(Para uma introdução, com breve biografia, sobre John Keats e seus principais poemas, vide minha postagem anterior, clicando aqui)

A “Ode on Melancholy” é uma das cinco grandes odes que Keats escreveu em 1819 – e, com apenas 30 versos em 3 estrofes, também a mais breve. É provável que ele tenha tido como referência aqui a grande obra do século XVII de Robert Burton, A Anatomia da Melancolia – que, convinha glosar, o nosso colega de escamandro Guilherme Gontijo Flores foi responsável por traduzir, completa, para o português – um longo tratado que engloba absolutamente tudo de todas as áreas – medicina, geografia, filosofia política, teologia, história – para tratar do assunto.
Há um volume interessante, escrito por John Barnard, intitulado John Keats, onde o crítico diz o seguinte sobre a leitura de Burton por Keats:
As limitações da “Ode à Melancolia” apontam para um problema recorrente em Keats, que pode mais claramente ser visto ao se aproximar o seu tema à sua fonte na Anatomia da Melancolia de Burton. “La Belle Dame Sans Merci”, Lamia e “Melancolia” todos devem algo à Anatomia, e esse algo vai além das semelhanças verbais. Em algum nível, Burton agiu como um catalisador para a formação das atitudes menos conscientes de Keats em relação à sexualidade, sua inquietação e angústias. Nessa medida, esses poemas são um verdadeiro tributo ao tratado de Burton sobre a melancolia amorosa. No caso da “Ode à Melancolia”, Burton limita tanto quanto impulsiona a imaginação de Keats. A Anatomia, apesar de todo o seu vigor excêntrico e gosto de época, para Keats, é uma obra racionalista, factual e humanista tanto em estrutura quanto em intenção. Suas divisões e subdivisões lógicas apontam um modo de pensar profundamente oposto ao sentido simbólico dado à Melancolia na tradição pictórica da Renascença italiana. Nela, como demonstrou Panofski, a identificação da Melancolia com Saturno antecipa o romantismo ao alinhar o melancólico isolado e sofredor, ameaçado pela loucura, com a criatividade do gênio. A figura da Melancolia de Dürer, cercada pelos símbolos do saber e do conhecimento técnico, é a representação mais bem conhecida dessa figura ambígua. A insistência humanista de Burton nas causas fisiológicas e psicológicas da melancolia (isto é, depressão) o insere fora dessa tradição. Seu robusto bom senso faz dele um materialista humanista respondendo a especulações metafísicas e simbólicas do pensamento sincretista da Renascença. Porém, tal como ela aparece na ode de Keats, a Melancolia é uma figura atenuada e literária, relacionada aos descendentes do século XVIII do “Il Penseroso” de Milton, tais como Os Prazeres da Melancolia de Thomas Warton.
(p. 115, disponível online via Google Books clicando aqui )

Tendo lido com extrema proximidade os 4 volumes da Anatomia, não sei se posso concordar com o comentário do crítico sobre Burton se focar só nas causas fisiológicas e psicológicas da Anatomia – há muito espaço para a metafísica em seu tratado, especialmente no condizente a astrologia, bruxaria e possessão demoníaca (sem brincadeira). Mas, no mais, ele me parece preciso. Há uma tensão muito forte nesse poema entre elementos contrários, bem como uma sugestão sexual que parece quase sublimada – ou, ao menos, submetida a um esforço não muito bem sucedido de sublimação. O primeiro pode-se ver já desde os primeiros versos. Temos uma ode à melancolia, mas o eu-lírico do poema pede ao leitor que não desça ao Letes (o rio do Hades grego de que as almas bebem ao chegarem, para que esqueçam sua vida), nem beba de vários venenos (“wolfsbane”, i.e. uma planta do gênero Aconitum, mais a beladona e as bagas dos teixos) ou se associe a uma série de animais simbólicos da morte (o besouro, a coruja, a falena-da-morte, Acherontia atropos, que foi popularizada pelo filme O Silêncio dos Inocentes, como todos devemos lembrar) – ou seja, trata-se de uma melancolia que não busca o esquecimento, a autoaniquilação. Na interpretação de Harold Bloom (em seu livro The Visionary Company, escrito quando ele ainda ótimos insights em suas leituras dos românticos…), Keats aqui está tentando separar a verdadeira melancolia, à qual a ode é dedicada, da falsa, associada ao esquecimento. A verdadeira melancolia para ele, então, envolveria “um súbito aguçamento da consciência, não uma evasão gradual de suas reivindicações”.
