Uma certa taça de crânio de Byron em várias bocas

Quem, por acaso, já folheou as páginas de Espumas Flutuantes, do nosso famoso poeta Castro Alves (1847-1871), romântico de 3ª geração, conhecido pelo poema anti-escravista Navio Negreiro, com certeza deve ter percebido que o poeta mescla alguns poemas traduzidos junto com sua produção própria ao longo do volume. Um desses poemas, de grande destaque, é a seguinte tradução de um poema do, também romântico famoso, Lorde Byron:

A uma taça feita de um crânio humano

Não recues! De mim não foi-se o espírito…
Em mim verás – pobre caveira fria –
Único crânio que, ao invés dos vivos,
Só derrama alegria.

Vivi! amei! bebi qual tu: Na morte
Arrancaram da terra os ossos meus.
Não me insultes! empina-me!… que a larva
Tem beijos mais sombrios do que os teus.

Mais vale guardar o sumo da parreira
Do que ao verme do chão ser pasto vil;
– Taça – levar dos Deuses a bebida,
Que o pasto do réptil.

Que este vaso, onde o espírito brilhava,
Vá nos outros o espírito acender.
Ai! Quando um crânio já não tem mais cérebro
…Podeis de vinho o encher!

Bebe, enquanto inda é tempo! Uma outra raça,
Quando tu e os teus fordes nos fossos,
Pode do abraço te livrar da terra,
E ébria folgando profanar teus ossos.

E por que não? Se no correr da vida
Tanto mal, tanta dor ai repousa?
É bom fugindo à podridão do lado
Servir na morte enfim p’ra alguma coisa!…

(tradução de Castro Alves: Bahia, 15 de dezembro de 1869)

É um poema de impacto: escrito na voz do crânio que serve de taça, ele subverte a expectativa normal, as sensações de receio de se estar profanando o morto ao beber em sua caveira, para celebrar algo do hedonismo romântico que é bastante típico de Byron. A lógica em que ele insiste é que, perdido o cérebro – e, com o cérebro, tudo que representa, no que diz respeito à razão e os pensamentos, e, com eles, também os sofrimentos que os acompanham – , o vinho é um substituto dos mais nobres – e, com ele, também, tudo que o vinho representa, dionisicamente. Há algo de mórbido, sim, especialmente no modo como ele cria essa associação entre a própria taça-caveira e quem a empunha (ao dizer que viveu, bebeu e amou qual tu, no v. 5, ou que uma outra raça poderá fazer o mesmo que você quando você morrer, na penúltima estrofe), mas uma morbidez celebrativa do tipo que era muito ao gosto dos nossos românticos.

E, aparentemente, o que ainda é mais mórbido, a taça realmente existiu e foi feita a partir de um crânio, presumivelmente de um monge, que um dos jardineiros de Byron exumou, por acaso, em seu terreno na Abadia de Newstead.

Textualmente, porém, há algo de levemente estranho na impressão que fica da leitura desse poema. Notem como as rimas ocorrem somente entre o segundo e o quarto verso de cada estrofe e como este quarto verso também está sujeito a variações de métrica: enquanto todos os outros versos são decassílabos padrão, as estrofes se encerram com versos de 6, 10, 5 (ou 6, se ler como rép-til), 6, 10 e 10, respectivamente.

Bem, o original, em domínio público e disponível online, não é difícil de achar. E, consultando-o, podemos ver que, de fato, Castro Alves operou algumas mudanças formais difíceis de se compreender:

Lines Inscribed Upon A Cup Formed From A Skull

Start not – nor deem my spirit fled:
In me behold the only skull
From which, unlike a living head,
Whatever flows is never dull.

I lived, I loved, I quaffed like thee;
I died: let earth my bones resign:
Fill up – thou canst not injure me;
The worm hath fouler lips than thine.

Better to hold the sparkling grape
Than nurse the earthworm’s slimy brood,
And circle in the goblet’s shape
The drink of gods than reptile’s food.

Where once my wit, perchance, hath shone,
In aid of others’ let me shine;
And when, alas! our brains are gone,
What nobler substitute than wine?

Quaff while thou canst; another race,
When thou and thine like me are sped,
May rescue thee from earth’s embrace,
And rhyme and revel with the dead.

Why not – since through life’s little day
Our heads such sad effects produce?
Redeemed from worms and wasting clay,
This chance is theirs to be of use.

