Elizabeth Barrett Browning (1806 – 1861), por Matheus Mavericco

Elizabeth_Barrett_BrowningDo pensador político William Godwin & a pioneira do feminismo Mary Wollstonecraft (e sua filha e genro, Mary e Percy Shelley) até, digamos, Sartre & Beauvoir, temos muitos exemplos fascinantes de casais de escritores famosos na história da literatura e das humanidades em geral, mas me parece que são poucos os casais de poetas propriamente dito – o que faz com que eles sejam casos ainda mais fascinantes, como Arthur Rimbaud & Paul Verlaine, Sylvia Plath & Ted Hughes, Pagu & Oswald de Andrade, Leminski & Alice Ruiz… e, como vocês já devem ter antecipado pelo título da postagem, Robert & Elizabeth Barrett Browning. Já postamos em dois momentos aqui poemas de Robert Browning, e agora enfim, por sorte, me surgiu a oportunidade de compartilhar com vocês, leitores do escamandro, algo da Elizabeth.

Nascida Elizabeth Barrett Moulton-Barrett em 1806, ela foi autora de alguns livros de poesia, dos quais podemos comentar a sua impressionante juvenília The Battle of Marathon (1820, um poema em imitação homérica, imaturo ainda, claro, mas mesmo assim melhor do que qualquer coisa que qualquer um de nós teria escrito aos 14) e An Essay on Mind, with Other Poems (1826), mais a tradução de Ésquilo Prometheus Bound (1833, depois revisada, melhorada e republicada em 1838) e depois os volumes The Seraphim and Other Poems (1838) e Poems (1844) – que fez com que ela ficasse famosa praticamente da noite para o dia em todo o mundo anglófono. Como coloca a sua biografia no site da Poetry Foundation, foi então que ela deixou de ser só mais uma “jovem poeta promissora” e se tornou uma “celebridade internacional”, “aclamada como uma das grandes vozes vivas da Inglaterra”. Por causa desse livro, Robert Browning (6 anos mais novo que ela, aliás) se interessou por Elizabeth e começou a lhe escrever, e foi essa relação entre os dois que inspirou os seus “Sonnets from the Portuguese”, um ciclo de sonetos amorosos disfarçados como traduções do português (tanto por motivos de privacidade quanto por causa da admiração dos dois poetas por Camões). O título é um pouco complicado de traduzir, já que pode ser entendido como “sonetos dos portugueses”, “sonetos (traduzidos) do (idioma) português” ou “sonetos da portuguesa”, considerando a perspectiva feminina deles e que “minha portuguesinha” era um dos apelidos carinhosos que Robert tinha por Elizabeth (não me perguntem). Escrito entre 45 e 46, ano em que os dois se casam, esse ciclo de sonetos foi incluído na reedição de 1850 de Poems. Ela também depois escreve o longo poema narrativo Aurora Leigh (1857), em 9 livros, e o seu último volume publicado chama Last Poems (1862), organizado por Robert um ano após a sua morte precoce, causada por uma doença misteriosa e o seu tratamento com láudano (ópio em solução alcoólica) que lhe deixou com a saúde ainda mais debilitada.

Do outro lado do Atlântico, Elizabeth foi uma influência imensa para poetas como Edgar Allan Poe e Emily Dickinson e, em nosso idioma, foi admirada e traduzida por figuras como Pessoa e Bandeira. De meu conhecimento, temos pelo menos três volumes de traduções de poemas dela: Sonetos da Portuguesa, de Leonardo Fróes (ed. Rocco), e Três Mulheres Apaixonadas, de Sérgio Duarte (Companhia das Letras), num volume que inclui, junto da Browning, também traduções de Gaspara Stampa e Louise Labé – e a esses dois volumes, soma-se também uma tradução em português lusitano chamada Sonetos Portugueses, de Manuel Corrêa de Barros (ed. Relógio d’Água).

Dito isso, deixo vocês com o nosso colaborador-convidado do dia, Matheus de Souza Almeida, conhecido como “Mavericco”. Eu “descobri” o Mavericco por acaso via o seu blog “Quanto ganha por ano em dólares Pedro Velásquez, em Havana”, onde ele posta traduções e comentários críticos sobre poetas diversos – leitura que recomendo a todos os nossos leitores, aliás. O Mavericco é goiano, nascido em 1992 e estudante de Direito e se descreve como “Aprendiz de tradutor e crítico mirim, tem a convicção de que quem não gosta de poesia contemporânea é doente do pé”. Ele me mandou 6 traduções (primorosas, eu diria) dos “Sonnets from the Portuguese”, mais um texto introdutório comentando a poeta e as suas traduções para o português, que eu compartilho abaixo.

