3 poemas de Marianne Moore

Marianne Moore é uma dessas grandes figuras da poesia modernista norteamericana. Nascida em 1887, sua geração é a mesma que produziu Wallace Stevens, William Carlos Williams, Ezra Pound, T. S. Eliot e os caçulas Hart Crane & e. e. cummings – tempos em que definitivamente não era fácil se destacar como poeta. E, sendo uma das poucas mulheres nesse meio, não é surpreendente o fato de que ela seria uma grande referência para futuras poetas, como Elizabeth Bishop, amiga pessoal de Moore e visivelmente influenciada por sua poesia, como acredito que seja observável nos poemas que selecionei aqui. Além de Bishop, ela também influencia poetas tão distintos quanto W. H. Auden e, no Brasil, João Cabral de Melo Neto.

Em 1915, Moore começa a publicar seus poemas em revistas célebres como a Poetry e a The Egoist, editada por Ezra Pound. Em 1918, ela se muda para a Inglaterra e lá publica, em 1921, seu primeiro livro, Poems. A ele se segue, em 1924, seu segundo volume, Observations, ganhador do prêmio Dial (que havia premiado Eliot em 22 e mais tarde premiaria gente como cummings, Williams e Pound), promovido pela revista literária The Dial, para a qual Moore  acabou trabalhando como editora entre 1925 e 1929. Já morando de volta nos EUA, em 1935, ela publica sua antologia Selected Poems, com introdução de Eliot, que a apresentaria a um público maior. Mais tarde ela escreveria ainda mais alguns volumes de poemas, ensaios críticos e uma tradução poética completa das fábulas de La Fontaine, ganhando também mais uma boa dúzia de prêmios literários no caminho.

Marianne Moore, no entanto, não foi muito traduzida por essas bandas. O único volume de traduções de Moore de que tenho notícia é a antologia organizada por João Moura Jr. e traduzida por José Antonio Arantes, publicada originalmente pela Companhia das Letras em 1991, intitulada simplesmente Poemas. E, se podemos confiar no que diz sua contracapa, esse é o primeiro livro a reunir a poesia dela em português – e, infelizmente, se encontra esgotado (com os volumes restantes em sebos a uma dolorosa média de 50 reais cada).

Os 3 poemas que selecionei aqui têm em comum, além de uma temática marinho-aquática, uma discussão acerca das relações entre vida e morte, natureza e artificialidade, permanência e efemeridade, que surgem à tona dessas reflexões acerca de coisas simples como um cisne de porcelana num candelabro Luís XV (e os versos entre aspas são uma citação direta de um artigo da New York Times Magazine de maio de 1931 sobre a peça) e dois momentos de observação do mar – um puramente natural, observando a interação entre os abismos, a água, o leito do mar e suas criaturas, e a outra, com a interação do homem com o mar. E, tingindo essas observações, está o olhar distinto de Moore sobre as coisas, um olhar que vê uma imagem potencialmente brega, clichê, tranquilizadora como o mar como sendo, na verdade, feito um túmulo e dotado de violência, com peixes passando com dificuldade por um “jade baço” (uma imagem bastante incomum) e mexilhões se enterrado numa areia, que é feita de cinzas. A brutalidade, porém, não é o foco desses poemas e eles deixam transparecer beleza mesclada com essa selvageria.

Essa seleção de poemas também demonstra algo da variação técnica de Moore – mais um exemplo dos experimentos formais dos modernistas. Era uma marca dela escrever no que se chama “syllabics” em inglês, que é parecido com o funcionamento métrico da poesia em português, com contagem silábica por verso, exceto que a nossa métrica leva em consideração tonicidade (lembrando que a poesia inglesa costuma trabalhar com pés métricos, em vez disso), enquanto os “syllabics” permitem a presença de estranhezas como um verso composto por um “the” ou “an” átono e solitário. Os poemas “No Swan So Fine” e “The Fish” são exemplos dessa metrificação, com o primeiro poema composto de 2 estrofes de versos de  7, 8, 6, 8, 8, 5 e 9 sílabas, com rimas apenas entre o 2º e o 5º versos de cada estrofe, e o segundo poema, de 8 estrofes de versos de 1, 3, 9, 6 e 9 sílabas (com os primeiros 4 versos de cada estrofe com 2 rimas emparelhadas cada). Já “A Grave” é em versos livres e sem rima. Fora isso, também destacamos o uso do enjambément radical (banal atualmente, mas certamente estranho à época, com quebras em artigos como “the”) e as quebras silábicas de versos (como em “ac-/cident lack” em “The Fish”), muito ao gosto de Augusto de Campos, que tentei reproduzir, juntamente com o uso estranho do vocabulário.

O Guilherme me concedeu bondosamente o volume dele da tradução de José Arantes, e verifiquei que os 3 poemas que eu selecionei aqui, por coincidência (ou não, afinal, são 3 poemas algo famosos) foram publicados em sua tradução. Transcrevo-os abaixo, então, juntamente com as minhas traduções –  e, assim, poderemos ver como, curiosamente, as soluções escolhidas por nós dois foram bastante distintas.

