Nota sobre o tempo na poesia do séc. XVII, por Matheus Mavericco

Edward Herbert, por Isaac Oliver (1565 - 1617)
Edward Herbert, por Isaac Oliver (1565 – 1617)

Edward Herbert (1583-1648), Barão de Cherbury, foi poeta, soldado, diplomata e nobre inglês. Podemos pensar a princípio que foi muita coisa, mas na verdade não creio que é bem por aí pois tratamos de ocupações muito parecidas entre si. De todo modo, tal acúmulo foi importante para que Herbert professasse algumas ideias um tanto quanto avançadas demais para a época.

A época: século XVII. As ideias: expostas num livro chamado De veritate, publicado em 1624. Nele, o autor, com intuições pré-kantianas, busca responder à questão “como podemos conhecer a verdade?” (Isto é, busca entender não as verdades da Fé mas as do entendimento: 1937, p. 71.) Para tanto, ele divide a existência humana como sendo guiada por quatro faculdades (visto que a verdade, para ele, é conformidade dessas faculdades a um objeto: p. 80): o instinto básico (que possui uma ligação íntima ao lado animalesco do homem), o sentido interno (que seria, em conjunto, algo como a consciência), o sentido externo (que seriam nossos cinco sentidos), e a razão. Com estas faculdades em mãos, a pessoa pode ter acesso às chamadas “noções comuns” (p. 117-119), isto é, às noções que são aceitas universalmente em qualquer tempo ou espaço. Até aqui nada de mais. O problema é quando Herbert aplica essa ideia às verdades religiosas (pois o que é universalmente reconhecido só pode sê-lo graças à Providência: p. 77), implicando, por conseguinte, que as verdades religiosas podem vir a qualquer pessoa (e estão em qualquer lugar: p. 83-84) e não, como a igreja então apregoava, somente a autoridades. Uma encrenca e tanto, você não acha? Por muito menos a igreja acabava com a vida do cara. Oras: o que fez com que Herbert se safasse foi sua estirpe…

Da produção poética do autor, costuma-se destacar um poema de ocasião denominado “To his watch, when he could not sleep”. Trata-se de um poema que gira em torno do tema da insônia, mas que possui implicações dignas de interesse.

Como nota Marshall McLuhan (p. 168-169), o advento do relógio trouxe consigo uma mudança profunda na percepção temporal do homem. Agora estamos falando de uma medição de tempo não mais feita a partir da singularidade da experiência privada, mas sim por unidades abstratas e uniformes que em muitos sentidos faziam com que o homem se aprisionasse na passagem inelutável do tempo de uma maneira muito mais detida e acurada. É dizer: enquanto na medição do tempo por outros métodos (por exemplo as graduações de incenso no Japão e na China até o século XVII, conforme citado por McLuhan: p. 169) nós tínhamos uma forma que ia de encontro à subjetividade de quem a manejasse e pressupunha um certo controle do homem em relação à percepção temporal, para além, claro, da relatividade dessa própria percepção temporal que a variação metodológica incutia, com o advento do relógio nós temos uma uniformização que põe a nós todos diante de um mecanismo de contagem objetivo e certeiro. Estamos diante da finitude humana incontestavelmente posta, o que, conforme diz Michel Foucault (1995: p. 328-334), é um passo importante para a afirmação do entendimento de mundo do homem moderno.

E do homem barroco também, é claro. Arnold Hauser (1968: p. 106-107) lembra que a visão copernicana do Universo trouxe consigo a ideia de que o homem não era mais o centro de tudo (algo cujas consequências diretas estão na planificação das coisas, isto é, tudo está em pé de igualdade ou, no mínimo, o homem já não é mais o centro da Criação) e que, portanto, o homem se via diante do Infinito. É o que ajuda a explicar a desmedida barroca, embora devamos notar que o avanço cientificista ainda não era absoluto e a vida comum ainda se debatia sob o jugo religioso (e daí, por sua vez, as ambiguidades sacro-profanas próprias do Barroco e do século XVII, mediadas pela Contra-Reforma), no que, embora o Universo fosse compreendido como algo infinito, ele ainda assim era unitário e regido por leis maiores, como se fosse todo ele um enorme relógio.

O desprezo que Herbert demonstra em seu poema pode ser explicado por tais balizas. Quando John Donne, por exemplo, em “The Sunne Rising”, diz que para o amor os farrapos do tempo (isto é, as divisões em unidades) são trapos sem valia, ou então quando Shakespeare contrapõe a beleza do amado ao caráter perecível do próprio tempo enquanto estrutura contada (veja-se os sonetos X e LX), ambos exemplos de McLuhan, um e outro estão batendo de frente e de certo modo se debatendo contra a percepção temporal imposta pelo relógio. Não se trata exatamente do tema do carpe diem, glosado até a náusea por um poeta como Robert Herrick anos depois ou, no âmbito da obra de Herbert, exposto em poemas como “Ditty in intimation of the spanish entre tantoque el’avril”, com versos quais:

        Pensa no tempo que perdeste hoje.
A longa aurora é curta,
E a curta Idade, longa; o Tempo foge,
E à nossa aurora furta
(…)

Then think each minute that you lose a day.
The longest youth is short,
The shortest Age is long;
Time flies away,
And makes us but his sport
(…)

Ou então no pequeno epigrama “In a glass window for inconstancy”:

        Amor, do espelho transparente,
Frágil, parte os dons e me dá, de
Tal modo que assim aparente,
Clareza e a ti, fragilidade.