E, ah, como um bônus também para os mais sentimentais, vocês podem conferir as cartas de Elizabeth (incluindo as trocadas com seu então futuro esposo) digitalizadas e publicadas online pela biblioteca da Baylor University, clicando aqui.

(Adriano Scandolara)

***

"Why how could I hate to write to you; dear Mr. Browning?" 3 de fevereiro de 1845, carta de Elizabeth a Robert.
“Why how could I hate to write to you; dear Mr. Browning?”
3 de fevereiro de 1845, carta de Elizabeth a Robert.

Elizabeth Barrett Browning (1806 – 1861) é quase que uma poeta nacional. Chamada carinhosamente por Mário de Andrade de Belinha Barreto, a autora encontrou nas mãos de Manuel Bandeira um intérprete que a fez se tornar um clássico quase tão firme quanto o é em sua língua de partida. Certo que existe todo um debate se as traduções de Bandeira são traduções mesmo; se olharmos de maneira mais detida, vamos observar que estão mais para paráfrases. Seja como for, é inegável a felicidade das recriações, ponhamos assim, de Bandeira, tanto que, sem espanto nenhum, ele incluiu algumas de suas traduções da autora (ao todo quatro) dentro do coração de sua obra: Libertinagem.

Sobre a vida da autora, o que primeiro impressiona é sua infância a um só tempo prodigiosa e mantida sob a égide da opressão patriarcal. Quem quiser procurar por informações acerca disso encontrará várias fofocas que demonstram o verdadeiro crápula que seu pai, Edward Moulton-Barrett, era. Por exemplo, lembram-se do Flush, aquele cãozinho simpático que a Virginia Woolf depois retrataria num romance delicioso? Pois é. Dizem que, quando a Elizabeth se casou, o pai dela matou o Flush… Aí vocês vejam que, basicamente, a vida de Belinha foi a vida de uma poeta de grande talento que até conheceu o biscoito fino de seu tempo, como um Wordsworth, mas que viveu presa num ambiente familiar graças às garras paternas e graças à sua saúde frágil. À sua personalidade também, podemos dizer.

Sua vida mudou inteiramente quando conheceu Robert Browning, o grande poeta vitoriano. Aí foi uma história de amor danada de linda, com direito a casamento escondido e troca de poemas, especialmente por parte de Elizabeth, até o momento em que ela conseguiu engravidar e viver sua vida curta de maneira alegre e pacata.

Do cortejo amoroso que travou com Robert, surgiram os Sonetos da portuguesa. Ao todo 44, são certamente uma das coletâneas poéticas mais queridas de toda a história da língua inglesa. Postos comumente ao lado de Shakespeare, é de se notar o apreço especial que Elizabeth tinha para com nosso Camões, donde uma das possibilidades de análise do título original (Sonnets from the portuguese). Ambiguidade esta que, dado conteúdo íntimo que percorrem os sonetos, encontra razão de ser. Lógico que em muitos sentidos isso é de uma hipocrisia enorme, pois o que os sonetos de Elizabeth expressam não é nada de mais, especialmente se comparados com os momentos mais acalorados do Bardo. Mas o machismo da época era assim e nós sabemos que até hoje ele não deixou muito de ser.

Elizabeth também escreveu o longo poema Aurora Leigh, cujo resumo é o de, numa estrutura até certo ponto autobiográfica, descrever o percurso da heroína rumo à carreira literária. Um retrato da artista quando jovem, digamos assim. Um forte contraponto ao The Prelude de Wordsworth.

Em relação à minha tradução, desde já eu deponho loas no caminho para os tradutores que vieram antes de mim, e aqui eu me refiro em especial ao próprio Manuel Bandeira, a Leonardo Froés e a Sérgio Duarte. São projetos tradutórios pra agradar a gregos e troianos.

Em Bandeira podemos louvar o pioneirismo e, malgrado o fato de que, enquanto traduções, deixam a desejar, podemos louvar também, é claro, os bons resultados a que chegou enquanto textos e enquanto divulgação da obra da autora em solo nacional. É um projeto que particularmente gosto de colocar ao lado do de Fernando Pessoa ao traduzir o “Catharina to Camoens”, onde, mais uma vez, podemos ver muito mais de Pessoa do que de Elizabeth.

