jean-pierre lemaire (1948)

jean-pierre lemaire, fotógrafo desconhecido
jean-pierre lemaire, fotógrafo desconhecido

nascido em 1948, na cidade de sallaches, o poeta jean-pierre lemaire (que hoje leciona letras no khâgne, uma espécie de pré-vestibular francês) ainda é um ilustre desconhecido no brasil. sua poesia – pouca em quantidade – tem sido bastante valorizada na frança nos últimos anos. seus 9 livros de poesia são: les marges du jour (1981), l’exode et la nué (1982), visitation (1985), le coeur circoncis (1989), le chemin du cap (1993), l’annonciade (1997), l’intérieur du monde (2002), figure humaine (2008) & faire place (2013).

nestas terras tenho conhecimento de apenas 3 traduções diversas, que ao todo somam menos de 50 textos. 1 poema por brgitta lagerblad & moarcy félix na revista poesia sempre de 1995; 1o poemas na importantíssima antologia poetas de frança hoje: 19451995 editada & traduzida por mário laranjeira em 1996; & um belo livrinho, poemas, dedicado exclusivamente a lemaire, com seleção & tradução de júlio castañon guimarães, que fez o grande favor de me apresentar a obra desse poeta.

é curioso notar como a obra de lemaire se permite a várias abordagens bastante diversas, sem perder o seu peso. nesse momento, os projetos tradutórios demonstram sua força como ferramentes de criação & de crítica, capazes de moldar uma imagem do poeta fora de sua língua. na edição de laranjeira, o tradutor dá bastante ênfase ao catolicismo de lemaire, com enfoque na sua crueza e “profunda humildade, vizinha do silêncio”; ou seja, numa poesia de fundo religioso, porém voltada para a mortalidade do cotidiano. já castañon guimarães volta seu interesse para a construção de paisagens & a importância do seu olhar sobre as artes plásticas (dois temas caros ao próprio tradutor, como já tratei num post aqui no blog). é na convergência desses dois pontos (sua profunda humanidade cristã focada no mundo real & o centramento no olhar poético) com uma certa musicalidade minimalista que sua obra marca um lugar determinado na poesia francesa. como exemplo desse encontro entre olhar & fé, temos “la vierge au buisson de roses”, uma ecfrase da pintura de martin schongauer, feita em 1473, que está hoje em colmar.

escolhi 5 poemas, transcritos abaixo: 2 traduções de mário laranjeira tirada do início da carreira, 2 de júlio castañon guimarães de livros mais recentes & 1 minha, que fiz do último livro, lançado este ano, ainda sem traduções.

guilherme gontijo flores

jean-pierre lemaire, desenho de jacques basse
jean-pierre lemaire, desenho de jacques basse

Quando te é dado ver a vida
já não apenas sob o céu
mas como através dele
(adivinhas então a existência
de um segundo céu em transparência
e até por vezes de um terceiro)
podes suportar o grito do choupo
o olhar dos ofendidos
e tua própria história
como se a memória nessa profundeza
tomasse a cor da misericórdia
tal como o ar se torna azul…

(de les marges du jour, trad. de mário laranjeira)

Quand il t’est donné de voir cette vie
non plus seulement sous le ciel
mais comme à travers lui
(tu devines alors l’existence
d’un second ciel en transparence
et même parfois d’un troisième)
tu peux supporter le cri du peuplier
les yeux des offensés et ta propre histoire
comme si la mémoire à cette profondeur
prenait la couleur de la miséricorde
de même que l’air devient bleu…

O papagaio

O antigo papagaio perdido no invisível
subiu demais por certo. E tentas no teu sonho
fazer que ele desça com todo cuidado
verso após verso, enrolando a linha
impalpável em torno ao coração
como se recolhê-lo a alcance da palavra
dizer suas cores, amarelo e azul passados
fosse voltares tu mesmo para terra

(de visitation, trad. de mário laranjeira)

Le cerf-volant

L’ancien cerf-volant perdu dans l’invisible
a dû monter trop haut. Tu tentes en rêve

de le faire descendre avec précaution
vers après vers, enroulant le fil
impalpable autour du cœur
comme si l’amener à portée de parole
en dire les couleurs, jaune et bleu passées
c’était revenir toi-même sur la terre.

Dobrando a carta do laboratório
o homem que leu sua condenação
se enfia pelas ruas, portador de um sangue pesado
incomunicável. Volta as costas
para o sol de que gostava desde a infância
e de rua em rua, o sol o segue
como um cachorro fiel ou um deus desolado
que não compreende mas pede perdão

(de l’annociade, trad. de júlios castañon guimarães)

Repliant la lettre du laboratoire
l’homme qui a lu sa condamnation
s’enfonce dans les rues, porteur d’un sang lourd
incommunicable. Il tourne le dos
au soleil qu’il aimait depuis son enfance
et de rue en rue, le soleil le suit
comme un chien fidèle ou un dieu désolé
qui ne comprend pas mais demande pardon.

A virgem das rosas
(Colmar)

Estas aí, Maria, com o manto vermelho,
majestosa, amável, vigiando de um lado
e teu filho do outro.
À volta, rosas
sem espinhos, como no jardim do Éden,
e esses pássaros, pintarroxos, canários,
rouxinóis, talvez, de ar estranho :
pássaros pintados que não podem cantar.
Como eles, eu te olho,
aprendo a me calar,
em penitência no Paraíso.

(de figure humaine, trad. de júlio castañon guimarães)

La Vierge au buisson de roses
(Colmar)

Vous êtes là, Marie, en manteau rouge,
majestueuse, aimable, veillant d’un côté
et votre fils de l’autre.
Autour de vous, des rosess
ans épines, comme au jardin d’Éden,
et ces oiseaux, rouges-gorges, mésanges,
rossignols, peut-être, à l’air étrange :
des oiseaux peints qui ne peuvent chanter. 
Comme eux, je vous regarde,
j’apprends à me taire, 
en pénitence au Paradis.

Ao longo das cortinas descem
colunas de luz até
os capitéis invisíveis.
Elas sustentam a paz do dia
domingo de manhã
a cornija do céu por sobre os olhos;
aclaram sobre a mesa
o trabalho inacabado
dum homem quase aposentando.

(de faire place, trad. de guilherme gontijo flores)

Le long des rideaux descendent
des colonnes de lumière
aux chapiteaux invisibles.
Elles supportent la paix du jour
un dimanche matin,
la corniche du ciel au-dessus des yeux ;
éclairent sur la table
le travail inachevé
d’un homme près de la retraite.

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