(Lorde Byron)

São estrofes formadas por 4 tetrâmetros jâmbicos cada (e a opção de traduzi-los por decassílabos não é injustificável, dada a possível necessidade de lidar com uma maior margem de manobra) em rimas alternadas abab: fled  skull  head  dull.

Não que eu queira dizer que Castro Alves tenha traduzido mal o poema – muito pelo contrário. Mas, em vez disso, as suas estranhas decisões formais, no que diz respeito às rimas e à variação métrica do último verso de cada estrofe, nos revelam/confirmam um outro dado muito interessante: Castro Alves não teve acesso ao Byron em inglês.

Que os nossos românticos tenham recebido o romantismo por via francesa já não é nenhuma novidade. Assim, o inglês foi uma língua muito pouco lida literariamente ao longo do nosso século XIX, sendo os nossos principais leitores Machado de Assis e Joaquim de Sousândrade. Não sei dizer se Castro Alves não sabia ler em inglês ou simplesmente não teve acesso, só sei que uma outra indicação muito reveladora de qualquer uma dessas duas hipóteses parte da epígrafe de um de seus outros poemas, “Boa Noite”:

Veux-tu donc partir? Le jour est encore éloigné;
C’était le rossignol et non pas l’alouette,
Dont te chant a frappé ton oreille inquiète;
Il chante la nuit sur les branches de ce grenadier,
Crois-mol, cher ami, c’élait te rossignol.

O autor dessa epígrafe em francês? Shakespeare!

Pois é.

Fica uma dúvida, então (além, isto é, da dúvida de qual é a tradução de Shakespeare utilizada aqui): se Castro Alves retraduziu Byron via uma tradução francesa, de quem era esse novo original? E essa é uma pergunta um pouco mais difícil de se responder.

É aí que os franceses nos dão um verdadeiro baile: a obra completa de Byron já no século XIX foi traduzida não uma, nem duas, mas três vezes. É bem verdade que duas dessas traduções são em prosa, mas ainda assim, tradução nunca é demais. Esses tradutores foram Benjamin Laroche (1797-1852, tradução em 4 volumes data de 1847), Amédée Pichot (1795-1877, publicou a tradução em 10 volumes entre 1819-1821) e Paulin Paris (1800-1881, tradução em 3 volumes, 1827). Que todos esses volumes tenham sido lançados antes da morte e, aliás, antes mesmo do nascimento de Castro Alves, deixa em aberto a possibilidade de ele ter lido qualquer uma das 3 traduções.

Felizmente, os franceses também são muito afeiçoados a guardar e divulgar essas coisas na internet, e todas as 3 traduções desse poema de Byron puderam ser encontradas aqui com enorme facilidade – e digo enorme (em vez de “relativa”) sem hipérbole, porque, não fosse a internet, para essa simples pesquisa eu provavelmente teria de percorrer antigas bibliotecas de Paris atrás desses volumes fustigados pelo tempo, o que, apesar de muito romântico, seria pouquíssimo prático.

Mas vamos por partes (e em ordem completamente arbitrária). O primeiro candidato aqui é Benjamin Laroche:

Vers gravés sur une coupe formée d’un crane

La mort ne m’a point fait sa proie;
Pourquoi de moi l’effrayer tant?
Je ne contiens que de la joie:
Quel cerveau peut en dire autant?

Boire, aimer, ce fut là ma vie.
Mort, voilà qu’on m’a déterré.
Bois! je crains moins ta lèvre amie
Que les vers qui m’ont dévoré.

Dans un festin, coupe écumante,
Mieux vaut régner avec orgueil.
Qu’aller dans la tombe béante,
Nourrir les hôtes du cercueil.

Qu’on puise de l’esprit à table
Dans ce vase où régna le mien!
Puis, quand la cervelle est au diable.
Le vin la remplace fort bien.

Hâte-toi donc! bois à plein verre!
D’autres, quand tu seras là-bas.
De tes os ravis à la terre
Égairont aussi leurs repas.

Et pourquoi non? Homme futile,
Nul bien ne sort de ton cerveau:
Qu’après la mort il soit utile,
C’est encore un sort assez beau.