O aspecto sexual se encontra na imagem da última estrofe da “uva da Alegria” (Joy’s grape) estourando contra o céu da boca. É uma imagem de prazer, mas um prazer violento – ele não sorve simplesmente o sumo, mas estoura a uva – e que se finda, um clímax do qual a única consequência possível é o fim do prazer (qualquer semelhança com uma imagem de orgasmo masculino, petite morte, não há de ser coincidência), o que se amarra com a conclusão do primeiro verso da última estrofe: a melancolia mora na beleza, e essa beleza deve morrer. Só o que é belo morre, só o que morre pode ser belo, e isso diz respeito especialmente às relações eróticas/amorosas – e, para dar mais um nó na cabeça, contrastemos essa conclusão com a declaração platônica de um poema como Endymion, que começa afirmando que “O que é belo há de ser eternamente / Uma alegria, e há de seguir presente. / Não morre”, na tradução de Augusto de Campos (“A thing of beauty is a joy for ever: / Its loveliness increases; it will never / Pass into nothingness”). Enfim, contradições irresolvidas e potencialmente irresolvíveis.
Compartilho, então, este poema com vocês agora em quatro traduções. A primeira foi retirada do volume Keats e Byron – Entreversos (ed. da Unicamp), de Augusto de Campos; a segunda, de Ode Sobre a Melancolia e Outros Poemas (ed. Hedra), de Péricles Eugênio da Silva Ramos; a terceira, de Nas Invisíveis Asas da Poesia (ed. Iluminuras), tradução de John Milton e Alberto Marsicano (esta e a do Péricles foram as que eu utilizei na postagem anterior); e a quarta e última é uma tradução inédita do poeta Danilo Augusto (cujos poemas já postamos anteriormente aqui no escamandro (clique aqui)). Todos os projetos de tradução, ao que me parece, são bastante distintos, e pode-se aprender muito observando os resultados que cada tradutor obteve.
(Adriano Scandolara)
Ode on Melancholy
No, no! go not to Lethe, neither twist
Wolf’s-bane, tight-rooted, for its poisonous wine;
Nor suffer thy pale forehead to be kist
By nightshade, ruby grape of Proserpine;
Make not your rosary of yew-berries,
Nor let the beetle, nor the death-moth be
Your mournful Psyche, nor the downy owl
A partner in your sorrow’s mysteries;
For shade to shade will come too drowsily,
And drown the wakeful anguish of the soul.
But when the melancholy fit shall fall
Sudden from heaven like a weeping cloud,
That fosters the droop-headed flowers all,
And hides the green hill in an April shroud;
Then glut thy sorrow on a morning rose,
Or on the rainbow of the salt sand-wave,
Or on the wealth of globèd peonies;
Or if thy mistress some rich anger shows,
Emprison her soft hand, and let her rave,
And feed deep, deep upon her peerless eyes.
She dwells with Beauty—Beauty that must die;
And Joy, whose hand is ever at his lips
Bidding adieu; and aching Pleasure nigh,
Turning to poison while the bee-mouth sips:
Ay, in the very temple of Delight
Veil’d Melancholy has her sovran shrine,
Though seen of none save him whose strenuous tongue
Can burst Joy’s grape against his palate fine;
His soul shall taste the sadness of her might,
And be among her cloudy trophies hung.
(John Keats)
Ode Sobre a Melancolia
Não! Não vás para o Letes, nem tristes raízes
Tortures para obter o vinho que te acena;
Nem no pálido rosto os beijos cicatrizes
Da beladona, que Prosérpina envenena.
Não faças teu rosário com amoras parcas,
Nem permitas que o escaravelho ou a falena
Sejam tua Psique, nem que o mocho do abandono
Partilhe dos mistérios do teu ser que pena,
Pois logo vem, de sombra em sombra, o lento sono
Para apagar da alma insana as negras marcas.
Mas se acaso o veneno da melancolia
Cair do céu, chuva de nuvens, que se espalha
Nas flores e as reflora ao som da chuva fria,
E apaga os verdes montes no abril da mortalha,
Purga, então, o amargor numa rosa da aurora
Ou no arco-íris entre o mar e o sal e a areia.
Ou numa imperial peônia globular;
Ou se em tua amante algum ressentimento aflora,
Toma-lhe as mãos e ouve o que a incendeia
E, olhos nos olhos, colhe o seu mais belo olhar.
A Beleza é seu lar; Beleza que se esvai;
A Alegria, com mãos e lábios sempre em fuga
Dizendo adeus; e o Amor que atrai e logo trai
E é já só fel em vez do mel que a abelha suga:
Sim, pois esse amorável Templo do prazer
Tem na Melancolia o seu nublado altar,
Só visível a quem com a língua sorver
A uva da Alegria, lânguida, no céu
Da boca; o travo da tristeza o irá encontrar
E entre as névoas da dor pousar mais um troféu.