Love, of this clearest, frailesr glass,
Divide the properties, so as
In the division may appear
Clearness for me, frailty for her.

Não, não, nada disso. Em “To his watch” o que observamos é um ataque direto e de matizes metafísicos, ataque esse que pode ser visto de maneira ainda mais radical no segundo poema que trazemos para o leitor.

Paul Fleming (1609-1640) foi um médico e poeta alemão, considerado um dos maiores poetas barrocos de seu país. Se na concepção proto-deísta de Edward Herbert em De veritate nós antevíamos repiques kantianos (isto é, tratar do conhecimento humano como mediado por conhecimentos apriorísticos: 2014, p. 31; de se lembrar que para Kant o tempo, junto com o espaço, é uma intuição sensível que permite o conhecimento apriorístico: ibidem, p. 51), no poema de Fleming a coisa é ainda mais impressionante pois nele podemos antever Heidegger. Veja-se um verso como “O Tempo é o que és e és o que é o Tempo”. Agora veja-se por exemplo quando Heidegger diz que o fundamento ontológico original da existencialidade do ser-aí é a temporalidade (§45: 1951, p. 256).

A argumentação central do poema de Fleming é complexa, mas pode ser lida como: nós somos seres temporais, e nós estamos no tempo. Só que o tempo é mais vasto do que nós, ou seja, ele não é somente nós, de modo que nós, enquanto seres temporais, somos o tempo mas, à medida que vivemos, o somos cada vez menos, isto é, vamos nos encaminhando à morte, e a morte é um não-mais-ser-tempo. Seria bom, dado isto, que existisse um algo maior do que o tempo que anulasse o tempo e ao qual pudéssemos nos agarrar… Sim, seria. A explicação da época era: esse algo, atemporal, eterno, é Deus. E quando chegamos a Deus, é dada como encerrada a angústia temporal que marcava o homem da época bem como seu desprezo frente ao tempo mecânico, o que, se por um lado no poema de Herbert se reveste de uma certa empáfia e certeza, no caso do poema de Fleming ganha o caráter de um largo desespero que assola o eu lírico.

É uma dualidade interessante, pois, enquanto no poema de Herbert nós temos uma certa tranquilidade por parte do eu lírico, por exemplo quando ele traz na primeira estrofe a ideia de uma sucessão que no fim das contas é suprimida pela passagem inelutável do Tempo e a aproximação da morte, e isso até o momento em que o próprio Tempo se desfaz (como se o poema todo fosse uma série de círculos cada vez se expandido mais); no poema de Fleming nós temos uma repetição nauseante da palavra “Tempo” que vai se imbricando e se emaranhando, de modo que a solução final da Eternidade dissolvendo o Tempo não parece ser tão eficaz assim uma vez que o poeta, num esquema de dúvidas e de questionamentos da capacidade humana de compreensão do Tempo, desfaz as bases para qualquer certeza ou mesmo para qualquer avanço temporal que seja.

Tal solução divina não é de se espantar uma vez que, como dito mais acima, o século XVII foi mediado pela Contra-Reforma, é dizer: a herança renascentista de cunho cientificista, humanista e greco-romana foi fortemente confrontada pela igreja que, por intermédio da Contra-Reforma, criou uma espécie de dique para conter os avanços do racionalismo da época (Coutinho: 1976, p. 97-101). Sabemos que não deu muito certo pois logo o século das Luzes estaria batendo à porta; todavia, foi eficiente enquanto durou e de acordo, claro, com cada país (na Inglaterra por exemplo nem tanto), o que redundou, artisticamente, no forte jogo de contrastes da poesia barroca e no paroxismo que ela frequentemente incorre para provar a vanidade dos instrumentos racionais (ibidem, p. 106). Cumpre também citar que esse gosto pelos contrários levou a literatura da época a reencetar a constante maneirista da literatura (Curtius: 1973, p. 273-274), valendo-se de instrumentos como a inventividade metafórica (ibidem, p. 280-282; por exemplo os ponteiros do relógio no poema de Herbert como Death’s Auditors) ou a chamada annominatio (ibidem, p. 278-280), que é o trazer formas inflexionadas de uma mesma palavra ou homófonas dela em excesso (visto por exemplo na repetição de Zeit, Tempo, e dos ecos em -ei- no poema de Fleming).