(tradução de Benjamin Laroche)

E a ordem que eu sigo para essa exposição é arbitrária justamente pelo bem do suspense e para dizer que esse autor já está desqualificado como candidato a novo original da retradução de Castro Alves. Ele mantém a rima tal qual no original e traduz os tetrâmetros trocaicos por versos de 8 sílabas, à moda da metrificação francesa. Fora isso, o que também o desqualifica como o possível original de Castro Alves é o primeiro verso da 2ª estrofe: Laroche traduz “I lived, I loved, I quaffed like thee” – “vivi, amei, bebi como tu” – por “Boire, aimer, ce fut là ma vie.” – “beber, amar, foi-se minha vida”. Provavelmente por causa de questões formais, ele não segue a ordem (aliás, ele a inverte), troca o passado pelo infinitivo (talvez porque seria mais difícil encaixar os 3 verbos no passado na métrica) e o direto “vivi” por uma locução mais longa, rimando “vie” com o “amie” do 7º verso. Castro Alves faz “Vivi! amei! bebi qual tu” que é muito mais literal e provavelmente impossível de ser recuperado a partir do francês aqui.

Laroche também toma liberdades com o verso 15, onde o “when our brains are gone” – “quando nossos miolos se forem” – se torna “quand la cervelle est au diable” – “quando o cérebro for pro diabo” -, que reflete uma certa oralidade que está presente em “are gone”, mas que introduz também o termo “diabo”, uma palavra em si já poeticamente pesada e que, se Castro Alves a tivesse lido, provavelmente gostaria de ter mantido. Há muitas outras alterações interessantes, mas não convém glosá-las aqui.

Vamos ao próximo, então, que é Amédée Pichot:

Vers gravés sur une coupe formée d’une tête de mort

I. Ne frémis pas… ne crois pas que mon âme se soit enfuie; considère en moi le seul crâne duquel il ne sort jamais rine de triste: c’est en cela surtout que je ressemble peu aux têtes vivantes.

II. J’ai vécu, – j’aimais, je buvais comme toi; je mourus. Que la terre garde le reste de mes os. Remplis-moi de vin… Tu ne peux m’outrager; tes lèvres sont moins fatales que celles des vers.

III. Il vault mieux contenir le jus pétillant de la grappe, que de nourrir les vers dévorans de la tombe; il vaut mieux former une coupe destinée à t’offrir le breuvage des dieux, que d’être la proie de ces odieux reptiles.

IV. Peut-être quelques saillies sont-elles jadis sorties de ma tête; qu’elle serve aujourd’hui à entretenir l’esprit des auters. Hélas! quand nos cerveaux ont disparu, peut-on leur substituer quelque chose de plus noble que le vin?

V. Savoure ce nectar aujourd’hui que tu le peux… Quand toi et les tiens vous ne serez plus, une autre génération peut-être te ravira comme moi à la terre, et appellera les morts à ses festins.

VI. Pourquoi non? Puisque, pendant la courte journée de la vie, nos têtes produisent de si tristes effets, ne pourrait-on les racheter des vers et de la destruction pour les employer à un bon usage?

(tradução de Amédée Pichot, Oeuvres de Lord Byron, Volume 2)

Temos um problema, já que descartamos a única tradução em verso das 3. Como mencionei acima, esta tradução é em prosa e a outra também. Pois bem, o que podemos, a princípio, pensar como uma vantagem da tradução em prosa (talvez a única) é a possibilidade de manter semanticamente as informações do original, sem precisar recorrer a malabarismos verbais e omissões para encaixar a métrica e as rimas. E é interessante ver que Castro Alves, ao que tudo indica, leu uma tradução em prosa e, por isso, teve de repoetizar o poema. Mas, se ele sabia que o poema original tinha estrofes de 4 versos com rimas entre o 2º e 4º versos, ao menos, de cada estrofe, ou se deduziu isso de algum modo – talvez contando mais ou menos o tanto de sílabas de cada estrofe, reorganizando-as e adivinhando a rima – é algo que escapa à nossa investigação.

À primeira vista, nota-se que, ela de fato, é mais literal que a outra, e a tríade “vivi-amei-bebi” do original e da tradução de Castro Alves foi deixada intacta. Mas dá para observar alguns desvios em relação à tradução brasileira. Quando Byron diz “espirit” no primeiro verso, e ele se torna “âme”, “alma”, na tradução de Pichot, apesar de se tratar de uma mudança perfeitamente compreensível, a repetição de “espírito” em Castro Alves, tanto aí quanto na 4ª estrofe, onde Pichot traduz “wit” por “esprit” (que tem aí um sentido muito mais amplo do que o sentido metafísico de espírito, como Byron utiliza no começo), se torna difícil de justificar.

