reverlaine, despudor: “les amies” por leo gonçalves

o post passado, feito por adriano scandolara, em homenagem ao aniverário de 168 anos de paul verlaine me fez pensar imediatamente em leo gonçalves. lembro o dia em que o conheci em bh, na livraria-editora crisálida, como o tradutor do doente imaginário de molière & da poesia de blake, mas principalmente como o tradutor de poemas eróticos, les amies, de verlaine ainda sem publicação (havia pouco, eu tinha lido a perdida versão da jahn pela brasiliense).

em resumo, pra mim, foi a melhor das primeiras impressões. vi aquelas traduções na época, tão suaves e sonoras, ouso dizer delicadas, na formulação, pra nunca mais: ele sampou, eu curitibei, não sei bem em qual ordem. & só o verlaine do scandolara é que me engatilhou a memória (finjamos um madeleine com chá, cruzei as pernas, ajustei meus óculos e cofiei o bigode), que se agraciou de receber do leo suas traduções, que vão aqui pra vocês.

ps: leo além de também ter publicado traduções de juan gelman (isso, em parceria com andityas soares de moura) e gerenciar o blog salamalandro, também é poeta, e já lançou dois livros próprios: o levíssimo das infimidades (2004) e wtc babel s.a. (2008), que muito, mas muito mesmo me impressionou. quem sabe um dia não nos agracia também com poesia própria neste humilde blog…

guilherme gontijo flores

LES AMIES, SCÈNES D’AMOUR SAPHIQUE
AS AMIGAS – CENAS DE AMOR SÁFICO

I. Sur le Balcon

Toutes deux regardaient s’enfuir les hirondelles:
L’une pâle aux cheveux de jais, et l’autre blonde
Et rose, et leurs peignoirs légers de vieille blonde
Vaguement serpentaient, nuages, autour d’elles.

Et toutes deux, avec des langueurs d’asphodèles,
Tandis qu’au ciel montait la lune molle et ronde,
Savouraient à longs traits l’émotion profonde
Du soir et le bonheur triste des coeurs fidèles.

Telles, leurs bras pressant, moites, leurs tailles souples,
Couple étrange qui prend pitié des autres couples,
Telles, sur le balcon, rêvaient les jeunes femmes.

Derrière elles, au fond du retrait riche et sombre,
Emphatique comme une trône de mélodrames
Et plein d’odeurs, le Lit, défait, s’ouvrait dans l’ombre.

I. Na sacada

Olhavam juntas o arribar das andorinhas.
Uma, branca, os cabelos de azeviche; loura
e rosa, a outra, e os penhoares de senhora
serpeavam sinuosos na pele das meninas.

E as duas, com uma volúpia asfodelina,
Enquanto, oval e mole, ia a lua lá fora,
Saboreavam profundas a emoção da hora
E dos amores fiéis a doce-triste sina.

Assim, úmidas, braços dados, finos talhes,
Estranho par que causa pena aos outros pares,
Na sacada, sonhavam essas jovens damas.

E atrás, ao fundo, no aposento escuro, alumbra,
Enfática qual ecoar de melodramas,
A Cama (ar e aroma), desfeita, na penumbra.

II. Pensionnaires

L’une avait quinze ans, l’autre en avait seize;
Toutes deux dormaient dans la même chambre.
C’était par un soir très lourd de septembre:
Frêles, des yeux bleus, deus rougeurs de fraise.

Chacune a quitté, pour se mettre à l’aise,
La fine chemise au frais parfum d’ambre.
La plus jeune étend les  bras, et se cambre,
Et as soeur, les mains sur ses seins, la baise,

Puis tombe à genoux, puis devient farouche
Et tumultuose et folle, et sa bouche
Plonge sous l’or blonde, dans les ombres grises;

Et l’enfant, pendant ce temps-là, recense
Sur ses doigts mignons des valses promises,
Et, rose, sourit avec innocence.

II. As pensionistas

Uma tinha quinze, a outra dezesseis;
Dormiam no mesmo quarto. E no ar de
Outono caía, pesada, a tarde.
Olhos azuis, frágeis e a tenra tez.

Tiram, para estar mais à vontade,
A fina camisa de âmbar francês.
A mais nova espreguiça, e por sua vez,
Sua irmã lhe beija, e com a mão a invade.

Cai de joelhos, tumultuosa e louca;
E com ar selvagem, afunda a boca
No seu ouro louro, nas cinzas frestas.

E a criança, ao mesmo tempo, avalia,
Nos dedos singelos, valsas promessas,
E rosa, sorri, com inocência pia.

III. Per Amica Silentia

Les longs rideaux de blanche mousseline
Que la lueur pâle de veilleuse
Fait fluer comme une vague opaline
Dans l’ombre mollement mystérieuse,

Les grands rideaux du grand lit d’Adeline
Ont entendu, Claire, ta voix rieuse,
Ta douce voix argentine et câline
Qu’une autre voix enlace, furieuse.

“Aimons, aimons!” disaient vos voix melées,
Claire, Adeline, adorables victimes
Du noble voeu de vos âmes sublimes.

Aimez, aimez! Ô cheres Esseulées,
Puisqu’en ces jours de malheur, vous encore,
Le glorieux Stigmate vous décore.

III. Per amica silentia

Os cortinões de branca musselina
Que uma leve luz de pálida vela
Faz fluir como uma vaga opalina
Na sombra misteriosamente bela,

Os cortinões do leito de Adelina
Ouviram, Clara, tua voz sincera
A tua doce voz, argentina e fina,
Que uma outra voz enlaça feito fera.