Em Leonardo Froés, podemos destacar a grande seriedade em traduzir a obra toda, malgrado o fato de que aqui e ali ele acabe incorrendo em inversões sintáticas nem sempre presentes no texto original. E já em Sérgio Duarte, que talvez tenha sido o mais equilibrado entre os três, podemos perceber um contato em verdade mais próximo com os sonetos de Elizabeth especialmente no que tange a estrutura sintática tortuosa mas muitas das vezes clara, ou seja, veiculada sem inversões, mas com frequentes interrupções que até me lembram Emily Dickinson e a posterior aventura rumo ao monólogo interior, e no pequeno detalhe de que Sérgio Duarte traduziu os sonetos mantendo estritamente o esquema rímico do original.

Em meu projeto, quis manter a radicalidade das estruturas sintáticas de Elizabeth, algumas vezes até de forma mais radical que ela mesma, e adicionar um clima de pessoalidade ao substituir o “tu” por “você”. Em relação ao esquema rímico, busquei manter o ABBA/ABBA nos quartetos enquanto, nos tercetos, me vali de um esquema mais livre. A explicação acaba sendo simples, pois, na história do soneto, os tercetos sempre foram, digamos, muito problematizados, encontrando vários esquemas rímicos mesmo em Camões, enquanto os quartetos, por sua vez, no começo sempre ostentaram o esquema interpolado com dois ecos.

(Matheus de Souza “Mavericco” Almeida)

 

SONETOS DA PORTUGUESA

(…ou do português, ou dos portugueses, ou da portuguesinha)

VII.

O mundo inteiro está mudado, penso,
Desde que ouvi tua alma se movendo
Perto, perto de mim, entre o horrendo
Extremo do decesso óbvio e denso

E eu mesma, onde eu, em meu naufrágio intenso,
Fui pega pelo amor e o mais que vem do
Afeto: a vida em novo ritmo. Tendo
Aceito o pouco que Deus dá, convenço

A mim a mesma a louvá-Lo, e a te louvar.
E então o nome dos países muda
Tão logo você venha a se mudar;

E isto… esta canção!, agora muda,
(Os anjos sabem) com a tua ajuda
Eu sei que um dia irá se eternizar.

VII.

The face of all the world is changed, I think,
Since first I heard the footsteps of thy soul
Move still, oh, still, beside me, as they stole
Betwixt me and the dreadful outer brink
Of obvious death, where I, who thought to sink,
Was caught up into love, and taught the whole
Of life in a new rhythm. The cup of dole
God gave for baptism, I am fain to drink,
And praise its sweetness, Sweet, with thee anear.
The names of country, heaven, are changed away
For where thou art or shalt be, there or here;
And this… this lute and song… loved yesterday,
(The singing angels know) are only dear
Because thy name moves right in what they say.

 

XI.

E porque amar pode ser deserto,
Não sou de todo indigna. Rosto tal
Como o que você vê, joelhos mal
Aguentando um coração tão incerto —

Velho menestrel — certa vez desperto
Pra que escale o Aorno, e que igual
Ao rouxinol se põe a cantar, tal
Modo é triste — mas por quê disserto

Acerca disso? Amado, é simples: não
Sou digna de você! E, todavia,
Em te amar, eu recebo da paixão

A graça sem culpa de que eu te ame
Ainda, embora de forma vazia —
Pra te negar, por mais que eu te proclame.

 

XI.

And therefore if to love can be desert,
I am not all unworthy. Cheeks as pale
As these you see, and trembling knees that fail
To bear the burden of a heavy heart,–
This weary minstrel-life that once was girt
To climb Aornus, and can scarce avail
To pipe now ‘gainst the valley nightingale
A melancholy music,–why advert
To these things? O Beloved, it is plain
I am not of thy worth nor for thy place!
And yet, because I love thee, I obtain
From that same love this vindicating grace
To live on still in love, and yet in vain,–
To bless thee, yet renounce thee to thy face. 

XII.

De fato este amor é minha vanglória,
A qual, crescendo de meu rosto ao peito,
Me enaltece com joias de tal jeito
Nobres, que deixa aos outros bem notória

Minh’alma — meu amor, a minha glória,
Deste amor eu jamais terei proveito,
A não ser que você lembre o sem jeito
Com que cruzamos nossa trajetória

E amor se disse amor. Assim, não posso
Dizer do amor enquanto coisa minha:
Minhas forças sem forças, sem esforço

Você raptou e pôs em alto posto —
E o que sinto (ó alma!, eu desejo, eu torço!)
É por você, a quem amo sozinha.

