Reserved him to more wrath; for now the thought
Both of lost happiness and lasting pain
Torments him: round he throws his baleful eyes,
That witnessed huge affliction and dismay,
Mixed with obdurate pride and steadfast hate.

João Milton por Targini, Paraíso Perdido, livro 1, vv. 1-64:

A primeira fatal desobediência
Do homem, e da vedada árvore o fruto,
Cujo gosto mortal ao mundo trouxe
A morte e todas as desgraças nossas,
Co’a perda de Éden, té que um outro homem
Maior nos restaurasse a posse dele;
Canta, celeste Musa, que do oculto
Cimo do Horeb ou do Sinai ditaste
Ao Pastor, que primeiro à raça eleita
Ensinou como foram no princípio
Céus e Terra do Caos levantados!
E se mais te deleita o monte Sion
De Siloé as águas, que avizinham
De Deus o oráculo, Eu de lá invoco
O auxílio teu a meu ousado canto,
Que não com médio voo sublimar-se
Do Aônio monte acima quer, traçando
Ação jamais cantada em prosa, ou verso.
E tu principalmente, ó Divo Esp’rito,
Que preferes aos templos um sincero
E puro coração: Ó tu me inspira,
Pois que antes de haver tempo tudo vias
E qual a Pomba sob as pandas asas
O abismo fecundaste; ora dissipa
Da mente minha as trevas, o que humilde
Tiver levante, afim que altas ideais
Correspondam do assunto à gravidade,
Para que a Providência eterna prove
E de Deus justifique a Lei aos homens.
Dize primeiro, pois que o Céu, e Inferno
Nada pode ocultar-te; a causa dize,
Que moveu nossos pais, de glória cheios,
E do Céu tão queridos, a perderem
Do Criador a graça, transgredindo
Sua vontade num leve preceito;
Do mundo sendo todo já senhores?
Quem primeiro à revolta os seduzira?
O Dragão infernal foi com astúcia,
Por inveja movido, e por vingança,
Quem a mau enganou da humanidade
No tempo em que dos Céus aquele espírito
A soberba expulsara, com as hostes
Dos rebelados Anjos que o seguiram,
E com que pretendera sublimar-se
De seus iguais acima, pressupondo
Do Altíssimo igualar a onipotência,
Se lhe obstasse; movendo ambicioso,
Contra o trono de Deus e monarquia,
Crua guerra no Céu, precipitando de cabeça,
Ardendo em raios das esferas que ara,
Num abismo sem fim de fogo eterno,
Onde atado a grilhão diamantino
Jazerá para sempre atormentado,
Por competir ousar com Deus superno.
Nove sóis, nove noites, aos humanos
O tempo repartira, enquanto rolam
O Espírito infernal e seus sequazes,
Através o ígneo golfo já vencidos,
E em confusão horrível misturados;
Sem lhes valer o ser de imortais entes:
Tal condição ao chefe derrotado
Aumenta muito mais a dor, a raiva,
Vendo agora o bem alto que perdera,
E o tormento sem fim em que jazia.

John Milton por Lima Leitão, Paraíso Perdido, livro 1, vv. 1-73:

Do homem primeiro canta, empírea Musa,
A rebeldia – e o fruto, que, vedado,
Com seu mortal sabor nos trouxe ao Mundo
A morte e todo o mal na perda do Éden,
Até que Homem maior pôde remir-nos
E a dita celestial dar-nos de novo.

Do Orebe ou do Sinai no oculto cimo
Estarás tu, que ali auxílios deste
Ao pastor que primeiro aos escolhidos
Ensinou como do confuso Caos
Se ergueram no princípio o Céu e a Terra?
Ou mais te agrada Sião e a clara Síloe
Que mana ao pé do oráculo do Eterno?
Lá donde estás, invoco o teu socorro
Para este canto meu que hoje aventuro,
Decidido a galgar com voo inteiro
Muito por cima da montanha Aônia,
De assuntos ocupado que inda o Mundo
Tratados não ouviu em prosa ou verso.

E tu mais que ela, Espírito inefável,
Que aos templos mais magníficos preferes
Morar num coração singelo e justo,
Instrui-me porque nada se te encobre.
Desde o princípio a tudo estás presente:
Qual pomba, abrindo as asas poderosas,
Pairaste sobre a vastidão do Abismo
E com almo portento o fecundaste:
Da minha mente a escuridão dissipa,
Minha fraqueza eleva, ampara, esteia,
Para eu poder, de tal assunto ao nível,
Justificar o proceder do Eterno
E demonstrar a Providência aos homens.

Dize primeiro, tu que observas tudo
No Céu sublime, no profundo Inferno,
Dize primeiro a causa irresistível
Que mover pôde os pais da prole humana,
Em tão próspera sina, ao Céu tão caros,
A apostatar de Deus que o ser lhes dera
E a transgredir a lei que lhes ditara,
Sendo só num objeto restringidos,
No mais senhores do universo Mundo:
Quem lhes urdiu a sedução malvada
Que os lançou em tão feia rebeldia?
O Dragão infernal. Com torpe engano,
Por inveja e vinganças instigado,
Ele iludiu a mãe da humana prole,
Lá depois que seu ímpeto soberbo
O expulsara dos Céus coa imensa turba
Dos rebelados anjos, seus consócios.

Confiado num exército tamanho,
Aspirando no Empíreo a ter assento
De seus iguais acima, destinara
Ombrear com Deus, se Deus se lhe opusesse,
E com tal ambição, com tal insânia,
Do Onipotente contra o Império e trono
Fez audaz e ímpio guerra, deu batalhas.
Mas da altura da abóbada celeste
Deus, coa mão cheia de fulmíneos dardos,
O arrojou de cabeça ao fundo Abismo,
Mar lúgubre de ruínas insondável,
A fim que atormentado ali vivesse
Com grilhões de diamante e intenso fogo
O que ousou desafiar em campo o Eterno.

Pelo espaço que abrange no orbe humano
Nove vezes o dia e nove a noite,
Ele com sua multidão horrenda,
A cair estiveram derrotados
Apesar de imortais, e confundidos
Rolaram nos cachões de um mar de fogo.
Sua condenação, porém, o guarda
Para mais fero horror: e vendo agora
Perdida a glória, perenal a pena,
Este duplo prospecto na alma o punge.

2 comentários sobre “Milton e um paraíso mais de uma vez perdido

  1. ACHEI LINDA A TRADUÇÃO DE TARGINI, PRINCIPALMENTE AS QUATRO ÚLTIMAS ESTROFES, E UM POUCO SEM GRAÇA A DE LIMA LEITÃO. ABAIXEI DA INTERNET TODA A TRADUÇÃO DE TARGINI. QUE TRABALHO ESTUPENDO.

    1. Bem verdade, Maria Sylvia. Já passou da hora de fazerem uma reedição da tradução do Targini, incluindo uma atualização ortográfica e tal. Faria bem à popularidade dele, que anda bem em baixa em relação à do Lima Leitão.

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