Dylan Thomas, por José Francisco Botelho

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Em algum momento da década de 1940, o legendário poeta galês Dylan Thomas discerniu a sombra da morte no rosto de seu velho pai. Com a vista comprometida e o corpo alquebrado, o então septuagenário David John Thomas mergulhava gradualmente nas trevas; sendo ateu, não haveria de consolar-se com promessas de um reconfortante além-túmulo. A posição mais prudente, nessas circunstâncias, seria aderir à resignação metafísica: afinal de contas,  sic transit gloria mundi, e não há nada que possamos fazer a respeito. O filho Dylan, contudo, resolveu dar ao pai o conselho oposto; quis instigá-lo a não aceitar coisa alguma e a preparar um valoroso last stand contra a Indesejada das Gentes. E assim nasceu um dos  mais célebres poemas da língua inglesa: Do not go gentle into that good night, publicado em 1951 (David John morreria no ano seguinte).  Trata-se de uma vilanela ‒ forma de 19 versos, em que a primeira e a última linha da estrofe inicial ressurgem ao longo do poema, à maneira de refrão. Frequentador do verso livre, mas formalista no fundo da alma, Thomas usou essa rígida estrutura para criar um desafio musical, simultaneamente vívido e sonoro, à mortalidade humana.  A impressionante força desses versos encontra-se na rejeição de séculos e séculos de sapiência estoica: é preciso ser um gênio da poesia para escoicear a prudência sem recair na bravata. Ao fim da última quadra, sabemos que “as trevas estão certas” ‒ mas que, mesmo assim, devemos nos enfurecer e gritar contra a morte da luz. A força desse paradoxo é o eixo que faz o poema girar, ao infinito.

Na versão abaixo, decidi me ater a dois traços elementares: o rigor formal e o poder cumulativo das imagens. Recriei efeitos de ritmo e aliteração; alterei a métrica; acolhi a rima toante, para dar mais elasticidade ao verso; reconstruí frases, refiz raciocínios; deixei, enfim, que as imagens criassem a si próprias e se digladiassem no vórtice do poema. Não quis me amarrar à letra dos versos, optando por gerar, em nossa língua, um efeito ao menos semelhante ao do original ‒ devolver à ideia da morte sua estranheza ultrajante; e conclamar contra ela, por um momento que seja, a camaradagem universal de todos os mortais.

Não entres mansamente nessa noite funda

Não entres mansamente nessa noite funda.
Que as velhas almas ardem ao findar do dia.
Te insurge em fúria contra o fim da luz, e luta.

Os sábios, mesmo vendo a sombra que triunfa,
Sabendo que sua voz não fulge nem fulmina,
Não entram mansamente nessa noite funda.

Os bravos, ao romper das ondas, não se assustam,
Mas cantam suas proezas na enseada limpa:
Em fúria rugem contra o fim da luz, e lutam.

Os bárbaros, que aos brados catam sol e lua,
E, súbito, lamentam que essa luz se extinga,
Não entram mansamente nessa noite funda.

Os quase mortos ‒ cegos, lúcidos ‒ perscrutam
Clarões dos meteoros cegos da alegria:
Em fúria rugem contra o fim da luz, e lutam.

E tu, meu pai, erguido em tormentosa altura,
Com lágrima feroz me amaldiçoa e guia.
Não entres mansamente nessa noite funda;
Te insurge em fúria contra o fim da luz, e luta.

Do not go gentle into that good night

Do not go gentle into that good night,
Old age should burn and rave at close of day;
Rage, rage against the dying of the light.

Though wise men at their end know dark is right,
Because their words had forked no lightning they
Do not go gentle into that good night.

Good men, the last wave by, crying how bright
Their frail deeds might have danced in a green bay,
Rage, rage against the dying of the light.

Wild men who caught and sang the sun in flight,
And learn, too late, they grieved it on its way,
Do not go gentle into that good night.

Grave men, near death, who see with blinding sight
Blind eyes could blaze like meteors and be gay,
Rage, rage against the dying of the light.

And you, my father, there on the sad height,
Curse, bless, me now with your fierce tears, I pray.
Do not go gentle into that good night.
Rage, rage against the dying of the light.

§

José Francisco Botelho é escritor, tradutor e jornalista. Sua coletânea de contos A árvore que falava aramaico (Zouk, 2011) foi finalista do prêmio Açorianos em 2012.  Para a Companhia das Letras, traduziu Contos da Cantuária e Drácula de Bram Stoker. Escreve para diversas revistas.