“Amemos!” Eis suas falas misturadas,
Oh, Clara, Adelina, adoráveis vítimas
Da nobre sina de suas almas íntimas.

Amai, Amai! Queridas Insuladas!
Pois mesmo a vós, nesses tempos de azar,
O glorioso Estigma vem decorar.

IV. Printemps

Tendre, la jeune femme rousse,
Que tant d’innocence émoustille,
Dit à la blonde jeune fille
Ces mots, tout bas, d’une voix douce:

“Sève qui monte et fleur qui pousse,
Ton enfance est une charmille:
Laisse errer mes doigts dans la mousse
Où le bouton de rose brille,

“Laisse-moi, parmi l’herbe claire,
Boire les gouttes de rosée
Dont la fleur tendre est arrosée, –

“Afin que le plaisir, ma chère,
Illumine ton front candide
Comme l’aube l’azur timide.”

IV. Primavera

Terna, essa ruivinha donzela,
Que tanta inocência nos intriga,
Diz baixinho a sua loira amiga,
Essas palavras, a capela:

“Seiva que ergue e flor que anela,
Tua infância de magia instiga:
Deixa errar minha mão que irriga
O jardim da rosa mais bela.

“Deixa, no meio da erva clara,
Que eu beba as gotas do rocio
Esparsas no broto macio,

“Pra que o prazer, ó minha cara,
Te ilumine o rosto donzel
Como a aurora o tímido céu.”

V. Été

Et l’enfant répondit, pâmée
Sous la fourmillante caresse
De as pantelante maîtresse:
“Je me meurs, ô ma bien-aimée!

“Je me meurs; ta gorge enflammée
Et lourde me soûle et m’oppresse;
Ta forte chair d’où sort l’ivresse
Est étrangement parfumée;

“Elle a, ta chair, le charme sombre
Des maturités estivales, – 
Elle en a l’ambre, elle en a l’ombre;

“Ta voix tonne dans les rafales
Et ta chevelure sanglante
Fuit brusquement dans la nuit lente.”

V. Verão

E a jovem responde, pasmada,
Sob a carícia pululante
Dessa sua ansiosa amante:
“Eu morro, ó minha bem-amada

“Eu morro; teu colo me embriaga
E me oprime por um instante,
Tua forte carne inebriante
É estranhamente perfumada;

“Ela tem a delícia redonda
das madurezas estivais, –
possui ambos: âmbar e sombra;

“Tua voz troveja em vendavais,
E a cabeleira carmesim
Se esconde na noite sem fim.”

VI. Sappho

Furieuse, les yeux caves et les seins roides,
Sappho, que la langueur de son désir irrite,
Comme une louve court le long des grèves froides,

Elle songe à Phaon, Oublieuse du Rite,
Et, voyant à ce point ses larmes dédaignées,
Arrache ses cheveux immenses par poignées;

Puis elle évoque, en des romords sans accalmies,
Ces temps où rayonnait, pure, la jeune gloire
De ses amours chantés en vers que la mémoire
De l’âme va redire aux vierges endormies:

Et voilà qu’elle abat ses paupières blêmies
Et saute dans la mer où l’apelle la Moire, –
Tandis qu’au ciel éclate, incendiant l’eau noire,
La pâle Séléné qui venge les Amies.

VI. Safo

Olhos fundos, rígido seio, envolta em fúria,
Safo, a que na volúpia do desejo se atiça.
Como loba que corre pela praia escura,

Deseja Faon, já do Rito esquecidiça,
E ao ver naquele instante o desdenhoso pranto,
Arranca a cabeleira, pálida de espanto.

Em seguida ela evoca (o remorso a fustiga)
O tempo em que irradiava a jovem e pura glória
Do amor cantado em versos para que a memória
Da alma, às virgens dormentes, pra sempre rediga.

E eis que abate as pálpebras plenas de fadigas
E lança-se no mar onde lhe chama a Moira, –
E surge pois no céu, nesta parte da história,
Selene que incendeia o mar, e vinga as Amigas.

NOTAS AOS POEMAS

Na sacada

1. Asfodelinas: de asphodelus, designação comum às plantas da família das asfodeláceas, nativas do Mediterrâneo, cultivadas como ornamentais.)

Per Amica Silentia

1. O título um tanto sinestésico deste poema é o verso 21, do Livro II da Eneida de Virgílio: “a Tenedo, tacitae per amica silentia lunae [a Tenedo, sob a silente amiga lua]”.

2. O imperativo que inicia o 9º verso, ecoa o primeiro da “Carmina V” de Catullus: “Uiuamos, mea lesbea, atque amemus.”

Safo

1. Reza a lenda que Faon, jovem rapaz nascido na ilha de Lesbos, recebera como presente de Afrodite uma beleza sem igual. Safo, devota dos ritos da deusa, teria se apaixonado intensamente pelo jovem que, por sua vez, a desdenhou, fugindo para a Sicília. Ela o teria perseguido até a Leucádia onde, inconformada e enlouquecida, lançou-se ao mar do alto do monte Leucas. Na “Epístola XV das Heroidas, Ovídio conta que uma náiade, vendo o sofrimento da poeta, teria-lhe convidado, afirmando que as águas da daquele lugar possuíam a virtude de aliviar o coração das paixões arrebatadoras. Baudelaire também evoca esta lenda em seu poema intitulado “Lesbos”.

2. Selene: A personificação grega da lua.

(tradução e notas, leo gonçalves)

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