Adriano Scandolara

Que Cisne É Belo

“Que água é calma como as fontes
     mortas de Versalhes.” Que cisne,
de olhar cego em soslaio e
pé gondoleiro, é belo como o
     de chinfrim porcelana e tisne
no olhar e ouro dentado
na coleira a mostrar quem lhe é o dono.

Cravado à árvore-lucerna
     de Luís Quinze com botões de uma
cor de crista de galo,
dálias, ouriços, semprevivas,
     ele se empoleira na espuma
de esculpidas, polidas
flores – calmo, alto. O rei é morto.

Tradução de Adriano Scandolara

Não Há Cisne Tão Lindo

“Não há água tão quieta quanto as
     fontes mortas de Versailles.” Não há cisne,
de olhar cego bistre oblíquo
e pernas gondoleantes, tão lindo
     quanto o de louça com chintz,
de olhos cor de corça e coleira
de ouro denteada a indicar de quem foi.

Alojado no candelabro de
     Luís XV, com botões de matiz de
crista-de-galo, com dálias,
ouriços-do-mar e sempre-vivas,
     no mar de ramalhetes de
polidas e esculpidas flores
ele pousa – livre e altivo. O rei é morto.

Tradução de José Antonio Arantes

No Swan So Fine

“No water so still as the
     dead fountains of Versailles.” No swan,
with swart blind look askance
and gondoliering legs, so fine
     as the chinz china one with fawn-
brown eyes and toothed gold
collar on to show whose bird it was.

Lodged in the Louis Fifteenth
     candelabrum-tree of cockscomb-
tinted buttons, dahlias,
sea-urchins, and everlastings,
     it perches on the branching foam
of polished sculptured
flowers–at ease and tall. The king is dead.

Marianne Moore

O Cardume de Peixes

passa o
jade baço.
               Dentre os mexilhões de um azul-gralha,
               um ajusta a borralha;
                            se abre e cerra, um leque que houvesse

sido,
pois, ferido.
               A craca encrusta os lados da onda,
               embora não a esconda
                            lá, que o feixe imerso de dardos do

sol,
como o rol
               de vidro em fibra, veloz fulgura
               por cada rachadura –
                            entrando e saindo, iluminando

o
mar azul-
               -turquesa de corpos. A água crava
               férrea cunha na trava
                            férrea do penhasco; onde os astros,

rosas
grãos de arroz, as
               tintas águas-vivas, o siri
               qual verde lírio e
                            cogumelos marinhos deslizam.

As
máculas
               de abusos estão presentes nisso,
               esse audaz edifício-
                            toda característica física

de a-
-cidente há-
               a ausente cornija, as queimaduras,
               machadadas, ranhuras
                            de bombas se destacam; morreu a

fossa,
que reforça
               todas as provas de que ele vive
               do ser que não revive
                            seu viço. Envelhece o mar nisso.

Tradução de Adriano Scandolara

Os Peixes
vade-
ando negro jade.
               Das conchas azul-corvo, um marisco
               só ajeita os montes de cisco;
                                 no que vai se abrindo e fechando

é que
nem ferido leque.
               Os crustáceos que incrustam o flanco
               da onda ali não encontram canto,
                                 porque as setas submersas do

sol,
vidro em fibras sol-
               vidas, passam por dentro das gretas
               com farolete ligeireza –
                                 iluminando de vez em

vez
o oceano turquês
               de corpos. A correnteza crava
               na quina férrea da fraga
                                 uma cunha de ferro; e estrelas,

grãos
de arroz róseos, mães-
               d’água tintas, siris que nem lírios
               verdes e fungos submarinos
                                 vão deslizando uns sobre os outros.

As
marcas externas
               de mau-trato estão todas presentes
               neste edifício resistente –
                                 todo resquício material

de a-
-cidente – ausência
               de cornija, machadadas, queima e
               sulcos de dinamite – teima em
                                 ressaltar; já não é o que era

cova.
Repetida prova
               demonstrou que ele pode viver
               do que não pode reviver
                                 seu viço. O mar nele envelhece.

Tradução de José Antonio Arantes

The Fish

wade
through black jade.
               Of the crow-blue mussel-shells, one keeps
               adjusting the ash-heaps;
                                 opening and shutting itself like

an
injured fan.
               The barnacles which encrust the side
               of the wave, cannot hide
                                 there for the submerged shafts of the

sun,
split like spun
               glass, move themselves with spotlight swiftness
               into the crevices—
                                 in and out, illuminating

the
turquoise sea
               of bodies. The water drives a wedge
               of iron through the iron edge
                                 of the cliff; whereupon the stars,

pink
rice-grains, ink-
               bespattered jelly fish, crabs like green
               lilies, and submarine
                                 toadstools, slide each on the other.