Podemos presumir (ou por sorte ou por perspicácia) que Pichot, por preferir usar “esprit” para dar conta de traduzir “wit” (como também Laroche o faz, e omite completamente o “espírito” da primeira estrofe) e notar que “spirit” e “wit” são coisas muito distintas em inglês, ele preferiu usar na primeira estrofe um sinônimo de “espírito” (no sentido metafísico), que é “alma”. Mas Castro Alves repete “espírito” em ambos os casos.

Talvez nada disso prove de fato que essa tradução não possa ter sido a fonte, mas são pontos que pesam contra ela. Vejamos, então, a última tradução, de Paulin Paris:

Vers écrits sur une coupe faite avec un crane ‘dhomme

1. Point d’effroi:–ne crois pas mon esprit envolé: en moi, vois seulement un crâne qui, par un privilége refusé aux têtes vivantes, ne répand jamais au dehors rien que d’excellent.

2. Comme toi, je vécus, j’aimai, je m’enivrai,–je mourus;–la terre t’a cédé mes os pour en faire un vase à boire; va, emplis-le jusqu’aux bords,–tu ne peux m’outrager: les vers ont une lèvre plus hideuse que la tienne.

3. Mieux vaut enserrer le jus pétillant de la grappe, que de nourrir la gent glaireuse des vers de terre; mieux vaut, en forme de coupe, porter à la ronde la boisson des dieux, que de pourrir en proie aux reptiles.

4. Là, où jadis mon esprit a peut-être brillé, brillons encore en inspirant les autres. Lorsque, hélas! nos cerveaux ne sont plus, peut-on mettre en leur place chose plus noble que le vin?

5. Bois toujours, tant que tu le peux faire;–lorsque toi et les tiens vous aurez passé comme moi, une autre race t’enlèvera, peut-être, aux embrassemens de la terre, et festinera, rimera avec des ossemens.

6. Pourquoi non? Puisque, durant les jours de notre courte vie, nos têtes produisent de si tristes effets; arrachées aux vers et aux débris de notre argile, elles courent la chance d’être de quelque usage.

(tradução de Paulin Paris, volume 4, oeuvres complètes)

Voilà! O monsieur Paris utiliza “esprit” em ambos os casos. Não somente isso, como um trecho complicado da segunda estrofe que é alterado por Pichot foi traduzido de maneira mais semântica (embora não exatamente literal) por Paris e chega com um sentido parecido em Castro Alves. Vejam:

Byron: let earth my bones resign (“que a terra renuncie aos meus ossos”)

Pichot: Que la terre garde le reste de mes os. (“que a terra guarde o resto dos meus ossos”, que implica que só o crânio foi salvo, e a terra, longe de cedê-los, ainda os guarda)

Paris: la terre t’a cédé mes os pour en faire un vase à boire (“a terra cedeu a você meus ossos para fazer um copo”, é uma tradução mais explicativa e tem informação extra para quem não entendeu até essa altura o que está acontecendo)

Castro Alves: Arrancaram da terra os ossos meus. (a terra muda de ativa para passiva, mas não há menção a guardar o restante dos ossos, é um verso possível de ser derivado a partir da tradução de Paulin Paris)

A primeira estrofe também é reveladora. Pichot inverte a ordem das sentenças. Se o original diz “Não se assuste, nem pense que meu espírito se foi / Contemple em mim o único crânio / De onde, ao contrário das cabeças vivas, / o que quer que flui jamais aborrece”, Pichot faz algo como “Não trema… não creia que minha alma se foi; considere em mim o único crânio do qual jamais sai nada de triste: é nisso sobretudo que me pareço pouco com as cabeças vivas”, onde se vê claramente que o final foi mudado de lugar.

Já Paris faz “Não precisa temer – não creia que meu espírito é partido: em mim, vês somente um crânio que, por um privilégio recusado às cabeças vivas, não flui jamais nada que não seja excelente”, que, além de manter a mesma ordem que Byron e Castro Alves, permite que da dupla negação “não flui jamais nada que não seja excelente”, possa-se deduzir uma afirmação positiva, o “só derrama alegria”, de Castro Alves – o que, na minha opinião, é mais difícil de se fazer com o “triste”, já que a tendência seria se não manter a palavra “triste”, achar algum sinônimo, assim como “excelente” está associado a “alegria”.

