Dylan Thomas, por Matheus Mavericco

Dylan Thomas

Entre 1914 e 1953 uma das vidas mais conturbadas bateu ponto aqui na terra. Dylan Thomas, que Augusto de Campos chamou de bardo rejeitado, certamente não é do tipo de poeta que se resolva nem em notas biográficas e nem em páginas impressas. O leitor deverá terminar de ler a postagem aqui no escamandro e correr pra conferir a primeira gravação do autor declamando que puder encontrar. Isso dispensará muita coisa. Assim como Manuel Bandeira disse em relação a T. S. Eliot (o mesmo Eliot que rejeitou, e se arrependeu depois, a poesia de Dylan), certas coisas só poderão ser entendidas se assim fizermos. Certo que existe mais. Por exemplo a famosa e terrível boemia que o vitimou tão cedo e que nos permite lembrar do definhamento aos poucos de Leminski. O paralelo, aliás, não é gratuito. Assim como subjaz um fundo cristão ou no mínimo hagiográfico (conforme estudado por Flora Süssekind) na poesia do autor curitibano, na do autor galês nós podemos chegar a conclusões análogas. Claro que existem controvérsias: o leitor tem de saber de antemão que Dylan Thomas é famoso por suas metáforas, e essas, lembra Carpeaux, movem-se em torno de acontecimentos elementares como o nascimento e a morte, e é embasado nestes que o lastro cristão percorre o substrato poemático. E além disso, pra terminar o paralelo Leminski-Thomas, um e outro fazem as pazes também com um trabalho eminente e inventivamente formal (ambos leitores apaixonados do Finnegans Wake), permitindo florescer, num percurso que o próprio Dylan caracterizou como doloroso, a genuína alegria da poesia.

Não sei até que ponto o poema que traduzo e compilo abaixo consegue demonstrar tudo isso. Você vai perceber se observar o certo alheamento nervoso que Dylan proclama ao longo do poema, criando uma espécie de santidade em torno dessa imagem do poeta que cai de boca (presumivelmente) na noite, para depois como que se refugiar em sua mansarda e dar vida às portas de pérola dúbia das boates de que fala Drummond. Em suma, aquilo que, ainda em Leminski, foi-se dito da poesia como algo inútil: ou seja, in-útil, a utilidade da poesia residindo na própria poesia, na própria resistência calada de que, ao se escrever de forma tão inventiva e contestadora como Dylan, se subentenda a recusa (e a inclusão de Dylan na antologia de Augusto, sob o título “Poesia da Recusa”, é paradigmática).

O poema é, sem dúvidas, o mais famoso de Dylan Thomas, e se o selecionei, leia-se nesta seleção uma espécie de protesto, já que que se trata de um autor injustamente esquecido. Algo assim não deveria acontecer, tendo em vista que temos uma tradução completa de sua obra e que temos o nome de Thomas gravado na mente, pelo menos, dos poetas praxistas e da vanguarda concreta. O que houve?, você pode se perguntar. Eu não sei. É muito irônico que ainda hoje desprezemos o Craft or Sullen Art de Dylan. É muito irônico e muito triste, pois quem tem a perder somos apenas nós.

Em minha tradução, pra explicar pro leitor onde me desviei, quis manter uma estrutura formal próxima do original. Assim a escolha do verso de sete sílabas, embora deva lembrar que o original é muito cambiante, e assim um esquema rímico vagamente fixo nas duas estrofes, tentando manter as rimas em “-im” para o penúltimo e antepenúltimo versos e um dístico espargido lá no começo da estrofe. O resto é estripulia, como, afinal de contas, é o próprio original: vale dizer, a busca de sonoridades máximas, o que meu uso e abuso das aliterações em R talvez consiga indicar (criando um paralelo mais uma vez com Drummond, só que agora o Drummond de Oficina Irritada ― quem sabe, pode-se supôr, um correspondente funcional da Craft or Sullen Art de Dylan).

(Matheus “Mavericco”)

§

NESTE MEU ENCARGO OU ARTE AMARGA.
tradução de Matheus “Mavericco”.

Neste encargo ou arte amarga
Tarde da noite exercido
Quando só a lua açula
E os amantes vão pro leito
Com toda a dor em seu peito,
Trabalho sob a luz cantante
Sem ambição e sem pão
Nem fanfarras ou encanto
Em tablados de marfim,
Mas pelo salário afim
A seu secreto coração.

Nem pelo soberbo à parte
Da lua que açula escrevo
Nestas páginas de tornados,
Nem por mortos encastelados
Com seus pássaros e salmos,
Mas aos amantes, cujo peito
Abraça a época ruim
Que não paga o salário afim
A este encargo ou arte amarga.

*

SE EM MEU OFÍCIO, OU ARTE SEVERA.
tradução de Mário Faustino.

Se em meu ofício, ou arte severa,
Vou labutando, na quietude
Da noite, enquanto, à luz cantante
De encapelada lua jazem
Tantos amantes que entre os braços
As próprias dores vão estreitando ―
Não é por pão, nem por ambição,
Nem para em palcos de marfim
Pavonear-me, trocando encantos,
Mas pelo simples salário pago
Pelo secreto coração deles.

Não pelo homem altivo, alheio
A tormentosa lua escrevo
Sobre estas páginas de espuma
Nem pelos monstros imponentes
Com seus rouxinóis, seus salmos,
Mas pelos que se amando estreitam
Nos braços toda a dor das eras,
Que não louvam, não pagam, nem escutam
O meu ofício ― ou arte severa.