XII.

Indeed this very love which is my boast,
And which, when rising up from breast to brow,
Doth crown me with a ruby large enow
To draw men’s eyes and prove the inner cost,–
This love even, all my worth, to the uttermost,
I should not love withal, unless that thou
Hadst set me an example, shown me how,
When first thine earnest eyes with mine were crossed,
And love called love. And thus, I cannot speak
Of love even, as a good thing of my own:
Thy soul hath snatched up mine all faint and weak,
And placed it by thee on a golden throne,–
And that I love (O soul, we must be meek!)
Is by thee only, whom I love alone.
XIII.

E que você me faça falar desse
Amor que sinto, procurando frases,
E guarde a chama, enquanto em nossas faces
O vento é áspero — pra que a acendesse

Em nós? — Jogo-a a teus pés. A mim me desse
A força de afastar meus capatazes
De mim — de mim — e as frases mais capazes
De dizer meu amor — que eu as professe!

Mas não. Que meu silêncio de mulher
Me faça ser mulher — e por você —,
Vendo que não me entrego ao que se exprime

Como amor — dando a joia mais sublime
Por insignificâncias — a não ser que,
Coragem muda, eu conte o que me oprime.

XIII.

And wilt thou have me fashion into speech
The love I bear thee, finding words enough,
And hold the torch out, while the winds are rough,
Between our faces, to cast light on each?–
I drop it at thy feet. I cannot teach
My hand to hold my spirits so far off
From myself–me–that I should bring thee proof
In words, of love hid in me out of reach.
Nay, let the silence of my womanhood
Commend my woman-love to thy belief,–
Seeing that I stand unwon, however wooed,
And rend the garment of my life, in brief,
By a most dauntless, voiceless fortitude,
Lest one touch of this heart convey its grief.

 

XX.

Meu amor, meu amor… E imaginar que
Você há um ano atrás vivia além,
Quando sozinha eu sentei sobre a neve e, em
Não ver você, via ninguém deixar

Que você me falasse… mas, me abarque
Toda, e me acorrentasse, como bem
Não soubesse que um golpe seu, meu bem,
A arrasaria num possível ataque…

Bebo a taça da vida! Deslumbrante,
Não ver você, de noite ou dia, adiante,
Com fala ou ato pessoal — colher

Presciência no branco florescer
Que você viu!… É tolo o ateísta
Que não pressente Deus à sua vista.

XX.

Beloved, my Beloved, when I think
That thou wast in the world a year ago,
What time I sat alone here in the snow
And saw no footprint, heard the silence sink
No moment at thy voice, but, link by link,
Went counting all my chains as if that so
They never could fall off at any blow
Struck by thy possible hand,–why, thus I drink
Of life’s great cup of wonder! Wonderful,
Never to feel thee thrill the day or night
With personal act or speech,–nor ever cull
Some prescience of thee with the blossoms white
Thou sawest growing! Atheists are as dull,
Who cannot guess God’s presence out of sight.

 

XXVI.

Convivi com visões por companhia
E não com homens e mulheres, há
Anos, e os tive por amigos, já
Que um bem maior que este eu desconhecia.

Mas logo sua glória se perdia
No poeira de tudo, e a canção vinha a
Acabar e, sob seu efêmero olhar,
Eu definhava. — E você veio — e ia

Ser tudo o que eles foram: a aparência,
A música e o esplendor (o mesmo, e mais,
Como as águas em santa confluência)

Se encontram em você — e em você ponho
O regojizo que encontrei jamais:
Frente a Deus, quão pequeno é o nosso sonho!

 

XXVI.

I lived with visions for my company
Instead of men and women, years ago,
And found them gentle mates, nor thought to know
A sweeter music than they played to me.
But soon their trailing purple was not free
Of this world’s dust, their lutes did silent grow,
And I myself grew faint and blind below
Their vanishing eyes. Then thou didst come–to be,
Beloved, what they seemed. Their shining fronts,
Their songs, their splendours, (better, yet the same,
As river-water hallowed into fonts)
Met in thee, and from out thee overcame
My soul with satisfaction of all wants:
Because God’s gifts put man’s best dreams to shame.

 

(poemas de Elizabeth Barrett Browning, tradução de Matheus de Souza “Mavericco” Almeida)

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