Só como bônus, já que acredito que essas evidências textuais bastem para podermos afirmar que é, muito provavelmente, Paris, em vez Pichot ou Laroche, a referência byroniana francesa de Castro Alves, olhemos os títulos:

Byron: Lines Inscribed Upon A Cup Formed From A Skull

Pichot: Vers gravés sur une coupe formée d’une tête de mort

Paris: Ves écrits sur une coupe fait avec un crane d’homme

Castro Alves: A uma taça feita de um crânio humano

Primeiro, já dá para ver a maior proximidade entre “crânio humano” e “crane d’homme” do que com “tête de mort”, o que mostra que não precisávamos analisar tanto as 2 traduções para chegarmos à conclusão que chegamos (mas analisamos de qualquer jeito). Mas o que eu quero apontar é o pequeno problema de transmissão que ocorreu aqui no “inscribed upon”.

É um telefone sem fio. Em Byron, os versos estão inscritos na própria taça, que não é o que está no título de Castro Alves, que se dirige para a taça (o que cria um efeito muito confuso quando você lê o poema e constata que é a taça-caveira que se dirige ao poeta, e não o contrário). Quando Paris traduz o título, em vez de um adjetivo que deixasse isso mais claro (como o “gravés” de Pichot), ele opta pelo genérico “écrits”, “escritos”, e, numa ambiguidade terrível, o “sur” que vem logo depois, segundo as regras de regência, não deixa claro se esses versos estão escritos sobre a superfície da taça, como é de fato, ou se eles foram escritos sobre a taça como um tema, como se escreve sobre o mar, as flores, a vida, etc. Ocorreu então que Castro Alves fez essa segunda interpretação e a simplificou, fazendo, então, de “versos escritos sobre uma taça” o “a uma taça”.

Isso quer dizer que sua tradução é ruim? Não necessariamente. Há problemas, claro, alguns dos quais partem dos próprios franceses – o que serve de aviso também para quem acredita ainda que a tradução em prosa é necessariamente mais “fiel” (muitas aspas necessárias aqui) do que a tradução poética. Mas Castro Alves está entre os melhores poetas do nosso romantismo, e seus dotes refulgem até mesmo nessa situação, em que trabalha em meio a diversas adversidades textuais. E o resultado, na minha opinião, é um bom poema, um poema que funciona.

E isso é mais do que podemos dizer, por exemplo, da tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos desse mesmo poema, já no final do século XX. Apesar do privilégio de traduzir diretamente do inglês, ele também não dá conta de todas as rimas e, inexplicavelmente, opta por traduzir os tetrâmetros jâmbicos (octassilábicos, portanto) de Byron não somente por decassílabos, como fez Castro Alves, mas por uma estranha alternância de decassílabos e dodecassílabos, que, sendo o verso par excellence da poesia francesa, faz com que o poema de Péricles, paradoxalmente, seja muito mais francês do que uma tradução do francês de fato. Na minha opinião, essa falta de concisão (representada por um aumento em 37% do número de sílabas, contra os 18% de Castro Alves) leva a uma dissolução poética, que, juntamente com a falta de um ritmo marcado, acaba por deixar o poema muito mais prosaico, diluindo a rapidez da sagacidade afiada de Byron em um discurso mais extenso e cansativo. Sua maior vantagem, acredito, é a de conseguir ser semanticamente mais próximo do que qualquer uma das traduções acima, mas às custas da poeticidade.

Reproduzo-a abaixo, portanto, conforme encontrada no volume Poemas, publicado pela editora Hedra:

Versos Inscritos numa Taça Feita de um Crânio

Não, não te assustes: não fugiu o meu espírito
Vê em mim um crânio, o único que existe
Do qual, muito ao contrário de uma fronte viva,
Tudo aquilo que flui jamais é triste.

Vivi, amei, bebi, tal como tu; morri;
Que renuncie a terra aos ossos meus
Enche! Não podes injuriar-me; tem o verme
Lábios mais repugnantes do que os teus.

Antes do que nutrir a geração dos vermes,
Melhor conter a uva espumejante;
Melhor é como taça distribuir o néctar
Dos deuses, que a ração da larva rastejante.

