XANTO | Cores que migram (A alquimia do verbo em Marcelo Reis de Mello), por Rafael Zacca

14369974_10209954532757612_1382303676466878344_n
Foto de Sergio Cohn

Cores que migram

A alquimia do verbo em Marcelo Reis de Mello

Entre as anotações pessoais de Hélio Oiticica, chegou-nos uma, de 1959, sobre a natureza “metafísica” da cor, entendimento que o fez começar a busca pelo que chamou de “cor-tempo”. Para o inventor dos Metaesquemas, a cor seria uma ação antes que uma substância, e, portanto, “essencialmente ativa no sentido de dentro pra fora”, “temporal, por excelência”. Para Hélio, se a cor não é um pigmento, mas uma estrutura temporal metafísica, a tarefa do pintor não é tingir a tela, mas despir a cor “dos sentidos, conhecidos pela inteligência, para que ela esteja pura como ação, metafísica mesmo.” Já em 1960, a consequência alquímica desse pensamento se manifestaria da seguinte forma: “quanto mais não-objetiva é a arte, mais tende à negação do mundo para a afirmação de outro mundo.”

A substituição da cor-pigmento pela cor-tempo prepara a instabilidade da substância das cores e a sua consequente transformação. Subentende-se que a percepção preconceituosa das cores, isto é, aquela imediata, não-elaborada, absorvida pelos sentidos “conhecidos (previamente) pela inteligência” é sintoma de um daltonismo coletivo, ou de uma cegueira para as cores generalizada. No âmbito do trabalho de Hélio, uma posição fundamental, já que o liberaria da pintura, progressivamente, em direção às formas plásticas temporais dos bólides, dos parangolés e dos penetráveis. Para a teoria das cores e para a estética em geral, uma posição que abre um precedente alquímico bastante materialista – qual seja, a liberação imanente (a cor-tempo é ativa de dentro para fora…) do mundo material de suas percepções imediatas.

Entre nós, um poeta hoje em luta contra a palavra afirma uma nova “alquimia do verbo”. E Rimbaud é mesmo um espectro de Elefantes dentro de um sussurro (Cozinha Experimental, 2017), mesmo sem figurar de maneira explícita no cabedal de citações que o livro sustenta. Pois essa nova obra de Marcelo Reis de Mello, que confia o seu maior poder de criação às cores que o tingem, parece estranhamente inseparável de sua pesquisa sobre escritas ilegíveis, insignificantes e assêmicas – e o lançamento do projeto Graphs, um grande acervo dessas estranhas (des)escrituras, desenvolvido pelo poeta em parceria com Khalil Andreozzi, precedeu mesmo a publicação do livro. Não é que Marcelo produza poemas ilegíveis; é que ele organiza uma revolta, em sua poesia, da cor contra a linguagem. A sua “doutrina das cores” não repete o gesto de pesquisa e construção da doutrina de Goethe, citada no livro, mas serve de ponto estratégico para a desarticulação e desconstrução do mundo físico. Tal qual em Oiticica, também com Marcelo as cores se aparentam às ações: rebelam-se contra a fala numa “espera silenciosa” de “frutas desejadas / nas cores que migram.”

E assim como o inconformismo de Oiticica não o distancia das artes plásticas, mas permite a sua reconfiguração numa espécie de revolução permanente do espaço, também não acontece, em Marcelo, um abandono das artes verbais. No entanto, a poesia, o sentido mesmo de sua produção, é reconfigurada, e é por isso que figuram em seu livro não apenas poemas de sua autoria, como também traduções que o poeta fez de Goethe e de Eliot, e-mails de amigos, imagens da ciência e da mística, trabalhos de artistas plásticos, uma entrevista com Borges, excertos de filosofia, ou ainda uma notícia de jornal que tem por manchete “casal morre afogado enquanto pessoas filmam e riem sem prestar socorro”. Todo esse “dizer com os outros” é atravessado pela força do fragmento, como uma obra que não apenas nasce em ruínas, mas o faz em um mundo arruinado.

Elefantes dentro de um sussurro é um desses livros diante de um mundo odioso, mas não se manifesta à maneira de um ódio, mas de um amor. Trata-se, na verdade, de um conjunto de poemas sobre o fim do amor, sobre o abandono, o engano e a desilusão. E ama-se, ainda – mas este fracasso. “Era bonito morrer”, diz o poema “Céu da boca”, em que a substância do amor e a de uma manga se alternam.

vibrávamos e eu gostava de olhar
teu corpo de manga desfazendo-se dócil sob os meus dedos
e eram franjas amarelas nas minhas gengivas (…)

porque meus dedos são pequenas pedras redondas que atirávamos
na água das tuas costas ou na ondulação das nádegas

Transforma-se o corpo amado em manga, e os dedos que amam em pedras arremessadas – no que, instantaneamente, o corpo amado é convertido em água. A transmutação é ininterrupta – cores que migram. Ama-se este fracasso porque no fracasso do amor vive o fracasso das coisas, e, no fracasso das coisas, a chance de “negação do mundo para a afirmação de outro mundo”. O poema “Deus Ex Machina” coloca sobre a boca o signo da derrota, e sob essa maldição a boca pode se transformar em cova, caverna, noite, terra, caixão ou máquina.

Uma boca é uma grande cova
sem mistério. É onde se enterra
o silêncio. É onde se pesca o silêncio.
É onde o mau hálito, é onde
as obturações, é onde os vermes.
Dentro, a escavação. Há muita coisa
lá dentro, mas nenhuma imagem.