*

NO MEU OFÍCIO OU ARTE AMARGA.
tradução de Ivo Barroso.

No meu ofício ou arte amarga
Que à noite tarda é exercido
Quando alucina só a lua
E dormem lassos os amantes
Com as dores todas entre os braços,
É que trabalho à luz cantante
Não pela glória ou pelo pão,
Desfile ou feira de fascínios
Por sobre palcos de marfim,
Mas pela paga mais afim
De seus secretos corações!

Não para alguém altivo à parte
Da lua irada é que eu escrevo
Os respingados destas páginas
Nem pelos mortos presumidos
Cheios de salmo e rouxinóis.
Mas para amantes cujos braços
Têm os cansaços das idades
Que não me dão louvor nem paga
Nem prezam meu ofício ou arte.

*

EM MEU OFÍCIO OU ARTE SEVERA.
tradução de José Lino Grünewald.

Em meu ofício ou arte severa
Na sossegada noite exercido
Quando apenas ruge a lua e, ao leito,
Pairam os amantes com tôdas ânsias
Nos braços concentradas, eu trabalho
À luz cantante, nem por glória ou pão
Ou pela permuta e pompa de encantos
Ein palcos de marfim, mas pela paga
Simples em seu mais quieto coração.

Não ao orgulhoso, alheio à luz uivante
Escrevo nestas espumadas páginas;
Nem também ao cadáver altaneiro
Com seus rouxinóis e salmos, e sim
Aos amantes, seu braços circundando
Todos o padecer dos tempos, aquêles
Que não prestam louvor nem recompensa
Nem se importam com ofício ou arte.

*

EM MEU OFÍCIO OU ARTE TACITURNA.
tradução de Ivan Junqueira.

Em meu ofício ou arte taciturna
Exercido na noite silenciosa
Quando somente a lua se enfurece
E os amantes jazem no leito
Com todas as suas mágoas nos braços,
Trabalho junto à luz que canta
Não por glória ou pão
Nem por pompa ou tráfico de encantos
Nos palcos de marfim
Mas pelo mínimo salário
De seu mais secreto coração.

Escrevo estas páginas de espuma
Não para o homem orgulhoso
Que se afasta da lua enfurecida
Nem para os mortos de alta estirpe
Com seus salmos e rouxinóis,
Mas para os amantes, seus braços
Que enlaçam as dores dos séculos,
Que não me pagam nem me elogiam
E ignoram meu ofício ou minha arte.

*

NESTE MEU OFÍCIO OU ARTE.
tradução de Augusto de Campos.

Neste meu ofício ou arte
Soturna e exercida à noite
Quando só a lua ulula
E os amantes se deitaram
Com suas dores em seus braços,
Eu trabalho à luz que canta
Não por glória ou pão, a pompa
Ou o comércio de encantos
Sobre os palcos de marfim
Mas pelo mero salário
Do seu coração mais raro.

Não para o orgulhoso à parte
Da lua ululante escrevo
Nestas páginas de espuma
Nem aos mortos como torres
Com seus rouxinóis e salmos
Mas para os amantes, braços
Cingindo as dores do tempo,
Que não pagam, louvam, nem
Sabem do meu ofício ou arte.

*

EM MEU OFÍCIO OU SOMBRIA ARTE.
tradução de Rodrigo Madeira.

Em meu ofício ou sombria arte
Exercida na noite estanque
Quando só a lua se enraivece
E os amantes jazem num colchão
Com suas dores todas entre os braços
Trabalho à luz cantante
Não pela cobiça ou pelo pão,
Cabotino comércio de encantos
Sobre palcos de marfim,
Mas pelo salário mínimo, isso sim,
De seu mais secreto coração.

Não para o soberbo na solidão
Da lua furiosa escrevo
Nestas páginas espargidas
Nem para os mortos conspícuos
Com seus salmos e rouxinóis
Mas para os amantes, o abraçar-se
Aos pesares de tempos idos,
Que não me dão salário ou elogios
Nem estimam meu ofício ou arte.

*

IN MY CRAFT OR SULLEN ART.

In my craft or sullen art
Exercised in the still night
When only the moon rages
And the lovers lie abed
With all their griefs in their arms,
I labour by singing light
Not for ambition or bread
Or the strut and trade of charms
On the ivory stages
But for the common wages
Of their most secret heart.

Not for the proud man apart
From the raging moon I write
On these spindrift pages
Nor for the towering dead
With their nightingales and psalms
But for the lovers, their arms
Round the griefs of the ages,
Who pay no praise or wages
Nor heed my craft or art.

Um comentário sobre “Dylan Thomas, por Matheus Mavericco

  1. Uma modesta contribuição ao post, menos tradução do que apropriação do poema, cujo tema trata justamente do que há da mais universal no ofício do poeta.

    EM MEU OFÍCIO OU ARTE SOLENE

    Em meu ofício ou arte solene
    Lavrado na noite perene
    Quando só a lua taciturna
    Ronda e repousam os amantes
    Na dor abraçados
    Trabalho à luz cantante
    Não por ambição ou pão
    Nem pelos encantos
    Dos palcos de marfim
    Mas por um ordinário salário
    De seu mais secreto coração.

    Não é para o homem ressabiado
    Pela lua furibunda que escrevo
    Nestas páginas de enlevo
    Nem para os mortos exaltados
    Com seus salmos e quimeras
    Mas para os amantes, que nos braços,
    Suportam a melancolia das eras
    Que não tecem elogios ou loas
    Nem aplaudem meu ofício ou arte.

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