Onde outrora brilhou, talvez, minha razão,
Para ajudar os outros brilhe agora eu;
Substituto haverá mais nobre que o vinho
Se o nosso cérebro já se perdeu?

Bebe enquanto puderes; quando tu e os teus
Já tiverdes partido, uma outra gente
Possa te redimir da terra que abraçar-te,
E festeje com o morto e a própria rima tente.

E por que não? Se as frontes geram tal tristeza
Através da existência –curto dia–,
Redimidas dos vermes e da argila
Ao menos possam ter alguma serventia.

(tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos)

E, por fim, como é difícil resistir à tentação de se traduzir um poema ao se falar tanto dele, eu ofereço aqui também a minha própria tradução, feita tendo em mente o objetivo de manter as rimas e experimentando um pouco com a ideia da tradução em pés métricos:

Versos inscritos numa taça feita de um crânio

Não temas: a alma não partira
Só em mim dos crânios que já viste
Vês que, não como um que suspira,
Nada que flui jamais é triste.

Vivi, amei, bebi qual tu;
Morri: a terra não desejo:
Despeja! – em meu osso cru
Mais vil é ter da larva o beijo.

Pior servir do verme a raça
Do que à parreira com seus lumes,
Guardando néctar, como taça,
Não o dos répteis, mas dos numes.

Onde brilhara a minha mente,
P’ra as outras, deixa-me brilhar;
Que é mais nobre, se é o miolo ausente,
Que o vinho, então, em seu lugar?

Há tempo, bebe: ao morrer
Os teus e tu, que uma outra prole
Co’os mortos vá rimar, beber,
E a paz da terra assim viole.

E por que não – se a mente abala
A vida com seu breve dia?
Na redenção do verme e vala,
É a chance de ter serventia.

(tradução de Adriano Scandolara)

(comentário de Adriano Scandolara)

8 comentários sobre “Uma certa taça de crânio de Byron em várias bocas

  1. Adorei sua análise, pena que no Brasil não se achem livros do Byron traduzidos… Eu amaria ler Don Juan e outros poemas de Byron…
    Byron é sem dúvida meu poeta predileto, enfeitiçou-me com um poema que nunca me basta ler mais de 5 vezes e deliciar-me com cada palavra de “A uma taça feita de um crânio humano”. Apenas vi uma tradução de um documentário breve no youtube de Childe Harold que também enfeitiça-me, vejo esses vídeos não menos de 4 vezes, tem uma declamação perfeita, algo que chega a tocar a alma mesmo que seja em inglês, é como se você ouvisse em português e cada palavra nascesse em seu coração no mais profundo deleite e permanece ressoando.

    1. Olá, Lucas!

      Antes de mais nada, obrigado e meus parabéns também já por estar se pondo nessa empreitada de traduzir um poema desse porte!

      Sobre o Pichot… faz um tempo que eu fiz esse texto, então não estou com esse dado fresco na cabeça, mas fiz uma busca agora e achei a tradução dele digitalizada pelo archive.org, ó só: https://archive.org/details/uvresdelordbyro00unkngoog

      Eu disse ali que os 10 volumes saíram entre 1819 e 1821, e essa edição é de 1822, então acho que faz sentido que tudo tenha saído reunido numa edição só depois, né? Mas vou dar mais uma olhada.

      Abração!
      A.

  2. Olá, gostei demais da análise. Apenas uma coisa: tem um erro de digitação no penúltimo verso. A palavra correta traduzida por Castro Alves em Espumas Flutuantes é LODO e não LADO.

  3. Olá Adriano. Parabéns pelo trabalho técnico e pela tradução.

    Tenho buscado traduções desses poetas e queria saber se posso contar com você, ainda que pra me indicar. Meu e-mail é: victormcmelo@gmail.com

  4. Olá,
    Pelo que parece ,em uma tese de Onédia de carvalho Barbosa orientanda pelo prof. Antonio Candido, da USP, Castro Alves traduziu esse poema da tradução francesa de Louis Barré. Não poderia nos fornecer uma análise a partir dessa tradução francesa de Byron?

  5. Olá,
    Pelo que parece ,em uma tese de Onédia de carvalho Barbosa orientanda pelo prof. Antonio Candido, da USP, Castro Alves traduziu esse poema da tradução francesa de Louis Barré. Não poderia nos fornecer uma análise a partir dessa tradução francesa de Byron?

Deixe um comentário