salvatore quasimodo (Sicília, 1901-68) ainda não é muito conhecido por aqui, mas tem sobre sua obra uma aura poética imponente, construída a partir de uma poesia de absoluta beleza e simplicidade. parte da crítica disse: quasimodo é a década de trinta. um exagero, certamente. afinal, se em 32 sai o enigmático oboè sommerso, é no ano seguinte que ungaretti nos brinda com sentimento del tempo. é, também, no mesmíssimo 32 que sai isola de alfonso gatto, um hermetismo surreal; e é de 28 a 39 que montale escreve le occasioni e de 30 a 40 que pavese se dedica a lavorare stanca.
mas ainda que a crítica tenha exagerado, quasimodo de fato se diferencia dos ditos herméticos e foge ao enquadramento fácil. se o hermetismo – que vinha se afirmando mais como um modo fragmentário de se fazer poesia do que como escola ou movimento – era a desforra da palavra sobre a ação, o obscurecimento do significado por uma linguagem que criava a expressão do eu e do indizível, sublimado da essencialidade formal, quasimodo não era apenas isso. o hermetismo quasimodiano cria quase uma religião da palavra, eliminando artigos, isolando substantivos em versos breves, suspendendo verbos com elisões, ou seja, uma forma de poesia tão absoluta que transfigura tudo em palavra poética – uma névoa, uma sombra, uma cadência musical.
em 42 quasimodo junta suas nuove poesie, produzidas entre 36 e 42, aos três primeiros livros, numa edição intitulada ed è subito sera. as novas poesias já apontam uma tentativa de aproximação à realidade, a uma reação antihermética, com as palavras tomando contornos mais discursivos. contudo é em 40, com a tradução de suas lirici greci, que nasce a nova poesia quasimodiana, com uma maior abertura à vida e ao cotidiano. as lições dos gregos se mesclam, se unem, amalgamam com outras lições contemporâneas e igualmente atrozes e funestas. é disso que surge o novo quasimodo, com uma “poesia lírica que com o fogo clássico expressa a trágica experiência da vida em nosso tempo”, como diz a motivação do nobel em 59.
vale lembrar ainda que o poeta se dedicou à tradução: além dos líricos gregos, verteu também alguns carmina do catulo, teatro de shakespeare e molière, e poesia de neruda e cummings.
ernesto von artixzffski
* * *
RIDE LA GAZZA, NERA
SUGLI ARANCI
Forse è un segno vero della vita:
intorno a me fanciulli con leggeri
moti del capo danzano in un gioco
di cadenze e di voci lungo il prato
della chiesa. Pietà della sera, ombre
riaccese sopra l’erba cosí verde,
bellissime nel fuoco della luna!
Memoria vi concede breve sonno;
ora, destatevi. Ecco, scroscia il pozzo
per la prima marea. Questa è l’ora:
non più mia, arsi, remoti simulacri.
E tu vento del sud forte di zàgare,
spingi la luna dove nudi dormono
fanciulli, forza il puledro sui campi
umidi d’orme di cavalle, apri
il mare, alza le nuvole dagli alberi:
giá l’airone s’avanza verso l’acqua
e fiuta lento il fango tra le spine,
ride la gazza, nera sugli aranci.
(Ed è subito sera, 1942)
RI O CORVO, NEGRO
SOBRE AS LARANJEIRAS
Talvez seja um signo verdadeiro da vida:
ao meu redor meninos com ligeiros
movimentos de cabeça dançam num jogo
de cadência e vozes ao longo do prado
da igreja. Piedade da tarde, sombras
reacesas sobre a grama tão verde,
belíssimas ao fogo da lua!
Memória vos concede breve sono;
Agora, desperta! Aqui, despejado o poço
pela primeira maré. Esta é a hora:
não mais minha, ársis, remotos simulacros.
E tu vento do sul forte de azares
empurra a lua onde dormem desnudos
meninos, força o potro aos campos
úmidos de passos de cavalos, abre
o mar, levanta as nuvens das árvores:
já a garça avança para a água
e fareja, lenta, o barro entre os espinhos,
ri o corvo, negro sobre as laranjeiras.
RIPOSO DELL’ERBA
Deriva di luce; labili vortici,
aeree zone di soli,
risalgono abissi: apro la zolla
ch’è mia e m’adagio. E dormo:
da secoli l’erba riposa
il suo cuore con me.
Mi desta la morte:
piú uno, piú solo,
battere fondo del vento:
di notte.
(Òboe sommerso, 1930)
REPOUSO DO CAMPIM
Deriva da luz; lábeis vórtices,
aéreas zonas de sóis,
ressobem abismos: abro a gleba
que é minha e me alento. E durmo:
por séculos o capim repousa
seu coração com o meu.
Me excita a morte:
mais um, mais só,
bater fundo no vento,
à noite.
ED È SUBITO SERA
Ognuno sta solo sul cuor della terra
trafitto da un raggio di sole:
ed è subito sera.
(Acque e terre, 1930)
E DE REPENTE É NOITE
Todos estão sós sobre o centro da terra
furados por um raio de sol:
e de repente é noite.
BASTA UN GIORNO
A EQUILIBRARE IL MONDO
L’intelligenza la morte il sogno
negano la speranza. In questa notte
a Brasov nei Carpazi, fra alberi
non miei cerco nel tempo
una donna d’amore. L’afa spacca
le foglie dei pioppi ed io
mi dico parole che non conosco,
rovescio terre di memoria.
Un jazz buio, canzoni italiane
passano capovolte sul colore degli iris.
Nello scroscio delle fontane
s’è perduta la tua voce:
basta un giorno a equilibrare il mondo.
BASTA UM DIA
PARA EQUILIBRAR O MUNDO
A inteligência a morte o sonho
negam a esperança. Nesta noite
em Brasov, nos Cárpatos, entre árvores
não minhas, busco no tempo
uma mulher de amor. O calor sufoca
as folhas dos álamos e eu
me digo palavras que não conheço,
reviro terras da memória.
Um jazz escuro, canções italianas
passam invertidas sob as cores dos arcos-íris.
No rugido das fontes
perdeu-se tua voz:
basta um dia para equilibrar o mundo.
(poemas de salvatore quasimodo, traduções de ernesto von artixffski)
belíssimo! me encheu os olhos.