*

O poema de Edward Herbert foi traduzido por Pedro Mohallem. O Pedro tem 19 anos, é itajubense (MG) e hoje reside em São Paulo. Estuda Letras na USP e publica seus textos na sua página de facebook, Palavras de Calebe Cruz, e no seu blog pessoal, Esta pouca cinza fria. Acompanho sua produção desde os tempos de Recanto das Letras, e posso dizer que é um poeta que compensa acompanhar. “Confidência do boticário“, por exemplo, é um dos melhores poemas satíricos que li no ano.

Já a tradução do poema de Paul Fleming é de Augusto de Campos, publicada originalmente pela editora Noa Noa (1992) na coletânea Irmãos germanos. Infelizmente, uma coletânea esgotada… Nós realmente precisamos de um livro com as traduções esparsas de Augusto de Campos.

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COUTINHO, Afrânio. Introdução à literatura no Brasil. 8ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976.
CURTIUS, E. R. European literature and latin middle ages. Trad. Willard R. Trask. New Jersey: Princeton UP, 1973.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Trad. Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
HAUSER, Arnold. Historia social de la literatura y el arte. Volume II. Trad. A. Tovar e F. P. Varas-Reyes. Madrid: Ediciones Guadarrama, 1968.
HEIDEGGER, Martin. El ser y el tiempo. Trad. José Gaos. México: Fondo de cultura económica, 1951.
HERBERT, Edward. De veritate. Trad. Meyrick H. Carré. Bristol: Bristol UP, 1937.
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Trad. J. Rodrigues de Merege. São Paulo: Saraiva de Bolso, 2014.
MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. Trad. Décio Pignatari. São Paulo: Cultrix, 1974.

§
 A SEU RELÓGIO, SEM CONSEGUIR DORMIR.

Edward Herbert, trad. Pedro Mohallem.

Minutos incessantes, de hora em hora,
Conta-se o tempo e se desconta a vida,
Que, mesmo sendo longa, é suprimida
Por vossos curtos passos; pois embora

Evada de si mesma, não evade
De vós, Fiscais da Morte, que ajuntais
E igualmente partis pela metade
O quanto a vida inspire; em vós, mortais,

Esperamos o Fado, cujas Leis
Marcais, trazeis, cumpris, provendo termos
Ao bom e ao novo – e, enquanto em vós morrermos,
No Eterno morre o Tempo, onde morreis.

TO HIS WATCH, WHEN HE COULD NOT SLEEP.

Uncessant Minutes, whil’st you move you tell
The time that tells our life, which though it run
Never so fast or farr, you’r new begun
Short steps shall overtake; for though life well

May scape his own Account, it shall not yours,
You are Death’s Auditors, that both divide
And summ what ere that life inspir’d endures
Past a beginning, and through you we bide

The doom of Fate, whose unrecall’d Decree
You date, bring, execute; making what’s new
Ill and good, old, for as we die in you,
You die in Time, Time in Eternity.

§

MEDITAÇÃO SOBRE O TEMPO.

Paul Fleming, trad. Augusto de Campos.

Vives no Tempo sem saber o que é o Tempo;
Ignoras de onde vens e no que te deténs.
Sabes apenas que num Tempo foste feito
E que num outro Tempo ainda serás desfeito.
Mas o que foi o Tempo que te trouxe incluso?
E o que há de ser aquele que te faz sem uso?
O Tempo é sim e não, o homem se multiplica,
Mas o que é este Sim-e-Não ninguém explica.
O Tempo morre em si e a si mesmo renasce.
O de que tu e eu viemos, de nós mesmos nasce.
O homem está no Tempo e o Tempo está no homem,
Mas o Tempo resiste enquanto o homem some.
O Tempo é o que és e és o que é o Tempo,
Embora tenhas menos do que o Tempo tem.
Ah, se esse outro Tempo, sem Tempo, chegasse
E a nós, de nosso Tempo, esse Tempo arrancasse,
E de nós mesmos, nós, para sermos também
Como esse Tempo, que nenhum Tempo contém.

GEDANKEN ÜBER DIE ZEIT.

Ihr lebet in der Zeit und kennt doch keine Zeit;
so wisst, ihr Menschen, nicht von und in was ihr seid.
Dies wisst ihr, dass ihr seid in einer Zeit geboren
und dass ihr werdet auch in einer Zeit verloren.
Was aber war die Zeit, die euch in sich gebracht?
Und was wird diese sein, die euch zu nichts mehr macht?
Die Zeit ist was und nichts, der Mensch in gleichem Falle,
doch was dasselbe was und nichts sei, zweifeln alle.
Die Zeit, die stirbt in sich und zeugt sich auch aus sich.
Dies kömmt aus mir und dir, von dem du bist und ich.
Der Mensch ist in der Zeit; sie ist in ihm ingleichen,
doch aber muss der Mensch, wenn sie noch bleibet, weichen.
Die Zeit ist, was ihr seid, und ihr seid, was die Zeit,
nur dass ihr wenger noch, als was die Zeit ist, seid.
Ach dass doch jene Zeit, die ohne Zeit ist, käme
und uns aus dieser Zeit in ihre Zeiten nähme,
und aus uns selbsten uns, dass wir gleich könnten sein,
wie der itzt jener Zeit, die keine Zeit geht ein.

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