(tradução de Augusto de Campos)
Ode Sobre a Melancolia
Não, não, não vás ao Lete, nem o acônito
De raízes firmes torças para obter seu vinho venenoso
nem sofras que te beije a fronte pálida
A beladona, a rubra uva de Prosérpina;
Não faças teu rosário com os glóbulos do teixo;
Nem falena-da-morte nem escaravelho sejam
Tua Psiquê lutuosa, nem partilhe o mocho penujento
Dos mistérios da tua nostalgia;
pois sonolenta a sombra à sombra chegará,
Afogando a aflição desperta de tua alma.
Mas quando o acesso da melancolia
De súbito cair do céu, como se fosse a nuvem lacrimosa
Que alenta as flores todas de inclinada fronte
E em mortalha de abril oculta o verde outeiro:
Sacia então tua tristeza em rosa matinal,
Ou no arco-íris de salgada onda sobre a areia,
Ou na opulência das peônias globulares;
Ou se a amada mostrar cólera rica,
Toma-lhe a mão suave, e deixa-a delirar,
E bebe a fundo, a fundo, nos olhos sem iguais.
Ela mora com a Beleza – com a Beleza que perecerá;
Com a Alegria de mão aos lábios sempre erguida
Para dizer adeus; e junto do Prazer dorido
Que se faz veneno enquanto a boca suga, pura abelha;
Sim, no próprio templo do deleite
É que a Melancolia tem, velada, o seu supremo santuário,
Embora só a veja aquele cuja língua estrênua
rebente a uva da Alegria contra o céu da boca.
A alma deste provará a tristeza que é o seu poder,
E em meio aos seus troféus nublados ficará suspensa.
(tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos)
Ode à Melancolia
Não, não vás ao Letes, nem retorças as raízes
Em feixes do acônito para forjar o vinho venenoso;
Nem deixes tua pálida fronte ser beijada
Pela beladona, uva rubi de Prosérpina;
Não faças teu rosário com as bagas dos teixos,
Nem deixes o besouro, ou a mariposa da morte
Ser tua lúgubre Psique, nem a coruja de penas macias
Ser parceira dos mistérios da tua dor;
Sombra a sombra letárgica virá,
E afogará a angústia desperta da alma.
Mas quando o ataque da melancolia cair
Súbito do céu qual nuvem em pranto,
Que revigora as flores cabisbaixas,
E vela a verde colina na mortalha de Abril;
Farta então a dor na rosa da manhã,
Ou no arco-íris da onda salgada na areia,
Ou na abundância das peônias globulares;
Ou se tua amada demonstrar ira intensa,
Ata-lha a mão suave, e a deixa delirar,
E nutra-te fundo, fundo nos seus olhos ímpares.
Ela mora com a Beleza – Beleza que fenecerá;
E com a Alegria, cuja mão nos lábios sempre
Se despede; junto ao doloroso prazer,
Virando Veneno enquanto a boca-abelha sorve.
Sim, e no próprio templo do deleite
A velada melancolia tem seu santuário supremo,
Embora apenas o vislumbre aquele cuja língua audaz
Estala no céu da boca a uva da Alegria;
Sua alma provará a tristeza de seu poder,
E penderá em meio a seus nebulosos troféus.
(tradução de John Milton & Alberto Marsicano)
Ode à Melancolia
Não, não, não desça ao Lete ou ao vinho misture
As raízes trançadas do acônito venenoso;
Nem deixe sofrer tua face pálida
O beijo da flor noturna, a rubra uva de Prosérpina;
Não teça teu rosário nas bagas do teixo;
Nem seja o escaravelho ou mortal mariposa
Sua lamentosa Psique, ou as penas da coruja
A confidente de suas mágoas misteriosas
Pois a sombra à sombra chegará sonolenta
Afogando a angústia vigilante da tua alma
Porém quando o surto da Melancolia cair
Inesperado dos céus, como uma nuvem que chora
E nutre em Abril as flores pendentes
Encobrindo o verde monte em sua mortalha:
Sacia, então, sua dor na rosa da manhã,
Ou no arco-íris da onda de sal e areia,
Ou na opulência esférica das peônias
E se a amante revela sua cólera larga
Acolhe sua mão delicada e a deixa delirar
E se farta profundamente em seus olhos sem iguais
Vive com a Beleza – com a Beleza que deve morrer
Com a Alegria de mãos aos lábios sempre erguida
Dizendo adeus – e junto ao dolorido Prazer
Tornado Veneno enquanto a boca aspira
Sim, no próprio templo da delicia
Velada, a Melancolia tem seu soberano santuário
Jamais visto a não ser por quem a árdua língua
Arrebenta a uva da Alegria contra o céu da boca
Sua alma provará a tristeza da sua força
E entre seus troféus de neblina ficará erguida
(tradução de Danilo Augusto)
se parecem, é verdade, mas acho que prefiro a última deste novo poeta. Ele fala que a beleza deve morrer. Lindo poema do bardo Keats
Abraços do Cristino
O Décio Pignatari possui também uma contradução para o poema. Mas é praticamente irreconhecível…