6 comentários sobre “Dylan Thomas, por José Francisco Botelho

  1. gostei da tradução.

    Porém, se a ‘rage’ é ‘against the DYING of the light’, não haveria razão pra se insurgir tão furiosamente contra a ‘luz’, ainda q – como bons entendedores – saquemos a ideia. Essa luz poderia ser ‘breu’, ainda que não fique tão bonito…

  2. Na verdade, é “contra o fim da luz”. Ali no primeiro verso teve um soluço de digitação.

  3. esse poema carrega a beleza da dor! no entanto, fico intrigada com a omissão dos termos, ainda que ambíguos, mas religiosos – quiçá intencionais – da última estrofe. Como bless, I pray. Na verdade, considero como o ápice do poema.

  4. Com a sífilis apodrecendo seu cérebro, até Nietzche recuou e desceu do pedestal (o sofrimento é um contraponto; força-nos a prestar uma atenção maior às coisas, que, e, situação de normalidade, não concederíamos).

    É preciso entender o funcionamento do Reino Unido.
    O rei Henrique VIII, para poder trocar de esposa, despachou o Catolicismo (uma inépcia de Roma com a igreja britânica).
    Dessarte, o Anglicanismo é apenas um resultado controlado pelo – e submetido ao – Estado
    (e os ingleses, mais adiante – já no resultado protestante -, chegaram a proibir, por lei, pregações carismáticas em locais públicos dos protestantes, como as do metodista John Wesley, sobre o Inferno).
    Na Escócia os nobres demitiram o Catolicismo mas, prudentemente, para evitar convulsões sociais, inventaram o Presbiterianismo (objetivando, obviamente, o controle social das massas plebeias – toda a cúpula do Presbiterianismo era composta por… nobres!).

    Entre as melhores ordens monásticas católicas constava justamente as do monasticismo britânico;
    E a Nobreza não teve piedade em anular as universidades tradicionais dirigidas pelos monásticos – as quais seguiam o modelo da Europa continental, vindo desde a Idade Média).

    Os britânicos são divididos entre cristãos/pró-cristãos e não-cristãos (neutros ou desfavoráveis ao “cristianismo”).
    A controvérsia cristã dos britânicos se faz em cima de resultados cristãos modernistas criados por eles mesmos – e, a meu ver, em decorrência disto, esvaziados de conteúdo (Anglicanismo e Presbiterianismo) ou fundamentalistas (batistas, quakers, etc).
    De modo que, ante a situação de fato do “Cristianismo” britânico – a meu ver o “Cristianismo” britânico trata-se de um “natimorto”, algo falido – , eu não consigo nem mesmo brigar com Dylan Thomas, se ele não quer que o pai aceite algum consolo, ante a proximidade do fim da jornada… Somente que, do ponto de vista metafísico, é melhor viver com o que é – com as coisas como elas são – mas isto implica não justificá-las….
    Talvez, seu ateísmo (entendido aqui como ateísmo cristão) tenha sua origem, justamente, na controvérsia interna entre os britânicos…
    E, no final, jantamos juntos, vamos às festas de noivado, formatura, casamento e funerais…
    Ah, esses britânicos,,,

  5. NÃO ENTRE NESSA BOA NOITE ASSIM BOM MOÇO

    Não entre nessa boa noite assim bom moço.
    A velhice precisa arder no fim do dia.
    Afronte, afronte a luz que morre pouco a pouco.

    Embora ao sábio soe certo achar-se morto,
    Sabendo que não teve o que reluziria,
    Não entra nessa boa noite assim bom moço.

    O bom, que à derradeira vaga chora o fogo
    Que ainda dançaria frágil nas baías,
    Afronta, afronta a luz que morre pouco a pouco.

    O doido que cantava o sol em pleno voo
    E muito tarde soube o que no sol doía
    Não entra nessa boa noite assim bom moço.

    O sério, quase morto, vendo – o olhar já fosco –
    Que é meteoro o olho cego na alegria,
    Afronta, afronta a luz que morre pouco a pouco.

    E você, pai, aí desse seu triste topo,
    Agora me abençoe e execre, eu pediria.
    Não entre nessa boa noite assim bom moço.
    Afronte, afronte a luz que morre pouco a pouco.

    (trad. rodrigo madeira)

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