A boca é muitas coisas, mas a posteriori. “Há muita coisa / lá dentro” afirma o potencial informe da boca, “mas nenhuma imagem”, o que reforça o seu aspecto de pura potência sem forma fixa. A poesia é, aqui, esta chance informe do mundo, e é talvez com a própria palavra que o poeta fala: “minhas mãos sobre as tuas / mãos tão minhas / e das pétalas dos cinco dedos // Desabrochados, ver / que as coisas todas se encantam / enquanto morrem.”

Os textos que configuram Elefantes dentro de um sussurro têm por meio ambiente as cores, e, principalmente, as complementares amarelo e violeta. As cores não tingem o mundo, mas guardam a promessa de sua transformação. No entanto, o poeta não tem nenhum controle sobre elas. Todas as referências explícitas ao mundo teórico que organiza as cores foram colhidas de modo a apresentar uma fuga cromática da razão: uma citação de Goethe fala de uma categoria de cores que escapa à vista (e que “foram chamadas, pelos investigadores da natureza, de colores aparentes, fluxi, fugitivi, phantastici, falsi, variantes”); os poemas “Catástrofe de Rayleigh-Jeans” e “Fórmula de Max Planck” remetem, em seu título, a descobertas relacionadas à teoria da irradiação das cores que preparam o fim da física clássica e o início da física quântica; e enquanto a cor amarela concentra as formas do engano (o mundo das ciganas, do amor que abandona e do passado transfigurado), a cor violeta aparece relacionada à violência e aos sonhos não realizados. No poema “Violeta”, a cor e a filha abortada se fundem:

Sim, eu sei. Descansa em paz
com a cor
não parida.

Violeta sem unhas
e sem cabelos.

Violeta branca, sépala
do silêncio, maritaca
calada, elefante
vencido.

Violeta, violeta:
dorme, filha.

Os limites dos versos marcam a violência: a cor / não parida; sépala / do silêncio; maritaca / calada; elefante / vencido. O poema repete, com isso, a violência originária em sua forma, e por isso os textos se fixam na forma da melancolia, por não poderem, mesmo em seu poder alquímico, alterar a fonte de prejuízo. “Como é violento dizer: flor”, diz o poema “Viola arsênica”. Nisso, Marcelo e Oiticica separam-se. Enquanto Hélio se moveria progressivamente (ainda que com alegria autodestrutiva) em direção a um Éden, Marcelo se dirige, neste livro, para as formas do dano. “Não se nasce entre lajotas / brancas, limpas demais. (…) // E nesse nosso primeiro pesadelo / estão apenas as mãos / de látex, indiferentes, acostumadas, / ávidas de bisturis e fórceps // Esterelizados.”

A revolta em Oiticica mobiliza a substância plástica; em Elefantes dentro de um sussurro, transforma as ações em cores, preparando a sua transmutação onírica. A referência, no livro, à “metalurgia” não é gratuita. No primeiro volume de sua História das Crenças e das Ideias Religiosas, conta-nos Mircea Eliade que antes da Idade do Ferro, ou seja, antes da descoberta do forno e do impulso exploratório pelas jazidas de metal os povos trabalhavam com o ferro meteórico. A transformação, a partir da fundição do ferro terráqueo, teve importância decisiva nas questões religiosas e na compreensão do tempo daqueles povos. Ao atributo sagrado celeste do ferro, somou-se uma sacralidade telúrica. Segundo Eliade:

Os metais “crescem” no interior da terra. As cavernas e as minas são assimiladas à matriz da terra-mãe. Os minérios extraídos das minas são de certo modo “embriões”. Crescem lentamente, como se obedecessem a um ritmo temporal diferente do da vida dos organismos vegetais e animais – eles não deixam de crescer, pois “amadurecem” nas trevas telúricas. Sua extração do seio da terra-mãe é portanto uma operação praticada antes do termo. Se lhes tivéssemos concedido tempo suficiente para se desenvolverem (isto é, o ritmo geológico do tempo), os minérios se teriam transformado em metais maduros, “perfeitos”.

O tempo dos metais é diferente do tempo humano. A invenção dos fornos e o surgimento da metalurgia acelerou o tempo dos metais, quebrando o ritmo geológico. Com isso, os metalúrgicos e os ferreiros gozaram, desde sempre, tanto de uma alta estima como de um respeito temerário, que às vezes se converteu em desprezo. Os alquimistas herdariam a sua fama. Metalúrgicos e alquimistas manipulavam o caráter ambivalente do metal, entre o Céu e as Profundezas, entre os poderes sagrados e demoníacos, e, ainda mais grave, estes “senhores do fogo” enganavam o tempo (o amarelo de Elefantes), ou forçavam-no (o violeta), o que é o mesmo.

Na poesia de Marcelo Reis de Mello, no entanto, o poeta não é respeitado, mas humilhado, e não engana o tempo, mas é enganado. E é o poema “Metalurgia” que dá o tom de Elefantes: três pequenos versos se perguntam “quantas florações de uma única ferida / não rangem, cruciantes, para fermentar / a argamassa violeta de um sonho?” E talvez haja uma lição neste aparentemente desiludido Elefantes dentro de um sussurro: a necessidade de contabilização do fracasso, isto é, de ostentação da derrota, necessária à construção das utopias.

Rafael Zacca

2 comentários sobre “XANTO | Cores que migram (A alquimia do verbo em Marcelo Reis de Mello), por Rafael Zacca

  1. bravo! uma resenha rubra para poesias tão viole(n)tas, exige uma coragem branca, estrelas salpicadas nos lençóis negros da noite _evoé (x2) para os amigos!

Deixe um comentário