All
external
               marks of abuse are present on this
               defiant edifice—
                                 all the physical features of

ac-
cident—lack
               of cornice, dynamite grooves, burns, and
               hatchet strokes, these things stand
                                 out on it; the chasm-side is

dead.
Repeated
               evidence has proved that it can live
               on what can not revive
                                 its youth. The sea grows old in it.

Marianne Moore

Um Túmulo

Homem olhando o mar,
roubando a vista de quem tem tanto direito à ela quanto você mesmo,
é da natureza humana ficar no meio de alguma coisa,
mas não se pode ficar no meio disto;
o mar não tem nada para dar senão um bem cavado túmulo.
Os abetos repousam em procissão, cada um com a esmeralda de capins em touceira na copa,
reservados como os seus contornos, sem nada dizer;
a repressão, no entanto, não é a mais óbvia característica do mar;
o mar é um colecionador, rápido em devolver um olhar rapace.
Há outros além de você que vestiram esse mesmo olhar –
cuja expressão não é mais um protesto; os peixes não mais os investigam
pois não restaram seus ossos:
os homens baixam as redes, sem saber do fato de que estão profanando um túmulo,
e vão embora remando depressa – as lâminas dos remos
juntas se deslocam como os pés de aranhas d’água, como se a morte fosse algo que não existisse.
As rugas progridem entre si numa falange – belas sob redes de espuma,
e somem sem ar enquanto o mar farfalha nas algas;
as aves nadam pelo ar em máxima velocidade, assobiando como outrora –
o casco da tartaruga flagela os pés dos penhascos, em movimento sob elas;
e o oceano, sob o pulso dos faróis e o ruído dos sinos das boias,
avança como sempre, parecendo não ser aquele mesmo oceano em que as coisas que caem são fadadas a afundar –
em que, se elas se viram e se torcem, é sem volição e tampouco consciência.

Tradução de Adriano Scandolara

Uma Cova

Homem mirando o mar,
tirando a visão daqueles que têm tanto direito a ela quanto você tem,
é da natureza humana ficar no meio das coisas,
mas no meio desta você não pode ficar.
o mar nada tem a dar a não ser uma cova bem cavada.
Os abetos se erguem em procissão, cada qual com um pé de peru esmeralda no alto,
discretos como seus contornos, dizendo nada;
repressão, no entanto, não é a mais óbvia característica do mar;
o mar é um coletor, pronto para devolver um olhar rapace.
Outros fora você ostentaram este olhar –
cuja expressão não é mais um protesto; os peixes não mais o investigam
porque seus ossos não sobreviveram:
os homens lançam redes, inconscientes de que profanam uma cova,
e partem vogando velozes – as pás dos remos
movendo-se juntas que nem patas de aranhas-aquáticas, como se não existisse a morte.
Os franzidos das águas marcham em falange – belos sob as malhas de espuma,
e somem arfando enquanto o mar vai e vem bramindo entre as plantas marinhas;
os pássaros cruzam o ar num zás, soltando guinchos como dantes –
a concha da tartaruga açoita os pés das rochas, em movimento embaixo delas;
e o oceano, sob a pulsação de faróis e ruídos de bóias sonoras,
avança como sempre, como se não fosse o oceano no qual as coisas que caem estão fadadas a afundar –
no qual, se se viram e reviram, é sem vontade e sem consciência.

Tradução de José Antonio Arantes

A Grave

Man looking into the sea,
taking the view from those who have as much right to it as you have to it yourself,
it is human nature to stand in the middle of a thing,
but you cannot stand in the middle of this;
the sea has nothing to give but a well excavated grave.
The firs stand in a procession, each with an emerald turkey-foot at the top,
reserved as their contours, saying nothing;
repression, however, is not the most obvious characteristic of the sea;
the sea is a collector, quick to return a rapacious look.
There are others besides you who have worn that look
whose expression is no longer a protest; the fish no longer investigate them
for their bones have not lasted:
men lower nets, unconscious of the fact that they are desecrating a grave,
and row quickly away — the blades of the oars
moving together like the feet of water-spiders as if there were no such thing as death.
The wrinkles progress among themselves in a phalanx – beautiful under networks of foam,
and fade breathlessly while the sea rustles in and out of the seaweed;
the birds swim throught the air at top speed, emitting cat-calls as heretofore
the tortoise-shell scourges about the feet of the cliffs, in motion beneath them;
and the ocean, under the pulsation of lighthouses and noise of bell-buoys,
advances as usual, looking as if it were not that ocean in which dropped things are bound to sink
in which if they turn and twist, it is neither with volition nor consciousness.

Marianne Moore

6 comentários sobre “3 poemas de Marianne Moore

  1. Lindo! Gostei.
    Achei bastante interessante a vida de Marianne Moore quando a li em uma barsa, fiquei curiosa e quis saber mais a reispeito. Eu sou poetisa, ainda estou dando meus primeiros passos nesse incrível mundo da poesia, e procuro saber mais e mais da vida de mulheres como a Marianne, e até me identifico com ela, da forma como ela escreve tão voraz e vívida retratando vida e morte, eu também adoro explorar isso em meus poemas. Parabéns !

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